Quando a imprensa nacional abunda em notícias sobre o OE e em comentários e outras análises sobre a inevitabilidade de um orçamento restritivo como via para a contenção do déficit público e para a recuperação da confiança dos “mercados” na capacidade de pagamento do Estado português, é assinalável que alguém, como Manuel Maria Carrilho, correntemente apontado como um dos importantes ideólogos da esfera de influência do PS, surja a colocar questões de forma diversa.
Embora assente a sua proposta de reflexão no pressuposto de que nada há a fazer para mudar a situação actual, engrossando o grupo dos que classificam o OE negociado entre o PS e o PSD como inevitável, asserção que me parece demasiado branda e branqueadora da realidade porque o o agravamento dos défices não se deve apenas ao excesso de gastos públicos ditados pela famigerada incapacidade de bem gerir mas sim a um acumulado de razões, de entre as quais se destacam:
- uma política de desagravamento fiscal, nomeadamente dos lucros, das empresas e de incentivos e outras isenções ao investimento (tudo no âmbito de sãs políticas de incentivo ao investimento e cumprindo os mais rigorosos critérios da teoria do “trickle-down economics”[1]);
- uma política de privatização do sector público empresarial que privilegiou as receitas imediatas e não acautelou os interesses colectivos, que acompanhada pelas políticas de desregulamentação laboral e comercial (tudo no cumprimento das grandes linhas de pensamento neoliberal resumido no Consenso de Washington[2]) conduziu o mercado ao esgotamento;
a que, para desdita nacional, há ainda que somar o efeito dos custos dos grandiosos investimentos públicos de duvidosa ou nula rentabildade (Ponte Vasco da Gama, Euro 2004, etc.) agravados pelo enxame de inqualificados arrivistas que há décadas tomou de assalto os corredores dos ministérios e cujo efeito se tem feito sentir na habitual derrapagem no custo das obras públicas, nem por isso no artigo «Um plano contra o cerco» deixa a mais interessante das propostas que tenho lido nos últimos tempos: «...um grande debate nacional, «...» a definição de um plano para a década, suficientemente sério, participado e consensualizado para poder tirar Portugal do abismo em que se encontra».
A própria expressão escolhida por Manuel Maria Carrilho é particularmente feliz pois a situação que actualmente vivem as economias ocidentais é, em maior ou menor medida, uma situação de verdadeiro cerco. Sufocados pelo peso das dívidas públicas e privadas, aterrorizados com a promessa da falência do Estado Social, bombardeados pelo “slogan” da ineficácia da gestão pública, esmagados com o constante recurso à via fiscal para o financiamento público, preocupados com o crescimento das economias que persiste anémico, os cidadãos sentem-se cada vez mais impotentes para resistir e para exigir do Poder soluções que não aprofundem as próprias razões que os conduziram à situação actual.
Ainda que o autor proponha que «...esse plano deverá ser feito, para lá dos partidos, com a empenhada colaboração das universidades, dos sindicatos, dos empresários, recorrendo-se a todas as reservas da sociedade portuguesa, nomeadamente às qualificadas gerações mais jovens que temos hoje», em tudo configurando a realização de uns novos “Estados Gerais”, e embora esteja longe de me integrar no perfil traçado, não resisto ao desafio de aqui deixar o meu plano contra o cerco e que em poucas palavras se resume numa proposta de alteração radical do actual modelo de financiamento público que, há semelhança do que acontece com o financiamento das economias, não pode continuar a depender da moeda criada no sector financeiro.
Esta solução implica uma radical alteração no paradigma de funcionamento das economias, só será exequível (no caso português) quando for entendido e aplicado pelo conjunto da Zona Euro e ao contrário do que asseguram os indefectíveis da economia de mercado não tem que ser gerador automático de inflação, bastando para tal que a entidade encarregue da emissão e controlo da circulação monetária (o BCE, por exemplo) cumpra um modelo de gestão no qual nem os governos dos estados-membros, nem a Comissão Europeia disponham de poderes descricionários.
A aplicação de um modelo onde a concepção do crédito e da criação da moeda seja entendida enquanto factores de crescimento económico ao serviço das comunidades de cidadãos e não subordinadas ao de um sector económico (como o financeiro) e a imposição de regras que limitem o crescimento da especulação, deverá ser o primeiro passo para a recuperação da confiança dos agentes económicos, mesmo que isso implique no curto prazo medidas extremas como o incumprimento, parcial ou total, das dívidas actuais.
É que contrariamente ao que quer fazer crer a corrente de pensamento dominante, não só as medidas propostas no OE para 2011 são evitáveis como absolutamente contraproducentes durante um período de acentuada estagnação económica; isto mesmo denunciou recentemente Paul Krugman quando neste artigo do NEW YORK TIMES classifica as propostas de redução da despesa pública como um estrangulamento e uma forma de punição colectiva.
Por outras palavras, defender e aplicar políticas não orientadas para a origem dos problemas equivale ao regresso às famigeradas práticas medievais das procissões de flagelados como método de combate à propagação da epidemia que em meados do século XIV ficou conhecida como a “Peste Negra”, restando-nos esperar que as “baixas” agora provocadas não reduzam a população em 2/3, como aconteceu naquela época.
[1] Princípio muito caro à corrente neoliberal que defende a ideia que a redução de impostos sobre as classes mais altas acabará, a prazo, por ser benéfico para o conjunto da população, pois o aumento da riqueza concentrada naquelas camadas resultará em ganhos para as camadas mais baixas, pelos efeitos do aumento do investimento e do consumo.
[2] Designação pela qual ficou conhecido um conjunto de medidas desenvolvido por economistas de instituições financeiras, como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos e que passou a constituir o receituário aplicado internacionalmente por aquelas instituições como panaceia para todos os desequilíbrios macroeconómicos; no essencial as medidas consistem na redução das despesas públicas e privatização das empresas públicas, na aplicação de reformas fiscais (com particular incidência na redução de impostos sobre o capital), na abertura das economias aos mercados externos e ao investimento estrangeiro, na liberalização das taxas de juro e de câmbio e na liberalização das legislação económica e laboral.
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