quarta-feira, 2 de junho de 2010

ASNEIRA CRASSA

É inegavelmente uma das boas formas (e talvez até uma das mais suaves) para classificar a recente iniciativa israelita de abordagem[1] (no sentido literal e bélico do termo) de uma pequena frota com ajuda humanitária que se dirigia a Gaza.

No acto, militarmente reprovável pela óbvia falta de preparação e pelo mortos e feridos provocados, politicamente condenável pelo que representa de retrocesso no que se pretende chamar de um processo de paz, diplomaticamente deplorável pelo facto de ter envolvido cidadãos de um dos poucos estados muçulmanos da região com quem Israel mantém relações normais, terá resultado muito mais que mais uma disparatada demonstração de força. A prová-lo, até o insuspeito jornal suíço, LE TEMPS, publicou na sua edição de ontem o seguinte editorial[2]:


«Israel, um poder à deriva, por Frédéric Koller


Abrindo fogo, em águas internacionais, sob os activistas pro-palestinianos de quarenta nacionalidades que transportavam que transportavam ajuda humanitária para Gaza, Israel auto inflige-se um fiasco militar, diplomático e moral. Militar, porque à evidência ou os militares estavam mal informados – como pretendem – sobre a capacidade de resistência dos passageiros do Marmara ou usaram uma forma desproporcionada de força – como afirmam os responsáveis da «frota da paz».

Depois, uma derrota diplomática porque os governo israelita isola-se mais um pouco no plano internacional na sequência de um acto de agressão que o coloca numa situação de quase conflito com a Turquia, um dos raros países muçulmanos ditos «moderados» com o qual mantinha relações diplomáticas. As condenações dispararam não só no mundo muçulmano, mas também na Europa e na ONU, vário estados exigiram um inquérito às circunstâncias deste drama que custou a via a pelo menos dez pessoas.

Por fim, um derrota moral pois o recurso ao uso da foça contra 700 militantes que se descrevem como pacifistas e entre os quais se encontram deputados de diversos países europeus, um Prémio Nobel da Paz e um sobrevivente dos campos de concentração traduz a incapacidade de Israel convencer o resto do Mundo dos seus direitos senão pelas armas.

Se é legítimo interrogarmo-nos sobre a natureza precisa das relações entre o Hamas e a ONG turca que fretou três dos seis navios da frota, em contrapartida é absurdo qualificar-se como «terrorista» uma acção humanitária que beneficia de um amplo apoio internacional. O envio de um comando nocturno e depois as declarações apressadas das autoridades israelitas justificando o massacre dão, uma vez mais, a imagem de um governo israelita à deriva e surdo a todas as críticas.»


que espelha perfeitamente o ponto de vista, até dos mais moderados, na conturbada questão palestiniana e da estratégia quase suicida que o governo de Benjamin Netanyahu parece apostado em seguir. Aliás o mesmo tipo de análise é expresso num editorial do LE MONDE, que não hesita em classificar a situação como um triplo fiasco e termina referindo o bloqueio imposto por Israel ao território de Gaza:


«Aquele bloqueio não atingiu nenhum dos seus objectivos. Não enfraqueceu o Hamas, pelo contrário. Não obteve a libertação de Gilad Shalit, o soldado israelita capturado em 2006. Submete centenas de milhares de famílias a condições de existência indignas. Compreende-se que Israel queira impedir a entrada de armamento para o Hamas, mas compreende-se menos que nunca que não queira levantar um bloqueio que não tem razão de ser.»


Estes, a par com outras declarações de insuspeitos pró-americanos (e por extensão pró-israelitas), como as que ontem Angelo Correia proferiu perante as câmaras da SIC nas quais lembrou de forma clara a tradicional parcialidade dos estados ocidentais, sempre prontos a condenarem a inobservância árabe das decisões da ONU mas igualmente sempre lestos a desculpar ou simplesmente esquecer quando é a parte israelita a fazê-lo, podem bem ser o primeiro sinal de alguma mudança na abordagem da crise palestiniana.


Na mesma linha de pensamento se pode incluir a notícia da RTP que ontem anunciava que o «Egipto abre fronteira com a Faixa de Gaza», numa evidente mudança de política por parte do presidente egípcio Hosni Mubarak que parece ter passado a considerar mais gravosa a arrogância israelita que a militância islâmica e uma possível ligação entre o Hamas palestiniano e os fundamentalistas egípcios do grupo da Irmandade Islâmica[3] e que representa mais um óbvio contratempo para Israel.

As mudanças de discurso e de atitudes parecem tais que até a próxima discussão pelo Conselho de Segurança da ONU (como noticia o DN) do incidente poderá resultar em algo mais que o habitual veto americano a qualquer resolução mais dura contra Israel; ainda que seja pouco provável que os EUA deixem “cair” o seu “amigo” de tão longa data, a simples forma como diversas capitais reagiram aos acontecimentos deveria constituir um sério aviso para Tel-Aviv quando é já um claro sinal do isolamento judaico.

Mesmo correndo o risco de erro, sempre lembro aqui que o assalto à «frota da paz» pode bem assumir o mesmo efeito que teve na opinião pública mundial a difusão da imagem do assassínio a sangue-frio por um oficial vietnamita (o General Nguyan Ngoc Loan) de um guerrilheiro vietcong. Se o episódio agora ocorrido no Mediterrâneo e as mortes que provocou constituírem um ponto de viragem no conflito palestiniano, com as potências ocidentais a assumirem a mediação entre árabes e judeus num plano de maior igualdade, talvez tenha sido um derramamento de sangue útil, senão... foi apenas mais um acto inútil.
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[1] Veja a propósito a definição constante na Wikipédia: «Abordagem é o nome que se da a uma táctica naval de combate, quando duas ou mais naves se aproximam uma das outras para que seus combatentes de uma delas ou das demais, simultaneamente, entrem em combate corpo a corpo. A abordagem é também utilizada pelos piratas e corsários em abordagens e pilhagem de navios para logística ou mercante, sem escolta
[2] O editorial cuja tradução é da minha responsabilidade, pode ser lido aqui.
[3] A Irmandade Islâmica ou Sociedade de Irmãos Muçulmanos (jamiat al-Ikhwan al-muslimun) é uma organização islâmica fundamentalista, fundada em 1928 por Hassan al Banna após o colapso do Império Otomano, com o objectivo de combater as tendências seculares das nações islâmicas, recuperar os antigos ensinamentos do Corão e rejeitar as influências ocidentais.

1 comentário:

Victor Albuquerque disse...

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Victor Albuquerque
Juiz de Fora-MG/Brasil