domingo, 23 de agosto de 2009

ELEIÇÕES BOAS E JUSTAS

A realização de eleições no Afeganistão, como em qualquer outro país ou território sujeito à presença de um contingente militar estrangeiro, não pode deixar de ser notícia. Não pelo resultado, mas essencialmente por este processo eleitoral não poder deixar de constituir uma anormalidade em semelhante conjuntura e qualquer expectativa sobre a qualidade e a relevância dos resultados não pode deixar de ser encarada como uma mera manobra de criação de um facto político, inevitavelmente agradável aos olhos do ocupante, por muito que os “talibans” se tenham desdobrado em ameaças físicas sobre quem fosse votar.


Por isso, mais que comentar os resultados, a existência ou não de fraudes e o sucesso ou o insucesso da estratégia atemorizadora dos “talibans”, parece-me esta uma estupenda oportunidade para relembrar aqui a situação económico-social de um país que continua a ser o ponto de encontro entre o Ocidente e o Oriente.

Geoestrategicamente importante desde os tempos remotos da Rota da Seda, reconhecido como um território historicamente sujeito à cobiça de potências regionais e internacionais mas de muito difícil ocupação (vários foram os exércitos de grandes potências que o tentaram e fracassaram, nomeadamente nos tempos mais recentes o inglês e o russo), o Afeganistão caracteriza-se como um território sujeito a grandes divisões étnicas e religiosas, com reduzida capacidade agrícola e ainda menor desenvolvimento industrial.

Com a preponderância das etnias pashtun1 e tajique2, que no conjunto deverão representar cerca de 70% da população afegã, seria de esperar que as rivalidades se concentrassem entre estes dois grupos étnicos; porém, a realidade é bem mais complexa. A esta primeira divisão sucedem-se outras originadas entre os restantes grupos (onde pontificam os usebeques – sunitas e ascendência turca – e azaris – de ascendência mongol e xiitas) e os recentimentos originados pela deslocalização de milhões de habitantes em consequência das guerras que parecem assolar permanentemente o território.

Como se todos este problemas não fossem suficientes de “per si” para criar um clima de forte instabilidade social, há ainda que acrescentar que cerca de ¾ da população depende directamente da agricultura e da pastorícia, num território onde apenas 12% da sua área é arável. Mas se isto ainda não der uma imagem da duríssima realidade que se vive naquele território, outros indicadores como o facto da esperança média de vida se quedar pelos 44 anos (quando no conjunto dos outros países menos desenvolvidos aquele indicador se situa nos 55 anos e nos países desenvolvidos atinge os 68 anos), o índice de mortalidade infantil atingir os 157‰ (nos países menos desenvolvidos é de 84‰ e nos mais desenvolvidos é de 47‰).

Os maus indicadores no campo da saúde, agravados ainda pelo facto da maioria da população não ter acesso a água potável nem a cuidados básicos de saúde, são naturalmente replicados noutros indicadores de bem-estar social, como sejam a educação, onde apesar dos recentes progressos mais de ⅔ da população com idade superior a 15 anos não sabe ler nem escrever. Questões como a qualidade da habitação ou o acesso a energia eléctrica são para os naturais do Afeganistão problemas desconhecidos, tão parcas e exíguas são as suas condições habituais de vida.
Facto a que não será obviamente estranha a fragilidade da sua economia, baseada essencialmente numa agricultura sujeita aos ventos das guerras e a uma severa seca, não será de estranhar que o cultivo da papoila do ópio continue a ser a principal fonte de rendimento para a maioria das famílias afegãs e que, apesar dos esforços oficialmente anunciados pelo governo pró-ocidental de Hamid Karzai, as áreas cultivadas até tenham crescido depois da invasão ocidental e que, como referi há cerca de um ano no “post” «APROFUNDA-SE A CRISE DA NATO», segundo a ONU o Afeganistão foi o responsável pelo cultivo de 95% do ópio produzido em 2006 e as áreas cultivadas nos últimos três anos, ainda que aparentando tendência para uma redução, têm se situado sempre acima dos 150 mil ha3.

Num cenário com estas características sócio-económicas e, como escrevi aqui em 2005, com um governo pró-ocidental liderado por Hamid Karzai que continua circunscrito à reduzida área de Cabul, bem guardada pelos soldados ocidentais, enquanto no resto do território o poder é exercido pelos antigos “senhores da guerra”, por ex-líderes comunistas e pelos grupos “mujhaedin” e “taliban”, poder-se-ão realizar eleições na plena asserção do termo?

A resposta parece dada por notícias como esta da BBC, que vão dando conta das inúmeras situações de fraude e de corrupção (como é exemplo a venda de boletins de voto e a compra de votos com dólares amerianos) que não mereceram qualquer actuação das autoridades locais; enquanto isto acontecia em alguma regiões do país, nas mais atingidas pela instabilidade militar repetiram-se os atentados e as ameaças de retaliações sobre quem votasse...


…e mesmo que estas não se confirmem4, os dois prinicpais candidatos – o presidente Hamid Karazi e um ex-ministro dos negócios estrangeiros, Abdullah Abdullah – já poderão ter dado início a um novo ciclo de instabilidade ou de violência, pois muito antes da apresentação oficial dos resultados (marcada para meados de Setembro) «Karzai e Abdullah reclamam vitória sem esperar pelo anúncio dos resultados oficiais».

Com o Ocidente atolado em mais este pantâno político-militar não será sequer de estranhar que, como noticiou o PUBLICO, Philippe Morillon, o chefe da missão de observação da União Europeia, tenha declarado que apesar do clima de terror e das limitações registadas em algumas regiões do país, as eleições foram de uma forma geral “boas e justas”, quando, como noticiou o DN, outros «Observadores falam de fraude no Afeganistão».

Como nos contos de fadas, tudo está bem qundo acaba bem?...
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1 Os pashtun representam cerca de 40% da população afegã, são normalmente apontados como de ascendência hebraica e seguem maioritariamente o ramo sunita da religião islâmica.
2 Os tajiques representam cerca de 25% da população, são de origem persa e também seguem maioritariamente o ramo sunita.
3 Sobre o cultivo da papoila do ópio ver na página da UNODC as seguintes notas: Global Decrease in Opium Cultivation due to a Decrease in Afghanistan e Alternative Livelihoods for Afghan Farmers.
4 A Agência LUSA refere num despacho que «Talibãs mataram 11 funcionários eleitorais durante as eleições no Afeganistão».

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