Para a generalidade da imprensa ocidental o que fez manchete foram as comemorações israelitas – poucos se referiram ao facto de do outro lado do muro os palestinianos estarem a assinalar a al-Nakba (a Catástrofe), designação pela qual conhecem o processo de ocupação de terras e a expulsão de mais de 700 mil palestinianos
[1], levada a cabo durante as guerras que se seguiram à proclamação do Estado de Israel, nem às consequências que ainda hoje se fazem sentir – e a presença de George W Bush, que na qualidade de convidado especial não perdeu a oportunidade para reafirmar o estreito alinhamento do seu governo com as teses e os desejos israelitas.Qualquer observador, mesmo menos atento, há muito está ciente da estreita relação de interesses entre americanos e judeus – começando no facto de historicamente a comunidade judaica deter uma forte posição no sistema financeiro mundial, passando pela permanente disponibilidade norte-americana para o fornecimento de material bélico da última geração (incluindo o discreto apoio à capacidade nuclear judaica[2]) e concluindo com a importância de poder dispor de um aliado (e agente) na região do Médio Oriente – manifesto até no facto de os EUA terem sido o primeiro país a reconhecer o auto-proclamado Estado de Israel.
Mesmo descontando a euforia do momento, o mínimo que alguém de bom senso pode dizer das declarações de Bush é que este terá hipotecado as parcas hipóteses de sucesso para o acordo que pretende apadrinhar entre Ehud Olmert e Mahmoud Abbas.
Se não bastasse o enorme ressentimento e a muita desconfiança que ainda separa judeus de palestinianos[3], este despropositado alinhamento de George Bush com o estado judaico, anulando qualquer credibilidade para ser reconhecido como árbitro minimamente imparcial, serviria como argumento para os grupos que se opõem a qualquer forma de entendimento.
Ora o diálogo é o que mais tem estado ausente de uma região onde o conflito e a intriga têm sido a dominante. Várias iniciativas para normalizar as relações entre Israel e os vizinhos estados árabes ou redundaram em fracassos ou em acordos mais formais que práticos.
Mesmo o chamado Roteiro para a Paz, que possibilitou uma situação de aparente autonomia palestiniana, não tem passado de um logro ao abrigo do qual as condições de vida das populações palestinianas não têm parado de se degradar e, pior, está a contribuir para um crescente distanciamento entre a população e os seus dirigentes.
O desgaste da Fatah em resultado de uma pretensa governação dos territórios palestinianos tem sido habilmente explorado pelos governos israelitas que não têm perdido uma oportunidade para tirar partido das dificuldades inerentes à gestão de um espaço militarmente ocupado por outro Estado, estrategicamente retalhado por muros de betão e postos de controlo militar, despojado das principais fontes de abastecimento de água potável, sem um aparelho produtivo minimamente funcional e uma população com níveis de formação muito baixa; o elevado nível de desemprego entre a população palestiniana e as limitações à circulação e ao comércio impostas pela presença militar israelita têm fomentado confrontos regulares e desproporcionados, de que a Intifada (guerra das pedras), os atentados suicidas, os “rockets” e os assassinatos selectivos têm sido imagem corrente.
Este fenómeno não ditou apenas a ascensão ao poder do Hamas, por via eleitoral, mas também a fragilização da Fatah (movimento histórico fundado por Yasser Arafat e que liderou o processo de desanuviamento que permitiu a constituição da Autoridade Palestiniana) face aos crescentes casos de corrupção entre os seus membros.
Em finais de Abril Jimmy Carter personificou uma tentativa de aproximação e diálogo com o grupo palestiniano, de tendência islâmica, que governa a Faixa de Gaza – o Hamas – que as administrações americana e israelita diabolizam e persistem em marginalizar, com esta última a manter um boicote económico e um bloqueio militar àquele território. Que esta iniciativa começa a produzir efeitos é já confirmável pelas notícias difundidas pelo LE FIGARO que reportam os primeiros contactos “privados” entre o governo francês e aquele movimento, mas ainda estamos muito longe de se poder falar na existência de uma via alternativa de diálogo.
Nesta nebulosa teia de interesses integram-se outras situações, como a invasão do Líbano que Israel levou a cabo no ano passado (a pretexto de alcançara a libertação de dois soldados capturados pelo Hezbollah) e as recentes notícias da existência de conversações entre Israel e a Síria com vista à normalização de relações, que ultrapassam em muito o mero problema da segurança do Estado de Israel. Uma e outra apenas podem ser entendidas no contexto de um jogo de interesses muito mais vasto e que passa, inevitavelmente, pelo controlo de uma região estrategicamente fundamental pelas reservas petrolíferas de que dispõe. Quando Israel invadiu o Líbano não o fez apenas com o objectivo de aniquilar o Hezbollah e fragilizar o Irão (país que apoia aquele movimento islâmico), mas também para influenciar o futuro político de um país cujas ligações históricas à Síria são fortes mas onde a elite política se divide em dois campos antagónicos – pró-ocidentais e pró-sírios.
O próprio processo de normalização de relações entre judeus e sírios é o espelho das contradições e dos interesses envolvidos na região. Tecnicamente em situação de guerra desde a ocupação israelita dos Montes Golan, em 1967, os contactos entre os dois estados têm-se sucedido em função de iniciativas próprias ou de terceiros (mediadores), sendo aqui de destacar o papel que recentemente a Turquia – estado islâmico que normalizou relações com a Israel, de quem é parceiro na NATO, com quem mantém estreitos interesses económicos ligados ao “pipeline” de Baku-Tbilisi-Ceyhan e da sua futura ligação ao de Ashkelon-Eilat[4] e que anseia exibir este sucesso diplomático para “facilitar” a integração na UE – tem desempenhado nesta aproximação.
Mas, tal como sucede com os palestinianos, também com os sírios a população israelita revela grandes dificuldades de entendimento. Segundo o THE JERUSALEM POST mais de 65% da população mostra-se contrária à retirada dos Montes Golan (indispensável a qualquer tentativa de acordo), mesmo que esta seja apenas parcial, e mais de 50% mostram-se mesmo contrários a qualquer negociação num momento em que Ehud Olmert volta a ser acusado de corrupção[5]. Embora o jornal israelita não o refira explicitamente, o resultado da sondagem dever-se-á ao proverbial receio do cidadão comum pela segurança interna mas, a par com esta, existem outras razões para defender a manutenção da ocupação daquele território, nomeadamente o facto deste constituir a chave para o acesso a duas das principais fontes de água potável na região (os rios Jordão e Yarmouk), de nele se terem estabelecido quase 20.000 colonos e de haver sempre quem possa extrair dividendos de um clima generalizado de insegurança.
Aliás esta estratégia de agitar espantalhos é mais antiga entre os habitantes de Israel que a constituição do seu próprio estado[6].
Tal como há sessenta anos, ainda hoje o medo atávico dos árabes constituiu um importante factor de união de um povo que em muitos casos pouco mais tem em comum que os seus dogmas religiosos[7].
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[1] Actualmente as estimativas apontam para a existência de aproximadamente 4 milhões de palestinianos a viver na situação de refugiados, número resultante do crescimento demográfico dos refugiados originais.
[2] Ainda recentemente o PUBLICO fez eco de declarações do ex-presidente Jimmy Carter que referiu publicamente (a primeira vez que alguém responsável ou ex-responsável da Casa Branca o fez) que Israel disporá de cerca de 150 ogivas nucleares
[3] Sobre esta questão recomendo vivamente a leitura de «ISRAEL PALESTINA – PAZ OU GUERRA SANTA» de Mário Vargas Llosa, que além da habitual qualidade da sua escrita apresenta um ponto de vista de alguém que habitualmente alinha em posições pró-israelitas relata o ponto de vista dos “dois lados”.
[4] Sobre esta questão a relação de interesses entre judeus e turcos, ver os posts: «Dubitando at veritatem pervenimus» e «A realidade além daquilo que vemos».
[5] Sobre estas acusações ver o artigo de Yigal Sarna «The man who wanted to be king», publicado no YEDIOT AHARONOT.
[6] Sobre esta questão e a título de panorâmica geral do conflito israelo-palestiniano ver os “posts”: «Contributos e obstáculos para a paz –I» e «Contributos e obstáculos para a paz –II».
[7] Estima-se que apenas 68% dos cerca de 7 milhões de habitantes de Israel sejam naturais do território (nascidos após a independência); os restantes 32% são originários dos mais variados territórios e a título de exemplo só no início da década de 1990 entraram no país mais de 200 mil emigrantes originários da antiga União Soviética.
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