Mau grado o esforço dos dirigentes políticos europeus, com José Sócrates à cabeça, para convencerem os seus eleitores de que o Tratado de Lisboa é algo completamente diferente da Constituição que franceses e holandeses referendaram e rejeitaram em 2005, eis que na Irlanda, único estado europeu constitucionalmente obrigado a referendar o texto do Tratado, este se viu rejeitado, recolocando na ordem do dia o respectivo futuro e demonstrando o fracasso da estratégia daqueles dirigentes.
Tomando por medida de exemplo o primeiro-ministro irlandês que reconheceu publicamente que não leu a totalidade do tratado ou o comissário europeu irlandês que afirmou que ninguém “são de espírito” o faria[1], que mais seria preciso dizer para demonstrar a impraticabilidade de um texto que pretende ser “fundador” e “orientador” da vida dos cidadãos europeus?
Se a sua extensão e a complicação são duas importantes razões para originar fundamentadas dúvidas à sua aplicação, há ainda que acrescentar a estas as muitas outras que os cidadãos de cada um dos estados colocam relativamente a pontos importante do articulado que entendem ferir os seus direitos e hábitos.
A tudo isto a resposta dos políticos europeus foi a de fazer ratificar o tratado nos respectivos parlamentos (os últimos a fazê-lo foram a Finlândia, a Estónia e a Grécia que aprovaram o tratado na véspera da consulta na Irlanda), e assim evitar a repetição dos resultados franceses e holandeses que em 2005 ditaram a rejeição do projecto de Constituição Europeia apadrinhada por Valéry Giscard d'Estaing. Mas a Irlanda que por imperativo constitucional não pôde evitar o referendo, teve que colocar nas mãos dos seus 3 milhões de eleitores (menos de 1% da população da UE) a futuro do Tratado de Lisboa.
O resultado de mais esta consulta sobre a UE vem reafirmar um sentimento de desconfiança das populações relativamente às opções dos políticos que elegeram; racionalmente poucos serão os eleitores que desejam abandonar a UE[2], mas muitos apresentam sérias dúvidas quanto à forma como têm decorrido vários dos seus processos.
A necessidade de concertação das grandes linhas de actuação da UE, e em especial a definição de uma política externa comum e a constituição de um exército comum, é inegável mas dificilmente se tornará uma ideia aceite em todo o espaço da União se não for acompanhado de um processo de clarificação e informação junto dos cidadãos. A estratégia da negociação e aprovação dos princípios por um conjunto reduzido de intervenientes (tão mal ou pior informados que os eleitores que os elegeram) pode ser útil ao grupo a quem os princípios aprovados mais interessem, mas dificilmente será aceite por aqueles que os elegeram.
Enquanto o eixo Paris-Berlim lamenta o sucedido e apela à continuação do processo de ratificação do Tratado[3], nos países onde este ainda não ocorreu (caso da Inglaterra e da Holanda) a pressão para a rejeição ou para a realização de referendos tenderá a crescer. Com os diversos políticos nacionais envolvidos das mais variadas formas na farsa que tem constituído este processo de ratificação do Tratado de Lisboa é muito duvidoso que nos próximos tempo se registe alguma alteração significativa de estratégia, incluindo a mirabolante e quase antidemocrática proposta francesa[4] de repetir o referendo, até porque, ao contrário do que muitas vezes se diz, a posição irlandesa não coloca o funcionamento da UE em risco.
No rescaldo ainda muito acalorado deste processo é seguramente cedo para esperar que os eurocratas de Bruxelas retirem todas as devidas conclusões da situação[5], a começar pela forma precipitada e mal estruturada como se vem realizando o processo de alargamento a leste[6] (contrariamente ao que se pretende fazer crer parece que o fantasma do “urso russo” ainda pesa demasiado em todo este processo) em detrimento da consolidação das políticas de coesão interna e de projecção para o exterior do espaço europeu.
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[1] A referência foi extraída desta notícia do PUBLICO.
[2] Segundo o jornal LE MONDE, que refere os resultados da última sondagem Eurobarómetro publicada em Dezembro de 2007, os Holandeses e os Irlandeses contam-se entre os Europeus com opinião mais favorável da EU. Entre 79 % e 74 % consideram a UE como "uma coisa boa" contra 54 % para a média europeia (60 % para o caso francês). Os mais cépticos são os Ingleses (34 %) e os Letões (37 %)
[3] À excepção da Bélgica, da Espanha, da Holanda, da Itália, do Reino Unido e da República Checa, todos os restantes 18 países-membros já procederam à respectiva ratificação parlamentar.
[4] Ver a notícia de hoje no DIÁRIO DE NOTÍCIAS.
[5] O mesmo poderá ser dito dos dirigentes nacionais, a avaliar por declarações como as de Cavaco Silva, citadas pela RTP, que a partir de Espanha onde se deslocou para a inauguração do pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Saragoça afirmou que nenhum estado europeu deveria referendar o Tratado de Lisboa.
[6] A este propósito recorde-se que a UE se foi constituindo a partir do Tratado de Paris, que em 1951 criou a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e os Tratados de Roma, assinados em 1957 e que instituíram a Comunidade Económica Europeia e a Comunidade Europeia da Energia Atómica ou Euratom, foram assinados por seis membros fundadores: Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos; desde aquela data a UE levou a cabo seis alargamentos sucessivos: em 1973, Dinamarca, Irlanda e Reino Unido; em 1981, Grécia; em 1986, Portugal e Espanha; em 1995, Áustria, Finlândia e Suécia; a 1 de Maio de 2004, República Checa, Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Malta e Polónia; a 1 de Janeiro de 2007, Bulgária e Roménia, processo que promete continuar com a Croácia, Turquia e Macedónia, candidatos à adesão desde Outubro de 2005, data em que iniciaram oficialmente as negociações. O número de estados-membros poderia ser já de 29 caso a Noruega e a Suíça não tivessem rejeitado a adesão em referendos que realizaram em 1972 e 1994, respectivamente.
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