sábado, 22 de março de 2008

INQUIETAÇÃO NO TIBETE

Sinal dos tempos ou produto da mera saturação, as populações tibetanas parecem dispostas a aproveitar acontecimentos tão díspares como a aproximação dos Jogos Olímpicos de Pequim ou a declaração unilateral de independência do Kosovo para fazer ouvir a sua oposição à presença chinesa no seu território.

Sustentada num relacionamento que pode ser remontado ao século XVII a China reclama o Tibete como parte integrante do seu território; mas para melhor entendermos a delicadeza da situação talvez baste recuar ao início do século passado quando em finais de 1911 a república substitui definitivamente a última dinastia chinesa e um par de anos depois se deu início a uma tentativa de acordo tripartido entre a China, o Tibete e o Reino Unido (potência colonizadora da vizinha Índia), no sentido de delimitar as fronteiras daquele território; esta tentativa de acordo, que ficou conhecida como a Convenção de Simla, nunca foi reconhecida pela China facto que viria a sustentar o conflito fronteiriço de 1962 com a Índia.

Após a ascensão ao poder do Partido Comunista Chinês, em 1949, a nova República Popular da China retomaria o dossier Tibete e em 1951 imporia um acordo – Acordo dos Dezassete Pontos para a Libertação Pacífica do Tibete – atribuindo àquela região uma grande autonomia. Ainda assim, em Junho de 1956 viria a rebentar uma revolta que, inserida na estratégia de guerra fria da época foi apoiada pela CIA, conheceria o seu desfecho em 1959 com o exílio do Dalai Lama[1] e uma inevitável redução do grau de autonomia da região.

Esta situação conheceu alguns desenvolvimentos em 1989, quando Tenzin Gyatso, o 14º e actual Dalai Lama, foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz; ainda que não possa ser esquecida esta coincidência com a da ocorrência do Massacre da Praça Tiananmen[2], é inegável que este prémio aumentou a visibilidade internacional do Tibete e que poderá ter contribuído para uma proposta apresentada em 2005 por Wen Jiabao[3] para a realização de conversações.

Volvidos quase cinquenta anos, eis que aproveitando a proximidade da realização dos Jogos Olímpicos em Pequim, os nacionalistas tibetanos voltam a manifestar-se contra a presença chinesa no seu território enquanto o Dalai Lama vai lançando apelos à comunidade internacional e denunciando o que classifica de política de genocídio cultural praticado pelo governo chinês no Tibete.

Se é verdade que na generalidade das localidades tibetanas o comércio é dominado pela minoria chinesa e o governo chinês nem sequer tem feito grandes esforços para esconder o seu desejo de ver aumentada a presença dos seus nacionais naquele território, não é menos verdade que a generalidade da população tibetana (cerca de 6 milhões de pessoas) apresenta níveis anormalmente baixos de alfabetização, o que muito contribui para a preponderância dos chineses.

De uma forma ou outra não subsistem dúvidas de que permanece vivo um forte sentimento nacional entre os tibetanos, de que dificilmente as autoridades chinesas abrirão mão da sua posição no território, de que a repressão chinesa sobre os manifestantes poderá vir a aumentar, de que o próprio Dalai Lama poderá já estar a ser alvo de alguma contestação interna (os sectores mais jovens e mais radicais acusam-no de excessivo pacifismo face à intransigência chinesa); por outro lado se a escolha da proximidade com os Jogos Olímpicos é um factor de peso para aumentar a visibilidade internacional da situação, não é menos preocupante o facto de novamente em 2008 se voltar a falar na interferência da CIA nesta onda de contestação.

Num artigo recente do investigador australiano Michael Barker, é posta a descoberto a estreita ligação entre o governo tibetano no exílio e o National Endowment for Democracy (NED)[4], facto que não pode deixar de ser ligado à anterior actuação da CIA na região e que pode muito bem ajudar a compreender a crescente violência de que se têm revestido os recentes protestos e quiçá a quebra de influência do Dalai Lama e da sua política de não violência.

Curioso é que face a tudo isto o que mais transparece na imprensa nacional são as acções violentas dos jovens tibetanos e o endurecimento da “resposta” das autoridades chinesas.

Entre nós a notícia continua a ser o número de mortos, raramente os esforços para a resolução das crises e nunca os interesses que por detrás delas se movimentam.
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[1] Designação atribuída ao líder espiritual e administrativo dos budistas tibetanos. Historicamente a sua origem pode ser remontada ao século XIV e resulta da crença da sucessiva reincarnação do seu guru (líder espiritual ou lama) Sonam Gyatso (1543–1588) que foi o primeiro a ser assim designado mas o terceiro na linha de reincarnações. Os seus seguidores consideram o Dalai Lama como uma incarnação do Buda da Compaixão.
[2] Designação por que ficou conhecida o movimento popular que teve lugar na China em 1989. Após alguns dias de marchas e manifestações populares, lideradas maioritariamente por estudantes mas que acabou por mobilizar outros sectores da sociedade chinesa que, animados pelas recentes mudanças na União Soviética (Glasnost de Mikhail Gorbachev), pretendiam ver ampliado o processo de reforma económica e que protestavam contra a inflação e o desemprego, o governo de Deng Xiaoping decretou a lei marcial e enviou o exército para acabar com os protestos, do que resultou um número considerável mortos (entre algumas centenas e 7 mil segundo os manifestantes).
[3] Wen Jiabao é o actual líder do Conselho de Estado da República Popular da China, autoridade administrativa nomeada pelo Congresso do Povo, cargo que se pode considerar o segundo na hierarquia chinesa, logo após o presidente Hu Jintao.
[4] O National Endowment for Democracy (NED) é uma organização sem fins lucrativos norte-americana, fundada em 1983, que se destina a promover a democracia mediante a atribuição de financiamentos a organizações e entidades estrangeiras. Embora se trate de uma entidade privada, a origem dos seus fundos é quase exclusivamente pública – mediante verbas orçamentadas pelo Congresso – e resultou de uma iniciativa desse mesmo Congresso; como tal tem sido várias vezes criticada por interferir em regimes estrangeiros e por ter sido organizada para dar continuidade legal às actividades ilegais da CIA no apoio a partidos e grupos políticos estrangeiros seleccionados. (adaptado de WIKIPEDIA)

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