quinta-feira, 16 de novembro de 2006

AS HIPOCRISIAS SOBRE O ABORTO

Desde que se começou a falar na possibilidade de se repetir um repetir um referendo sobre a questão do “aborto” que decidi esperar pela confirmação da sua realização antes de me pronunciar sobre a questão.

Atendendo ao parecer positivo do Tribunal Constitucional à pergunta sugerida pela Assembleia da República - CONCORDA COM A DESPENALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ, SE REALIZADA, POR OPÇÃO DA MULHER, NAS PRIMEIRAS DEZ SEMANAS, EM ESTABELECIMENTO DE SAÚDE LEGALMENTE AUTORIZADO? – que agora será remetido ao Presidente da República para aprovação e marcação da data do referendo e ao facto de nada fazer prever que este se pronuncie de forma negativa, parece-me chegado o momento de abordar a questão.

Considerando a posição assumida na Assembleia da República pelo PS, partido que detendo uma maioria de deputados poderia (e deveria) apresentar uma proposta de lei sobre a matéria, tanto mais que esta já foi alvo de um processo de consulta popular (referendo) em 1998 que se revelou inconclusivo (devido ao facto de apenas 31,94% dos eleitores inscritos terem participado no escrutínio).

Independentemente da opinião que cada um de nós tem sobre a matéria, há algumas questões que me parecem merecedoras de observação e comentário prévio.

Além da discutível opção do PS sobre o assunto e que na minha opinião configurar mais uma tentativa de “passar ao lado do problema” que uma séria posição de aprovação ou rejeição da medida, assunto que retomarei mais adiante, parece-me de denunciar desde já duas questões:

  1. a intervenção de José Sócrates no recente congresso do PS, onde afirmou que voltando a repetir-se o cenário de 1998, apenas aprovaria a despenalização do aborto em caso de triunfo do “SIM”;
  2. a repetição da estratégia interventiva da Igreja Católica em defesa do “NÃO”.

Não estranhando a decisão desta última, parece-me susceptível de viva contestação os termos em que o fez em 1998 (e que se prepara agora para repetir) bem como a recente afirmação de que contesta a legitimidade da Assembleia da República para legislar no que respeita à «…liberalização ou descriminalização do aborto…», por considerar que a sua prática constitui sempre um crime e por não reconhecer ao Estado competência para criar leis sobre a matéria (transcrição adaptada desta notícia do DN).

Que a Igreja Católica pugne pela condenação do aborto, que apele ao “direito à vida” e a outros chavões que os seus prosélitos repetem incessantemente mas raramente conseguem explicar e justificar de forma racional (sem recurso a conceitos dogmáticos e de natureza exclusivamente religiosa), é um direito que lhe assiste, da mesma forma que aos outros assiste o de não seguirem esses conceitos. Agora negar ao Estado o direito de legislar sobre matéria (por mais polémica e lesiva dos interesses e conceitos religiosos que ela seja) que respeita a TODOS os cidadãos é que me parece algo que ultrapassa em muito a liberdade de culto e de existência que a Constituição Portuguesa confere às confissões religiosas.

Que a Igreja Católica (ou qualquer outra organização religiosa) faça pender sobre os seus seguidores todo tipo de sanções (nesta vida ou noutra) é seu (e dos seus seguidores) exclusivo problema, mas interferir numa esfera de acção que em muito ultrapassa o universo dos seus fiéis (por muitos milhões eles sejam) e condicionar os direitos dos OUTROS é que não posso tolerar de forma alguma.

O grande erro de todo este processo de referendo é que, como já aconteceu anteriormente, os defensores do “NÃO” persistem em transformar uma questão simples em algo completamente diferente. Pervertendo o conceito do direito de liberdade de escolha (o livre arbítrio que por vezes tanto invocam os católicos) transformam a questão do levantamento das sanções penais que hoje pendem sobre as mulheres que tenham praticado um aborto, em algo tão diferente como se aquela prática passasse a ser obrigatória.

Fingindo esquecer, deturpando o verdadeiro cerne da questão e bradando contra os que querem eliminar “vidas humanas”, os defensores do “NÃO” arrogam-se o direito de fazer prevalecer um conceito que restringe a liberdade individual e de, em pleno século XXI, tratarem os Homens e, principalmente, as Mulheres deste país como desprovidos de capacidades racionais.

Confundindo a despenalização, ou seja o fim da possibilidade de incriminação das cidadãs por alegada prática de aborto, com a condenação do aborto – a quem é que alguma vez se ouviu defender o recurso a tal prática como solução banal, manipulando e destorcendo os argumentos em defesa da liberdade individual em nome de um princípio de “defesa da vida”, o que as organizações religiosas que se opõem à proposta pretendem é manter intacto o direito de imporem os seus pontos de vista à generalidade da população.

No seu afã pela introdução de novos argumentos chegam mesmo a invocar o problema da inversão da pirâmide etária para criticarem os defensores do “SIM”, como se fosse o número de abortos anualmente praticados que resolvesse aquele problema e não a existência de políticas estruturadas no sentido do apoio social e da alteração dos padrões de vida e de trabalho das populações.

Enquadrando-se o problema do crescimento das populações no âmbito das políticas cuja definição compete aos governos que elegemos, constatando-se o vazio que nessa matéria se verifica entre nós e retomando as declarações do primeiro-ministro/secretário-geral do PS, agrava-se a minha grande dúvida: porque é que o PS, fazendo jus da sua maioria parlamentar, não avançou com uma proposta de lei?

Não será para mais tarde invocar a falta de representatividade de um referendo que promete terminar como o anterior e sair airosamente da situação delicada de aprovar uma lei que desagrada à Igreja Católica?

A prática a que temos assistido por parte do governo de José Sócrates não me dá a mínima garantia que este venha a respeitar o que agora afirmou – avançar com a alteração da lei em caso de vitória do”SIM”, mesmo se o referendo se vier a revelar não vinculativo – antes antevendo como epílogo de todo este processo a manutenção de um quadro penal manifestamente desajustado.

A verificar-se esta hipótese, perdurarão um quadro penal injusto, a arrogância das hierarquias religiosas, como é o caso notório entre nós da Igreja Católica, os elevados proventos daqueles que arriscam, à margem da lei, a oferta dos serviços de “aborto” e os elevados riscos para as mulheres que não dispondo dos rendimentos suficientes para o recurso aos serviços legalmente praticados noutros países da Comunidades Europeia, se sujeitam ainda às sanções judiciais em vigor.

Muitos, como eu, que defendem a despenalização do aborto, fazem-no como forma de afirmação do direito e das liberdades individuais e absoluto repúdio do princípio da imposição teológica sobre essas mesmas liberdades.

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