domingo, 23 de julho de 2006

O MÉDIO ORIENTE

Há quase um mês que se registou um incidente na fronteira entre a Faixa de Gaza (território palestiniano) e o Egipto, traduzido num ataque há guarnição israelita de um posto fronteiriço próximo de Rafah. Esta acção foi reivindicada por um tal Comité de Resistência Popular, cujo porta-voz informou que contara com a participação de elementos do Hamas e de um grupo desconhecido, o Exército do Islão, destinada a vingar a morte de um dos líderes da organização – Djamel Abou Samhadana – morto umas semanas antes num raid aéreo israelita e dela resultou a captura de um soldado desta nacionalidade.

De pronto os palestinianos fizeram eco da disponibilidade para libertar o prisioneiro contra a libertação de centenas de mulheres e crianças palestinianas que Israel mantêm nas suas prisões. Quase à mesma velocidade o governo israelita de Ehud Olmert recusou negociar a libertação de quaisquer palestinianos, ameaçando invadir novamente a Faixa de Gaza caso o seu soldado não fosse libertado.

Cerca de 48 horas depois as forças militares de Israel (FDI ou Tsahal) iniciaram os bombardeamentos aéreos e de artilharia a que se seguiria a invasão de várias zonas daquele território palestiniano. Ao início dos primeiros bombardeamentos que atingiram alvos como a única central de produção eléctrica do território, pontes, estradas e instalações do governo palestiniano, os guerrilheiros do Hamas responderam com o lançamento de “rockets” Qassam sobre o território judaico.

A irredutibilidade das posições dos antagonistas manteve-se ao longo dos dias seguintes, continuando-se a assistir à sistemática destruição das poucas infraestruturas palestinianas, à detenção de ministros e membros do parlamento palestiniano e ao início da progressão de forças blindadas em direcção a Gaza.

Durante este período de tempo foi interessante assistir à passividade da comunidade internacional, que além de um ou outro apelo à moderação da resposta israelita se quedou por exigir a libertação do soldado capturado, quando não fez coro com a posição americana de declarar o direito de Israel à autodefesa. É verdade que sempre se foram organizando as habituais missões humanitárias, mas pouco mais… Raras foram as vozes que se ergueram para condenar a utilização da força bruta contra uma população indefesa e, pior ainda, já de si a viver em condições de extrema precaridade. Igualmente interessante foi assistir a imagens difundidas por diversas cadeias de televisão onde era possível constatar a deslocação dos blindados israelitas sobre campos palestinianos cultivados e estufas agrícolas (as mesmas que quando da retirada daquele território os ex-colonos judaicos deixaram intactas depois de principescamente indemnizados) isto bem à vista de estradas e outros caminhos.

Para documentar a forma como estava a decorrer a denominada operação “Chuva de Verão”, o LE MONDE escrevia no dia 8 de Julho que «(d)iversas associações israelitas de defesa dos direitos do homem pediram a intervenção do Supremo Tribunal para que o exército ponha fim a actos que parecem, segundo os seus termos, como uma "punição colectiva" de um milhão e meio de seres humanos, e não como uma "operação antiterrorista"»..

Pouco ou nada se disse ou escreveu sobre a coincidência da captura do soldado israelita com a data marcada para a assinatura entre o Hamas (partido maioritário no parlamento e que lidera o governo da Autoridade Palestiniana) e a Fatah (partido que tradicionalmente sempre liderou a luta pela libertação da Palestina e a que pertence o Presidente da Autoridade Palestiniana) de um acordo que além de pôr fim à eminência de um conflito aberto entre os dois grupos ainda deveria permitir o levantamento das sanções impostas por Israel e pelos EUA, estratégia em que foram seguidos pela UE, decretadas após o Hamas ter vencido as eleições realizadas no início deste ano e que se traduziram num bloqueio financeiro (é o estado de Israel que continua a controlar as fronteiras dos territórios palestinianos e a cobrar os respectivos impostos de uma “nação” que depende quase exclusivamente da ajuda internacional para sobreviver) que estava a asfixiar a débil economia palestiniana.

O governo israelita foi mantendo intacta a sua estratégia de asfixia sobre Gaza até que no dia 12 de Julho o Hezbollah, grupo xiita libanês, atacou uma patrulha israelita na zona fronteiriça entre Israel e o Líbano e capturou dois soldados israelitas os quais propôs libertar contra a libertações de prisioneiros libaneses e palestinianos em Israel.

Dividido entre dois fogos, o governo israelita lançou um ultimato ao Hezbollah e depois decretou um bloqueio naval e iniciou uma vaga de bombardeamentos sobre território libanês, que há semelhança do que já se registara na faixa de Gaza ultrapassava em muito o objectivo de pressionar aquele grupo a libertar os prisioneiros. Perante a inoperância da ONU e do seu Conselho e Segurança, onde os EUA têm vetado todas as decisões relativas a este novo conflito, Israel e o Hezbollah têm mantido uma rotina diária de bombardeamentos mútuos, sendo aqui de destacar que este movimento guerrilheiro tem revelado algumas capacidades acima do esperado, nomeadamente mediante a utilização de mísseis de curto alcance, com os quais já atinge a cidade israelita de Haifa e já produziu estragos numa das fragatas que mantém o bloqueio às águas territoriais libanesas.

De acordo com alguns analistas ocidentais o Hezbollah, organização guerrilheira que tal como o Hamas palestiniano se viu incluída na lista das organizações terroristas mundiais, receberá apoio logístico e material do Irão e da Síria e deverá dispor no seu arsenal de diversos tipos de “rockets” e mísseis de curto alcance, com os quais tem estado a alvejar diversos pontos do território israelita. Importa porém destacar que os mais utilizados têm sido os de mais curto alcance e que não dispondo de sofisticados sistemas de orientação acabam por funcionar mais como instrumentos de perturbação que de real produção de estragos (materiais ou humanos), contrariamente ao que sucede com as acções aéreas que Israel tem concretizado sobre a Faixa de Gaza ou o Líbano, utilizando mísseis e bombas guiadas por laser.

A confirmar este dado vejam-se as imagens dos estragos produzidos em Haifa (Israel) pelos “katyusha” do Hezbollah com o estado em que se encontra Beirute, a capital do Líbano. Estas imagens dão a perfeita noção da desproporção dos meios tecnológicos envolvidos, mas também da forma como o governo de Ehud Olmert está a encarar uma solução militar para esta crise.

Se, como pretendeu inicialmente o governo israelita, a sua actuação visa apenas a libertação dos seus três soldados capturados, parece-me que as acções desenvolvidas dificilmente a isso conduzirão. Criadas as condições para que as facções mais extremistas tomem a condução dos destinos dos confrontos, dificilmente estes cessarão em breve, tanto mais que talvez a todos os intervenientes, directos e indirectos, interesse particularmente o desenvolvimento deste novo foco de conflito.

Embora para Israel esta situação possa demonstrar a falência do modelo de “fixação unilateral das fronteiras”, como dizia preconizar Ariel Sharon, nem por isso deixa de apresentar as suas potencialidades, expressas na possibilidade de continuar a adiar uma solução estável para a questão palestiniana. Aos seus indefectíveis aliados americanos, este novo conflito poderá ajudar a distrair algumas atenções das situações que vivem no Afeganistão, onde recentes notícias dão conta do aumento das acções dos “talibans”, e no Iraque, onde o fim da presença militar americana parece cada vez mais distante.

Ao Irão, qualquer acção no Médio Oriente que possa ajudar a desviar atenções (e esforços) sobre a questão do seu programa de desenvolvimento nuclear, será útil e desejável e ainda mais se dela poder emergir numa posição de consolidação das suas aspirações a potência regional. À generalidade dos países árabes exportadores de petróleo, que muito se preocupam com os “irmãos palestinianos” mas para quem a questão fundamental ainda continua a ser a manutenção do “negócio” do petróleo e da hegemonia da sua “família” no poder, a existência de um conflito que mantenha Israel e os americanos ocupados pode sempre revelar-se útil par aos respectivos “negócios”.

Um pouco mais a norte a Rússia não enjeitará a oportunidade deste conflito, com a insegurança que trará ao mercado mundial da energia, para procurar cimentar a sua posição no segmento do gás natural e simultaneamente ver atrasado o lançamento do “pipeline”submarino entre a Turquia e Israel com a consequente abertura de uma nova rota para abastecimento do muito lucrativo mercado asiático.

Por último a UE, que fruto da ausência de uma efectiva política externa comunitária (ainda e sempre prejudicada pela inexistência de um exército único) continua dividida nos seus interesses e nas suas iniciativas, com a França a declarar-se favorável a um cessar-fogo imediato, a Inglaterra a apenas agora dar os primeiros sinais de também condenar a desproporção da actuação israelita, depois de inicialmente ter alinhado (novamente) pelas posições americanas e a Alemanha a mostrar algum protagonismo e a encabeçar uma tentativa de mediação entre as partes.

Qualquer que venha a ser a solução para mais este conflito, parece-me cada vez mais evidente que uma situação de efectiva e duradoura pacificação na região só será alcançada quando todas as partes entenderem que ninguém poderá sair fortemente beneficiado no processo. Se observarmos a evolução dos territórios judaico e palestiniano nos últimos 60 anos, chegaremos à conclusão que dos dois territórios inicialmente previstos em 1947, pouco ou nada resta enquanto território palestiniano. Aproveitando as oportunidades criadas pelas sucessivas guerras que se foram registando Israel acaba hoje por controlar um território muito superior ao inicialmente votado na Assembleia-geral da ONU em 1947. O primeiro alargamento da sua área ocorre logo com o fim da primeira guerra israelo-árabe, em 1949; depois na sequência da Guerra dos Seis Dias de 1967, Israel ocupa os Montes Golan, a parte oriental de Jerusalém, a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e a península do Sinai. Embora já tenha devolvido vários dos territórios conquistados nessas guerras, a sua área cresceu quase quatro vezes em relação ao território que detinha no início.

Mas, além do crescimento registado Israel assegurou ainda a importante vantagem de controlo das fontes de água (algo que numa zona semidesértica é muito mais importante que o controlo dos poços petrolíferos).

Esta é aliás uma das razões, oficialmente nunca referida, para Israel continuar a manter a ocupação dos Montes Golan.

A relevância atribuída por Israel a este factor é tanto maior que nos acordos de Oslo logrou manter o controlo sobre as áreas da Cisjordânia irrigadas pelos afluentes do Rio Jordão e reduzir a viabilidade do próprio estado Palestiniano confinado às áreas agricolamente mais pobres.

Apesar de todas estas vicissitudes e dos muitos estragos humanos e materiais que as sucessivas guerras entre judeus e árabes têm registado ainda poderá haver uma esperança de algum dia vermos este conflito sanado?

Os mais cépticos dirão que será muito difícil, tanto mais que judeus e árabes continuam a formar as gerações mais novas sob o estigma da guerra. Isto aplica-se tanto aos fanáticos muçulmanos como aos não menos fanáticos judeus, pelo menos a atestar por imagens como esta onde jovens judias escrevem “mensagens” nas granadas de artilharia a serem utilizadas para os bombardeamentos ao Líbano. A par com este culto do ódio, Israel tem ainda primado pela utilização de uma política de permanente vitimização (ainda e sempre com recurso ao martírio do Holocausto) e de criminalização das iniciativas palestinianas, quando na realidade eles próprios se revelam tanto ou mais criminosos.

Outros, mais optimistas como Daniel Vernet que escrevia no LE MONDE «Tudo, ou quase tudo, já foi ensaiado menos um envolvimento profundo da comunidade internacional, quer dizer antes de mais os EUA, a favor de um compromisso cujas grandes linhas são conhecidas. Com presença militar no terreno, que os americanos recusam porque os sucessivos governantes israelitas nunca quiseram. A desgraça que representa a política norte-americana para o Médio Oriente, do Iraque ao Líbano, do Irão à Palestina, deveria levá-los a mudar de opinião» parecem ainda acreditar que uma mudança de política e de estratégia poderá conduzir à resolução do problema.

Por mim, vejo com dificuldade que os EUA possam vir a desempenhar, no curto prazo, outro papel além daquele a que Israel e os “lobies” judaicos o têm reduzido – apoiante fiel e sempre disponível fornecedor de sofisticado equipamento militar – tanto mais que a situação que criaram no Afeganistão e no Iraque os desqualifica como elemento moderador junto de qualquer nação ou grupo árabe. Exemplo desta limitação foi a estratégia americana seguida recentemente no Líbano, onde a pretexto do envolvimento da vizinha Síria no assassinato de Rafik Hariri conseguiram a retirada do exército sírio daquele país; sem estruturas nem capacidade adequada, o exército libanês acabou por deixar ao Hezbollah a ocupação militar do sul do seu território (há semelhança do que já acontecera em 1985 quando após a retirada de Israel do Líbano, aquela parte do território foi ocupada pela OLP) e assim abriu a possibilidade ao início de mais este conflito.

Os tempos próximos dirão até que ponto a situação actual não poderá evoluir para uma escalada no conflito. A forma obviamente exagerada como Israel tem vindo a bombardear o território libanês, provocando um número de refugiados estimado em mais de meio milhão que se dirigem na direcção da Síria, as próprias tentativas iniciais de provocar um envolvimento directo da Síria, quando nos primeiros dias do conflito a aviação judaica sobrevoou território sírio, podem muito bem constituir parte de um há muito elaborado plano para estender o conflito a todo o Médio Oriente e assim encobrir uma manobra militar para aniquilar o plano nuclear iraniano.

Poder-se-á classificar a ideia de maquiavélica, mas que as peças do “puzzle” encaixam com total sentido não pode ser negado e a eventual morte de uns milhares de árabes poder-se-ão sempre contabilizar entre os agora tão na moda danos colaterais. O fundamental é assegurar que nenhum estado da região possa vir a constituir a mais pequena ameaça à política judaica na região, nem à dos seus aliados americanos no mundo.

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