segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

O CULTO DA PERSONALIDADE

Quem ao longo do fim-de-semana acompanhou as notícias (escritas e audiovisuais) neste país não pode deixar de notar que não houve jornal ou canal de televisão que não dedicasse espaço e tempo (e em muitos casos em quantidade substancial) à memória de Sá Carneiro.

País de saudosistas, dirão alguns em forma de apreciação, embora eu prefira outro tipo de abordagem.

Ao final do dia dei comigo a pensar que já tinha assistido a tudo aquilo. A propósito de algumas figuras de vulto mundial é normal assistir-se ao desfiar de panegíricos nas respectivas datas evocativas; este tipo de actividade, profundamente louvável sempre que se trate de figuras de relevo na cultura mundial, tende a ganhar outro tipo de contornos quando aplicada a personalidades da vida política. Neste capítulo específico é inevitável a tendência para o endeusamento das figuras (algo que não me repugna num artista ou pensador) com a consequente cascata de fiéis que sempre acompanham estas situações e delas procuram tirar dividendos.

Aquilo a que assistimos neste fim-de-semana, pior que uma tentativa de retorno à época em que o culto da personalidade era a tónica dominante da nossa sociedade, foi uma encenação orquestrada de campanha eleitoral.

Como explicar que de repente toda a gente começou a escrever e a falar sobre Sá Carneiro e Snu Abecassis?

Provavelmente muitos dos que agora falaram na sua integridade e firmeza de carácter foram os mesmos que em vida o criticaram pela ligação extraconjugal que mantinha, da mesma forma que muitos que hoje se reclamam da sua herança política foram os que no seu tempo se lhe opuseram.

Como explicar, de repente, este rememorar de uma figura que tendo tido importância na sua época deixou a pairar grandes dúvidas sobre a aplicabilidade prática das suas ideias, como se viu de imediato com o fracasso do seu candidato presidencial e o rápido desagregar da coligação partidária que forjara. É óbvio que ficará sempre a dúvida sobre como tudo teria corrido sem a sua morte, mas seguramente pouco poderia ter feito para evitar muito do que aconteceu, a começar pelo facto de ter tomado a opção errada quando aceitou o cargo de primeiro-ministro e abandonou o de presidente do PPD (Sá Carneiro tinha um inegável sentido político e uma fortíssima oratória mas um reduzido sentido de estadista).

Aliás sintomático deste aproveitamento político foi a declaração de Cavaco Silva à saída do serviço religioso celebrado em memória do antigo primeiro-ministro (outra das sublimes hipocrisias, Sá Carneiro vivia à margem das leis religiosas, recordam-se?) quando lhe atribuiu uma dimensão de grande estadista do século XX. O que na realidade o candidato a Belém pretendia era tão-somente colar-se a esse mesmo epíteto.

À míngua de argumentos ou ideias próprias os nossos políticos (e Cavaco Silva é um paradigma deste tipo de actuação) persistem em “colar-se” àqueles que tiveram alguma relevância no passado, como se os tempos, os problemas e as pessoas não evoluíssem.

Pior que a louvável iniciativa de recordar um “compagnon de route” é transformar a memória de alguém naquilo que hoje serve os interesses pessoais de outros e utilizar toda este envolvente de contornos mais ou menos emocionais para embalar a população de um país que, infelizmente, sabemos não possuir níveis de formação e de cultura (por acção ou omissão dos sucessivos responsáveis pela governação deste país) capazes de discernirem este tipo de comportamentos abjectos e dar-lhes a resposta eleitoral que merecem.

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