terça-feira, 27 de dezembro de 2005

AS ESTATÍSTICAS E A “REALIDADE”

No mesmo dia em que são conhecidas as verbas levantadas nas máquinas MULTIBANCO e as das compras efectuadas nas lojas pela mesma via (de acordo com os dados fornecidos pela SIBS, entidade que gere aquele sistema de pagamentos), constatando-se que os portugueses gastaram nesta quadra 3,7 mil milhões de euros, veio o INE (Instituto Nacional de Estatística) revelar que o endividamento das famílias portuguesas atingiu os 118% do rendimento disponível.

Para se ter bem noção do significado deste número refira-se que o Banco de França, num relatório ontem publicado vem chamar a atenção de forma muito enfática para o facto de idêntico indicador naquele país ter atingido os 62% (pouco mais de metade do valor nacional), mas que aquele banco central entende muito preocupante.

Paralelamente com este crescimento constata-se que também o montante global de crédito à habitação em Portugal aumentou 11 por cento em 2004, bem como o número de viagens de residentes em Portugal para o estrangeiro em férias e lazer, que aumentou cerca de 50%, no mesmo ano.

Este conjunto de indicadores espelha a realidade normalmente descrita por muitos economistas nacionais sobre a economia portuguesa. De um modo geral diz-se que os cidadãos nacionais vivem acima das suas posses, facto comprovado pelo elevado nível de endividamento, que persistem nesta estratégia consumista (o indicador tem crescido de forma regular nos últimos anos) e, pior, a utilizam para financiamentos de luxo ou supérfluos (como pode ser o caso do aumento do número de viagens para o estrangeiro).

Não pretendo contradizer a realidade dos números, nem aqueles que fazem da sua análise objecto de um trabalho contínuo e cuidado, mas estou em crer que talvez haja uma outra explicação para este fenómeno.

Se atentarmos no elevado valor movimentado através do sistema MULTIBANCO entre 1 e 24 de Dezembro deste ano (que para mais representa um acréscimo de 12% face ao período homólogo de 2004) surge-me a dúvida de como é que uma população que beneficiou de aumentos salariais ao longo de 2005 em média bem inferiores a 3%, sofreu, ao longo do mesmo período de uma inflação seguramente superior a esses mesmos 3%, ainda consegue aumentar o consumo naquela proporção. Será que o que explica este fenómeno é apenas o crescimento do endividamento?

E se parte dos 3,7 mil milhões de euros movimentados tiverem origem noutro “ponto” da nossa economia?

Onde? Naquele onde as relações de trabalho, de investimento, de financiamento e de fiscalidade não cumprem todas as regras do mercado – a chamada economia paralela – e que segundo os especialistas deverá rondar os 30% da economia real (pessoalmente não me espantaria se já fosse superior) e que tem apresentado taxas de crescimento exponenciais face ao crescimento do PIB nacional.

Como é sabido este indicador mede a riqueza (bens e serviços) produzidos em território nacional tomando por base os valores contabilizados pelos agentes económicos. Ora qualquer um de nós se confronta diariamente com pequenas transacções (às vezes não tão pequenas como isso) - como o café, tomado no balcão da pastelaria, o jornal, comprado na esquina da rua, aquela consulta médica, que só se conseguiu obter por se prescindir do respectivo recibo, a reparação do televisor ou da máquina de lavar, que um “tipo conhecido” nos resolveu, as compras que todos fazemos no “mercado da rua” porque os produtos são um pouco mais baratos, etc. etc.... – que por ausência de contabilização não contribuem para o produto final, mas cujo valor termina no “bolso” de alguém e livre de impostos.

Sem querer justificar o injustificável nível de endividamento das famílias portuguesas, em parte fruto de uma política governativa relativa à habitação que lhes impõe o endividamento, noutra fruto do baixo nível dos salários nacionais e culminando numa prática bancária laxista do ponto de vista do risco e imperiosa do ponto de vista do lucro, sempre gostava de ver estes mesmos resultados ponderados pelo peso da economia paralela, que neste país há muito deixou de ser um recurso de sobrevivência para passar a forma principal de actividade de muitos dos agentes económicos nacionais.

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