quarta-feira, 14 de novembro de 2012

MERKIAVEL


Em especial quando decorre na Europa uma importante contestação às políticas de austeridade eleitas como solução no espaço europeu para o combate à crise económica e financeira que ameaça subverter o modelo de estado europeu construído após a II Guerra Mundial e quando (para o melhor e o pior) a actual figura política de proa é a chanceler alemã, importa alargar as perspectivas de análise da figura e das suas políticas e outros sectores (e outras opiniões) que nem sempre encontramos na comunicação social nacional.

Veja-se o abjecto trabalho realizado pela generalidade dos canais televisivos sobre uma visita de estado que mais pareceu uma inspecção efectuada por um qualquer senhor feudal e à qual nem sequer faltaram as devidas bajulações e demais salamaleques.


Afora, como escreveu Mário Soares no DN, a percepção de que «…o povo português não gosta da senhora Merkel nem a chanceler do nosso povo…» e a habitual troca de piropos políticos (com especial destaque para o que assegura que «Merkel diz que quer Portugal feliz» ou o de que «Merkel elogia Portugal por cumprimento “excelente” do memorando») entre “recados”, como o de que «Merkel diz não ver razões para renegociar com a “troika”», que nova dimensão trouxe a visita da senhora?

Procurando contribuir para um melhor e mais diversificado conhecimento da personagem que muitos apontam como a “condutora” da Europa, aqui deixo uma tradução dum artigo publicado esta semana no LE MONDE; da autoria do filósofo e sociólogo alemão Ulrich Beck:

«Angela Merkel, a nova Maquiavel

Muitos são os que vêem na chanceler alemã a rainha sem coroa da Europa. Quando fazemos a pergunta de onde vem o poder de Angela Merkel, é referida uma das características que definem sua maneira de ser: uma habilidade maquiavélica.

De acordo com Nicolas Maquiavel (1467-1529), o primeiro pensador a teorizar sobre a natureza do poder, o príncipe só deve manter sua palavra da véspera se isso lhe trouxer benefícios. Se transpuséssemos esta máxima para a situação actual, daria: é possível fazer-se o oposto do que se disse ontem, se isso aumentar as hipóteses de ganhar as próximas eleições. As afinidades políticas entre Merkel e Maquiavel - o famoso modelo Merkiavel, como eu lhe chamo – assentam em quatro basicamente componentes projectados para se complementar uns aos outros.

1. A Alemanha é o país com o mais rico e economicamente mais poderoso da União Europeia. Na actual crise financeira, todos os países endividados dependem da boa vontade dos alemães estarem dispostos a oferecer as garantias aos créditos necessários. O maquiavelismo da chanceler assenta no facto se abster de tomar partido no conflito virulento que opõe os arquitectos da Europa e os separatistas - ou melhor, ela está aberta para as duas opções.

Ela não se solidariza co os europeus (nem Alemanha nem no exterior) que em clamor exigem garantias alemãs, e não suporta a fracção de eurocépticos que se opõem a qualquer ajuda. A Srª Merkel prefere - e esta é a ironia de sua postura maquiavélica – fazer depender a disposição da Alemanha em conceder créditos à disposição dos países endividados para aceitarem as condições da política alemã de estabilidade. Este é o primeiro princípio de Maquiavel: quando se trata de ajudar os países endividados com dinheiro alemão, a posição de Angela Merkel não é um sim sincero nem um não definitivo, antes um “nim" entre os dois.

2. Como é que é possível passar esta posição paradoxal para a prática política? Segundo Maquiavel, conviria aqui fazer prova de virtude, misturando energia política e combatividade. E aqui colocamos nós o dedo doutra forma de ironia: o poder de facto de Merkiavel baseia-se no desejo de não fazer nada, na sua tendência para não agir ou agir mais tarde, na hesitação. A arte da procrastinação selectiva, mistura de indiferença, de rejeição da Europa e do empenho europeu está na origem da posição de força da Alemanha numa Europa atingida pela crise.

Certamente, há muitas razões por que hesitar - a situação global é tão complexa que ninguém é capaz de lidar com ela, muitas vezes não há escolha entre alternativas cujo risco não podemos medir. Mas essas razões justificam ao mesmo tempo, a política de procrastinação como uma estratégia de poder. Angela Merkel tem levado a um ponto de perfeição a forma de soberania involuntária legitimada pela crença na austeridade.

O novo poder alemão na Europa não é, portanto, baseado, como foi o caso no passado, na violência, como "ultima ratio". Ela não precisa usar nenhuma arma para impor a sua vontade aos outros estados. É por isso que é absurdo falar de "Quarto Reich". A nova potência baseada na economia é muito mais flexível e mais móvel: está presente em todos os lugares, sem a necessidade de lançar as tropas.
3. É desta forma que pode ser feito o que parecia ser a quadratura do círculo: reunir numa única pessoa a capacidade de ser reeleita no seu próprio país e de se fazer passar por um arquitecto da Europa. Mas isso também significa que todos os passos necessários para salvar o euro e a União Europeia devem passar primeiro o seu teste de aptidão dentro das fronteiras alemãs - se eles são compatíveis com os interesses da Alemanha e da posição de força da chanceler.

Quanto mais os alemães se mostram críticos da Europa, mais eles se sentem cercados por países povoados de devedores que não querem senão a carteira dos alemães, e mais difícil será manter essa grande diferença. Merkiavel respondeu a este problema, jogando a cartada da "Europa alemã", que é um verdadeiro trunfo, dentro e fora das fronteiras da Alemanha.

Na política interna, a chanceler tranquiliza os alemães, que temem pelas suas pensões, pela sua bandeira e pelo milagre económico, enquanto defende a política de rigor protestante do “não” - bem equilibrada - ao mesmo tempo que aparece como o mestre-escola só ele capaz de dar lições à Europa. Ao mesmo tempo, ela desenvolve, nos assuntos externos, a sua "responsabilidade europeia", incorporando os países europeus numa política do mal menor. A sua oferta tem que também vale como isco resume-se na seguinte fórmula: mais vale o euro ser alemão que não haver euro nenhum.

Neste sentido, Merkel continua a ser um bom aluno de Maquiavel. "Vale mais ser amado do que temido?" questiona-se este em «O Príncipe». "A resposta é que é preciso uma coisa e a outra, mas como é difícil conciliar as duas, é muito mais seguro ser temido do que amado, se for preciso abdicar duma delas. " A chanceler alemã usa este princípio selectivamente: quer ser temida no exterior e amada no seu país - talvez por ter ensinado os outros países a temer. Neoliberalismo brutal no exterior, consenso matizado de social-democracia no interior: tal é a fórmula que permitiu a Merkiavel consolidar a sua posição de força e da Europa alemã.

4. Angela Merkel quer prescrever e até impor aos seus parceiros até mesmo o que passa por ser uma fórmula mágica na Alemanha, a o nível económico e político. O imperativo alemão é o seguinte: Economizar! Economizar ao serviço da estabilidade. Mas, na realidade, esta política económica mostra que é principalmente sinónimo de cortes nas pensões, na educação, na investigação, nas infra-estrutura, etc. Estamos a lidar com um neoliberalismo de extrema violência, que vai ser agora integrado na Constituição Europeia sob a forma dum pacto orçamental - sem respeitar uma opinião pública europeia muito fraca para resistir.

Estes quatro componentes do merkiavelismo – a ligação feita entre soberanismo e liderança da construção europeia, a arte da procrastinação como uma estratégia para o alinhamento, a primazia dada às manobras eleitorais e, finalmente, a cultura alemã da estabilidade – apoiam-se mutuamente e constituem o núcleo duro da Europa alemã.

E há ainda em Merkel um paralelo com o que Maquiavel chamou “necessita”, essa emergência a que o príncipe deve ser capaz de reagir: a Alemanha como “hegemonista simpático”, posição alardeada por Thomas Schmid, director do diário Die Welt, vê-se forçada a colocar o que resulta dum perigo sobre o que é proibido pela lei. Para estender a toda a Europa, de forma impositiva, a política de austeridade da Alemanha, as normas democráticas podem, segundo Merkiavel, ser flexibilizadas ou mesmo ignorada.

É certo que assistimos actualmente à aparição duma frente de oposição constituída por todos os que pensam que a rápida avançada da europeização prejudica os direitos do Parlamento alemão e é contrária à lei fundamental o equivalente da Constituição. Mas, numa hábil manobra Merkel consegue instrumentalizar esses bastiões da resistência, incorporando-os na sua política de domesticação pela procrastinação. Mais uma vez, ela ganha de duas maneiras: mais poder na Europa e maior popularidade no interior, enquanto recolhe o apoio dos eleitores alemães.

Pode ser, no entanto, que o método Merkiavel se aproxime gradualmente dos seus limites, porque deve ser reconhecido que a política de austeridade alemã não registou ainda qualquer sucesso. Pelo contrário, a crise da dívida ameaça também agora a Espanha, a Itália e talvez em breve a França. Os pobres ficam ainda mais pobres, as classes médias estão ameaçadas de desmantelamento e continua sem se ver o fim do túnel.

Neste caso, esse poder poderia levar ao surgimento dum contrapoder, tanto mais que Angela Merkel perdeu um de seus mais fortes aliados na pessoa de Nicolas Sarkozy. Desde que François Hollande chegou ao poder, o equilíbrio foi alterado. Os representantes dos países endividados poderiam associar-se com os promotores da Europa em Bruxelas e Frankfurt para desenvolver uma alternativa para as políticas de austeridade da Chanceler alemã, tantas vezes populistas, essencialmente centradas apenas nos interesses alemães e motivadas pelo medo da inflação, e repensar o papel do Banco Central Europeu, reorientando-a para a política de crescimento do banco central dos EUA.

Outro cenário é igualmente possível: pode haver um duelo entre Angela Merkiavel, a europeísta hesitante, e Peer Steinbrück, candidato do SPD contra Merkel em 2013, entusiasta do xadrez que descobriu uma vocação à Willy Brandt a nível europeu. Se a fórmula vencedora deste último era a "mudança através da aproximação" [entre o Oriente e o Ocidente], a fórmula de Steinbrück poderia ser: mais liberdade, mais segurança social e mais democracia através da Europa. Poderíamos, então, assistir a uma disputa entre dois pró-europeus. Ou Peer Steinbrück consegue levar Merkiavel ao tapete a nível europeu; ou Merkiavel vence porque descobriu a importância estratégica do pensamento europeu, e será convertida na fundadora dos Estados Unidos da Europa.

De uma forma ou de outra, a Alemanha enfrenta a grande questão da Europa ser ou não ser. Tornou-se demasiado poderosa para suportar o preço de não tomar uma decisão.

Ulrich Beck»

A importância do texto ultrapassa o facto de revelar que até no interior do seu país de origem existem apreciações críticas, por se tratar duma opinião dum cidadão alemão que nunca perde de vista a sua posição de cidadão europeu e porque a crise das dívidas denominadas em euros só poderá ser resolvida através duma estratégia europeia que urge definir e implementar mas que o fundamentalismo dos neoliberais, as gincanas políticas de Angela Merkel e o servilismo dalguns dos seus parceiros europeus, comprometem irremediavelmente.

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