terça-feira, 29 de março de 2011

DEIXEM-SE DE TRETAS...


Ao ler as últimas crónicas dos habituais articulistas económicos do DN[1] (António Perez Metelo e João César das Neves) nem parece que a mais recente das crises nacionais é de natureza meramente política; ou afinal até talvez pareça, pois duma forma ou doutra ambos escolhem uma certa abordagem sobre a questão do défice e dos desequilíbrios macro-económicos.

Enquanto para Perez Metelo a questão central é o facto de não podermos continuar a necessitar anualmente dum endividamento de quase duas dezenas de milhares de milhões de euros, pelo que «...é mesmo preciso reduzir o endividamento do Estado, das empresas e das famílias» havendo apenas que proceder à escolha duma das vias conhecidas (a do PS que preconiza o recurso a uma política de austeridade que deverá prolongar-se por vários anos e a do PSD que aponta para a «...redução do preço do factor trabalho e a sua mobilidade irrestrita...»); já para César das Neves a receita é bem mais simples, e ele fornece-no-la benevolamente, bastando, para tanto, que as famílias portuguesas sigam fielmente os três passos preconizados pelo professor - apertem o cinto, trabalhem mais e deixem-se de tretas.

A frontalidade de César das Neves merece encómios, especialmente quando cotejada com a lisura e a suavidade de modos de Perez Metelo, pois se no essencial ambos dizem o mesmo, o primeiro apresenta o inegável mérito de facilitar o trabalho de interpretação, ao deixar-se de tretas e preconizar sem peias nem entraves que sejam as famílias e os trabalhadores por conta de outrem a suportar o grosso dos custos e dos sacrifícios... e sem protestos!

No conjunto, nem um nem o outro, esboçam sequer a mínima dúvida ao princípio axiomático da inevitabilidade das políticas de austeridade e se Perez Metelo (e com ele os partidários e os apólogos do PS e de José Sócrates) até parece genuinamente preocupado com o sentimento duma «...população cuja mediana de rendimento não chega aos 800 euros e, em média, declara 16 100 euros anuais em sede de IRS, [e para quem] parece inexplicável que aquilo de que dispõe não esteja alinhado com o esforço que vai fazendo», mas que rapidamente esquece, César das Neves prefere a pura e dura afirmação de cátedra: façam com eu digo, nõa façam como eu faço...

Quanto à explicação das certamente incomensuráveis vantagens da opção de transferir para o factor trabalho os custos duma crise e do conjunto das políticas macro-económicas até agora aplicadas e que invariavelmente beneficiaram o factor capital, ambos recorrem ao silêncio e não seguramente por pudor, antes quase certamente por nem sequer as terem equacionado.

Um e outro – apesar do que os distingue – pertencem à mesma grande família dos teóricos que há muito deixaram de questionar a certeza e a justeza das suas teorias (aquelas que lhes foram ensinadas) e de prestar atenção à hipótese de existirem alternativas à corrente de pensamento monolítico que há duas ou três décadas se vem instilando entre as elites.

Conscientemente ou não, ambos prestam o seu serviço à corrente política dominante e exibindo de forma mais ou menos clara a marca da conformidade, em caso algum arriscam um passo fora dela.


Quando a crise se aprofunda e as ideias novas parecem faltar, mais que nunca, importa renovar os modelos e a forma de olhar para os problemas.

Recusemos o ferrete da desgraça imposta, mas façamo-lo de forma consciente e construtiva – existem outras alternativas além das defendidas por Perez Metelo e por César das Neves[2] – e tomemos como exemplo disso mesmo as palavras ontem proferidas em Lisboa pelo ex-presidente brasileiro, Lula da Silva: «O FMI não resolve o problema de Portugal, como não resolveu o problema do Brasil, como não resolveu outros problemas. Toda a vez que o FMI tentou cuidar das dívidas dos países, o FMI criou mais problemas para os países do que soluções»[3].

Se não a convicção, pelo menos o rigor científico, devia levar os comentadores, analistas e demais jornalistas a informar-se e a divulgar outras ideias além daquelas com que diariamente os políticos enchem os seus discursos.


[1] As crónicas referidas são: «A rasteira e o só mais um» de António Perez Metelo e «Caldo de léria» de João César das Neves.
[2] Além das que tenho referido em “posts” anteriores, como sejam a necessidade de fazer retornar o poder da criação de moeda à esfera pública, a renegociação das dívidas públicas e a imposição de regulamentação ao funcionamento do sector financeiro por forma a reduzir a dimensão e a influência dos fenómenos especulativos na formação dos preços dos bens comerciais e de capital, veja-se um recente artigo de Paul Krugman, publicado no THE NEW YORK TIMES com o título «The austerity delusion» e no qual além de estabelecer comparações entre as opções seguidas nos EUA (priveligiando o crescimento do PIB e a criação de emprego) e na UE (apostando tudo nas vantagens da reduçaõ dos défices) ainda analisa os seus resultados.
[3] Citação de Lula da Silva retirada da notícia do NEGÓCIOS «O FMI não resolve o problema de Portugal»

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