domingo, 27 de março de 2011

BRICOLAGEM


Já se começa a perder a conta ao número de vezes que os líderes europeus reuniram para concertar uma estratégia de combate à crise que continua a assolar o euro, sem que até à data tenham logrado algo mais que discursos de circunstância e algumas medidas de duvidosa eficácia. Basta ler notícias como esta do NEGÓCIOS que dá conta que a «União Europeia aprova pacote de medidas contra a crise» para se compreender que nada de novo foi tentado, pelo que apenas se insiste na prática de medidas já conhecidas e no recurso a pequenos trabalhos de bricolagem.


Corolário do avolumar do endividamento dos estados economicamente mais frágeis e resultado directo duma crise económica e financeira global que tarda em ser resolvida, os líderes europeus dividem-se sobre a actuação e têm ao longo dos meses adiado sucessivamente para a reunião seguinte a definição de uma solução que além de cada vez mais tardia se revela mais ilusória.

Decorrido quase um ano sobre a intervenção decidida a favor da Grécia – com o objectivo de salvaguardar aquele estado-membro das dificuldades financeiras resultantes duma forte subida das taxas de juro da sua dívida soberana – e cerca de seis meses sobre idêntica actuação a favor da Irlanda, os líderes europeus parecem continuar sem entender a origem e a verdadeira essência do problema que têm de enfrentar.

Persistindo não só numa abordagem individualizada – tratando cada estado-membro como um problema isolado – mas principalmente na aplicação de uma estratégia manifestamente desajustada para a dimensão e para o real objectivo dos acontecimentos, a Comissão Europeia, o BCE e os estados da Zona Euro mais não têm feito que adiar o problema, talvez na vã esperança que o tempo resolva a sua própria falta de capacidade. Persistindo na negação da existência duma estratégia financeira concertada contra o euro (sirva esta para escamotear as fragilidades do dólar americano ou da libra inglesa, ou enquanto actuação meramente predatória de ataque aos mais fracos para a realização de maiores lucros), recusando-se a admitir o fracasso da introdução da moeda única como factor gerador de convergência entre as economias da Zona Euro, bem como qualquer hipótese de actuação firme e concertada de oposição a quem especula contra a moeda europeia e preferindo apontar como responsáveis (e últimos pagadores) os cidadãos dos estados-membros mais flagelados, os líderes europeus, sob pressão da Alemanha, têm pactuado e contribuído abertamente para o alastramento da crise.[1]

O próprio processo de resgate da Grécia e da Irlanda foi despoletado mais pela necessidade de salvar os bancos alemães, franceses e ingleses (como se pode confirmar pelo quadro abaixo) que pela preocupação no apoio àqueles Estados. A confirmá-lo veja-se a lentidão com que tem sido abordada a situação portuguesa e o facto dos bancos mais expostos à dívida pública portuguesa serem os da vizinha Espanha (outro dos PIIGS e o possível seguinte da lista).


De cimeira em cimeira os líderes europeus não só têm adiado uma resposta eficaz ao problema como persistem na recusa em compreenderem a sua verdadeira dimensão: por um conjunto de razões – que vão desde a incúria, à força das circunstâncias – os estados europeus, tal como as famílias, privados de rendimentos adequados – em especial devido à redução de impostos sobre o capital e após a eclosão da crise do “subprime”, em 2007 – endividaram-se em excesso e/ou viram reduzida a riqueza produzida internamente, factos que se recusam a aceitar, da mesma forma que persistem em não aplicar as medidas que efectivamente poderão contribuir para resolver a situação.

Assim, enquanto os dirigentes dos estados periféricos da UE (os tais PIIGS) não se conformarem a aceitar a premissa lógica de que face ao fraco crescimento das suas economias a amortização da dívida é impraticável[2] e que, face à reduzida riqueza produzida, a única medida realista é a da renegociação da dívida pública, não constituírem uma frente comum para obterem dos restantes membros o reconhecimento da especificidade da sua situação e a necessidade de aplicação de programas alternativos (que se centre mais na necessidade de crescimento das economias que no dogma da redução do défice ), a situação não registará melhoras e um após outro cada um dos estados-membros tornar-se-á o alvo preferencial daqueles cuja principal actividade é a da realização de ganhos nos mercados financeiros. A prazo, e se nada for feito em contrário, nem as economias mais desenvolvidas da Zona Euro escaparão, pois se não chegarem a ser objecto directo de ataques especulativos verão progressivamente reduzido o seu crescimento económico devido à retracção nos mercados domésticos dos vizinhos para onde exportam.

Seja sem uma prévia uma redução parcial da dívida ou um aumento no prazo da sua amortização, ou até sem uma combinação das duas, todos os esforços de redução da despesas ou de aumento das receitas estão condenados ao fracasso e não resultarão (em especial no caso da redução da despesa) senão numa ainda maior estagnação das economias. Prova disso mesmo é que as previsões de quase todos os organismos internacionais (Eurostat, OCDE, FMI) apontam para nova quebra do PIB português para o ano em curso, fruto óbvio das medidas de contenção salarial e de aumento de impostos decididos pelo governo de José Sócrates e aplaudidas pelos parceiros comunitários, com a Alemanha á cabeça. 

A solução de restruturação das dívidas (seja mediante a redução do capital e/ou aumento do prazo de amortização), embora raramente ou nunca referida por políticos, analistas e demais comentadores senão para pronta escarmentação, além de não constituir solução inédita (foi a uma medida idêntica que na década de 30 do século passado recorreu o afamado mago das finanças, Oliveira Salazar, para pôr cobro à “balbúrdia” da república e sanear as finanças nacionais) é a única que poderá criar as condições para que medidas adicionais, como uma redução criteriosa da despesa pública e algum ajustamento na carga fiscal, possam alcançar o objectivo da redução do peso da dívida pública.


[1] Visão bem mais clara da situação parecem ter os cidadãos europeus pelo que não será de estranhar que após as grandes manifestações de contestação na Grécia e na Irlanda, após as que juntaram na passada semana em Lisboa, onde a «Av da Liberdade pequena mara os milhares de trabalhadores» e em Bruxelas, onde desfilaram «Milhares em protesto contra “pacto para o euro”», ontem se tenha lido no JN que «500 mil ingleses manifestam-se contra medidas de austeridade» e no futuro abundem as notícias sobre uma crescente onda de agitação e contestação popular.
[2] Veja-se no caso português que na última década a taxa média de crescimento anual do PIB depois de descontada a inflação foi 1,01% e a evolução apresentada foi a seguinte:

Sem comentários: