domingo, 8 de novembro de 2009

FACES OCULTAS

Embora seja inegável que o acontecimento nacional dos últimos dias – até pela abundância de notícias, comentários e “ruído” que à sua volta se está a erguer – foi o despoletar da chamada Operação Face Oculta, reveladora que a hidra da corrupção continua a crescer e a encontrar nos meandros económicos e políticos o ambiente adequado ao seu desenvolvimento, a memória de outros casos envolvendo o triângulo dos poderes jurídico, político e económico aconselha uma moderação em baixa das expectativas quanto a uma efectiva denúncia e condenação dos flagelos anunciados.

Veja-se, a título de exemplo, em que resultaram processos como a Operação Furacão, o “Caso dos Submarinos”, o “Caso Freeport”, o “Caso Portucalle”, o “Caso Moderna”, para não falar no não menos mediático e polémico “Caso Casa-Pia” e compreenda-se que as expectativas em torno de mais um caso têm que ser forçosamente reduzidas. A manter-se a lusa tradição (e nada aponta para que este caso seja diferente) este será mais um “caso” para se arrastar nos tribunais, entre chicanas processuais e artifícios e malabarismos jurídicos (prática financeiramente conveniente para causídicos e donos de jornais e juridicamente útil para os acusados que sempre podem invocar a barbaridade dos “julgamentos na praça pública”), do qual o tardio resultado (quando e se surgir) será uma pálida imagem e certamente uma já muito mitigada sanção de reduzido ou nulo efeito formativo para os mais jovens.
Embora entre nós seja habitual referirmos a lentidão da justiça e denunciarmos a impunidade daqueles que actuam impunemente acima da lei, importa não esquecer que em última instância tal responsabilidade cabe-nos a todos. Enquanto continuarmos a confiar a gestão da coisa pública ao mesmo grupo de políticos e gestores que nas últimas décadas têm surgido envolvidos em escândalos recorrentes, poderemos esperar alguma alteração do infecto ambiente em que todos vivemos?

Que outra perspectiva poderemos ter senão a da visão da mesma cloaca? agravada ainda pelo facto deste tipo de situação se repetir um pouco por todos os lados.

Vejam-se casos como o processo Gurtel[1], que envolve o destacadas figuras do PP espanhol num esquema mais ou menos generalizado de corrupção, a recente decisão dum tribunal francês de levar a julgamento o ex-presidente Jacques Chirac por suspeita de envolvimento num caso de desvio de fundos públicos[2], ou as recentes declarações,que fizeram manchete no LE MONDE, do ministro dos negócios estrangeiros francês, Bernard Kouchner, sobre o reeleito presidente afegão: «Karzai é um corrupto, mas temos que trabalhar com ele»[3]; destes se pode concluir que um pouco por todo o lado ruíram as noções de decência e de ética, passando a louvável uma política do tipo “vale tudo” desde que seja em benefício dos nossos interesses.

De acordo com notícias recentes[4], esta prática, altamente lesiva do interesse colectivo representará na vizinha Espanha um negócio superior ao tráfico de narcóticos (cerca de 4 mil milhões de euros na última década) e constitui ainda um importante factor de distorção económica, pelo que não seria de espantar vê-lo incluído entre as razões apontadas para o afugentar do investimento estrangeiro em Portugal, embora o último relatório da consultora Ernst&Young (citado nesta notícia do PUBLICO) apenas refira as ineficiências dos sistemas judicial e fiscal.

O sentimento generalizado entre a população e o avolumar dos casos (que apenas confirma aquela ideia), comprovando a disseminação, entre dirigentes e dirigidos, de uma cultura de facilitismo e laxismo não pode ter sido apenas produto da expansão económica e da ideia (velha) de que “quem tudo tem tudo pode”, mas fruto de um conjunto de estratégias (intencionais e bem planeadas, na opinião de uns, e fortuitas, na opinião de outros) entre as quais terá sido determinante a constante degradação dos padrões educativos e a erosão de valores deontológicos.

A inversão desta realidade, difícil de antever na actual conjuntura mas indispensável se quisermos assegurar algum futuro às gerações vindouras, terá que começar pela recusa da ideia que a «corrupção é uma crise das sociedades desenvolvidas»[5] ou uma fatalidade dos regimes democráticos e continuar como uma exigência de cada um de nós relativamente àqueles que elegemos.
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[1] De que esta notícia do EL PAIS é um exemplo e que se refere ao nome dado a uma investigação iniciada em Fevereiro de 2009 pelo juiz Baltasar Garzón e destinada a desmantelar uma presumível rede de corrupção ligada ao Partido Popular (PP) e onde o empresário Francisco Correa é figura de proa.
[2] A notícia do LE MONDE pode ser lida aqui.
[3] O texto original da notícia do LE MONDE pode ser lido aqui.
[4] Os exemplos são esta notícia do DN e esta do PUBLICO.
[5] Como afirmou o ex-Procurador Geral da República à RÁDIO RENASCENÇA.

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