quarta-feira, 25 de março de 2009

A DÚ(Í)VIDA QUE NOS UNE

Foi com natural interesse que li ontem no ECONÓMICO o artigo assinado por António Ramalho, onde este se propõe reflectir sobre o que nos devia unir neste momento de crise.

Para o autor o que nos une é uma enorme dívida!

Uma dívida que, nas suas próprias palavras, não terá sido um desperdício pois «[e]stá nas casas próprias que habitamos, nos empregos que foram criados e preservados, na educação em que investimos, na segurança social e saúde que garantimos, está nas estradas que construímos etc... E por muito pouco que tenhamos hoje, é bom recordar que foi com dívida que o adquirimos», mas que «...é fundamental consciencializarmo-nos que teremos não só de pagar os juros como, a prazo, reduzir esta dependência, isto é, pagar esta dívida».

E o que propõe é que seja «...a produtividade (e a competitividade) que nos deverá unir. E a produtividade implicará mais trabalho, mais responsabilidade individual, mais risco pessoal, isto é mais meritocracia dos colaboradores. Representará mais selectividade, mais concentração, mais captura de ganhos na cadeia de valor pelas empresas. E implicará também maior transparência e maior eficiência a menor custo por parte do Estado».

Embora o autor tenha tido o cuidado de logo no início assegurar que a sua preocupação se irá centrar na solução e não no diagnóstico – atitude talvez politicamente muito louvável mas desprovida da mínima sustentabilidade técnica, pois o conhecimento das origens da crise é indispensável para a formulação de propostas de solução minimamente adequadas – a leitura das conclusões não permite a mínima dúvida sobre as reais razões para uma tão radical e despropositada simplificação.

É natural que, para quem tem vivido nas últimas décadas bem no topo do cerne do sector de actividade que possibilitou o avolumar da tempestade, lhe pareça mais recomendável concentrar esforços na procura de uma solução que enveredar por um processo que em última análise apenas poderá ser o da autoflagelação; é que embora titulando-se de simples gestor, o Dr. António Ramalho é o actual presidente do Conselho de Administração da UNICRE[1] (a empresa nacional especializada na gestão e emissão de cartões de pagamento e no crédito ao consumo) e foi, desde a década de 90, administrador de vários bancos.

Entendidas as razões que o levam a não querer elaborar qualquer tentativa de diagnóstico, de pronto se começa a entender que talvez os resultados – as tais soluções – não possam atingir padrões muito elevados. Assim, mesmo admitindo que o que diz faz sentido (e fá-lo-á principalmente dentro de uma certa lógica de economia baseada no crédito) e que até possamos (por agora) esquecer o que nos conduziu à situação em que nos encontramos, a aparente lógica da proposta rui perante uma leitura mais atenta.

É que se não existirão muitas dúvidas sobre o elevado peso que hoje representa a dívida nacional, já a solução proposta, que passa por uma aposta no aumento da produtividade e da competitividade, e, principalmente a forma como a reduz a «...mais trabalho, mais responsabilidade individual, mais risco pessoal, isto é mais meritocracia dos colaboradores «...» [e] também maior transparência e maior eficiência a menor custo por parte do Estado», não passa de uma abjecta manobra para lançar o ónus da recuperação sobre os sectores da população que menor responsabilidade apresentam no eclodir da crise.

Este é o típico discurso da consciência pesada a que se adiciona a completa inconsciência sobre a situação em que vive e trabalha a esmagadora maioria daqueles a quem o Dr. António Ramalho pretende fazer suportar os custos dos erros e da má gestão pela qual ele é um dos co-responsáveis. Aos anseios de vastas camadas da população trabalhadora, submetida a salários muito inferiores à média comunitária mas bombardeada por todo o tipo de campanhas publicitárias consumistas, apelando ao consumo fácil, imediato e barato (incluindo as da própria UNICRE), que foram sendo satisfeitos pelos políticos mediante um desregrado recurso ao crédito, pretende-se agora exigir maior meritocracia, precisamente aquela que políticos e gestores revelaram não ter.

Não admira que à empresa que dirige (e aos seus accionistas[2]) não interesse qualquer tipo de apuramento de responsabilidades (tanto mais que serão sempre muito difíceis de explicar as absurdas taxas de juros cobradas pela UNICRE – que regularmente se situam acima dos 20%) e ainda menos qualquer tipo de avaliação que possa revelar o logro em que nos têm feito viver a todos e que tem permitido aos bancos os inadmissíveis lucros que apresentam e aos gestores a repartição entre si dos principescos prémios e demais mordomias negados ao comum dos mortais.

Por tudo isto, por discursos como o de António Ramalho, de Silva Lopes ou de Vítor Bento[3], mais que a dívida que nos une, deve ser a dúvida a unir-nos. Dúvida que deve ser expressa por todos sob a forma de uma simples pergunta: como poderão orientar-nos a sair da crise aqueles que durante décadas agiram na exclusiva defesa dos seus interesses próprios e imediatos e assim nos conduziram até ela?
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[1] Pelo menos é nessa qualidade que é mencionado na página daquela empresa e que podem consultar neste endereço: http://www.unicre.pt/site/?idc=3.
[2] A lista completa dos accionistas da UNICRE pode ser consultada neste endereço: http://www.unicre.pt/site/?idc=4.
[3] As intervenções de Silva Lopes e Vítor Bento, pugnando pela redução de salários como via para a resolução da crise, já foram objecto de apreciação crítica no “post” «CANTOS NOVOS, RUMOS VELHOS».

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