Os cidadãos não deixaram de adquirir bens e serviços apenas porque uns quantos banqueiros levaram ao extremo os princípios defendidos pelos exegetas do liberalismo económico (com os mantras da “mão invisível” e da auto regulação dos mercados) e inundaram os mercados financeiros de produtos de elevado risco, situação que depois de exposta tem vindo a condicionar os financiamentos que os próprios realizavam entre si. Na realidade o dogma do lucro a qualquer custo (risco) que contagiou todos os sectores económicos regista agora o inevitável refluxo perante a contracção do crédito e os enormes prejuízos que se avizinham e, uma vez que os rendimentos dos gestores das grandes empresas continuam indexados aos lucros, a primeira reacção básica para minimizar aquele efeito é a de reduzir as despesas – leia-se os custos com salários.
A este factor junta-se o facto da generalidade dos tecidos económicos viverem há muitos anos do crédito bancário e não do reinvestimento das mais-valias criadas (essas foram embolsadas pelos accionistas e/ou investidas num processo de desenfreada especulação bolsista), com a agravante daquele se sustentar num mecanismo de sobrevalorização de activos.
Os cidadãos (qualquer que seja a sua nacionalidade) deixaram de adquirir bens e serviços ao ritmo que o vinham fazendo porque este era alcançado por via do sistemático recurso ao crédito; quando a quebra de confiança se propagou do sector financeiro atingiu em pleno as famílias (o elo mais numeroso e mais fraco na cadeia do consumo) seja por via do crescente desemprego seja pelo espectro da sua chegada.
Tentativas para negar isto, como a que recentemente tentou o Prof. César das Neves em «A SOLUÇÃO DA BENDITA CRISE», texto no qual afirma que «[d]esde que entrámos no euro (1999--2007) o produto por trabalhador português cresceu um total de 10,4%, enquanto na média dos Doze crescia 10,9% e a Espanha só 4%. Por que razão ficámos para trás? Porque os salários portugueses aumentaram um total de 7,7% no mesmo período, enquanto a média dos Doze subia só 5,5% e em Espanha caíam 4,5% acumulados. As nossas dificuldades externas e endividamento não vêm de produzirmos pouco, mas de ganharmos de mais para o que produzimos» sem produzir a mínima prova que sustente as afirmações até porque uma rápida consulta à página do EUROSTAT na Internet me levou a encontrar informação que em certa medida contradiz a que refere César das Neves.
Do quadro anterior, que nos dá uma perspectiva da relação entre os 20% mais ricos e os 20% pobres de cada país, constata-se que não só Portugal é o que apresenta uma relação maior, indicadora do nível de desigualdade de rendimentos, como esse valor foi consistentemente dos mais elevados ao longo do período em observação, que por acaso é praticamente igual ao referido naquele artigo, e põe em causa a citada afirmação; ou talvez não, pois o próprio autor diz no parágrafo seguinte que o «…problema não está nos salários dos operários, que na indústria vivem intensa concorrência europeia. São os ordenados dos ministros, funcionários, bancários, professores, médicos e outros. De todos, até dos críticos.»
Mas se o Prof. entende que o problema está nos rendimentos dos 20% mais ricos, pelo menos é o que parece quando afirma que a «…solução para a crise não vem da qualidade da classe política e outros temas habituais dos lamentos. Passa, em boa medida, por uma expressão que Cavaco Silva usava há 15 anos e nunca se ouviu desde então: moderação salarial», então a política de redistribuição de rendimentos que os governos do PS e do PSD (incluindo os de Cavaco Silva) têm vindo a seguir apenas pode ser classificada de desadequada e inconsequente, pois os resultados são os que estão à vista: alargamento do fosso entre ricos e pobres e agravamento do endividamento nacional.
É por tudo isto, mas principalmente pelo evidente erro económico e pela medonha injustiça social criada pela histórica degradação da fatia de rendimento atribuída às famílias, que julgo mais adequada a concepção de um plano de combate à crise que combine medidas de natureza fiscal de apoio às famílias (por exemplo, através da redução da carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho), de investimento público produtivo e/ou criador de emprego e inclua medidas objectivas de aumento do rendimento das famílias, por exemplo através da distribuição de um dividendo geral que contribua para a dinamização do consumo.
Numa palavra, a via para contrariar os efeitos da recessão deverá passar por medidas que actuem preferencialmente do lado da procura (famílias) e não pelas que apoiando as empresas contribuam para a manutenção do paradigma da produção barata.
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