Embora nada me mova contra o recurso a essa antiquíssima forma de transmissão de conhecimentos, parece-me neste momento mais importante retomar aqui algumas reflexões a propósito da crise que já chegou a Portugal (finalmente vão deixar de apelidar de “aves de mau agouro” aos que começámos a referir essa inevitabilidade há alguns meses) e em especial sobre as notícias que estão a chegar de França.
De três fontes diferentes (o nacional DIÁRIO DE NOTÍCIAS e os franceses, LE MONDE e LE NOUVEL OBSERVATEUR) respiguei a notícia de que o presidente Sarkozy, na primeira reunião ministerial do ano, se terá declarado disposto a injectar mais alguns milhares de milhões de euros nos bancos franceses. Contente com o sucesso da medida, que diz que terá evitado uma corrida aos levantamentos, e mesmo enquanto debate um plano idêntico para o conjunto da economia manifestou-se disposto a repeti-la.
O velho e experiente governante francês (nasceu em 1955 e desempenhou pela primeira vez funções governativas em 1993 num governo dirigido por Édouard Balladur) preconiza o mesmo tipo de política para o combate à crise que o nosso jovem José Sócrates (nasceu em 1957 e desempenhou pela primeira vez funções num governo de António Guterres, em 1995) – financiar os bancos na expectativa que estes reequilibrem a sua situação financeira e reanimem a economia mediante novos e maiores empréstimos para investimento. Mesmo que se considerem como bem intencionadas, estas medidas demorarão a produzir efeitos, na precisa medida em que a prática demonstrou o completo fracasso do conceito do “trickle down” económico[1], e a contribuir de forma efectiva para a resolução do problema tanto mais que na actual conjuntura não se podem dissociar os problemas de natureza financeira – escassez de liquidez originada pelo colapso dos mercados financeiros e crise de confiança motivada pelo excessivo risco de grande número dos activos financeiros que integram as carteiras do sector financeiro – dos que resultam de mais uma crise de crescimento das economias.
No caso das economias mais débeis (como a portuguesa) deve ainda ser levantada a questão da origem dos fundos públicos que os governos se dispõem a injectar na economia; é que se estes não provierem dos seus próprios orçamentos (fruto de uma situação em que as receitas se mostrem superiores às despesas) apenas poderão ser originados no aumento do endividamento público que mais tarde ou mais cedo se converterá em mais um factor de desequilíbrio orçamental quando houver que fazer face ao aumento dos encargos com o acréscimo do serviço da dívida.
As até agora anunciadas medidas de combate à crise económica, sejam elas o Plano Paulson[2], o Plano Sarkozy ou de José Sócrates, apresentam em comum uma perspectiva de abordagem da crise pelo lado da oferta (apoio aos bancos e às empresas) atribuindo uma menor ou nula preocupação com medidas de apoio às famílias (o lado da procura).
E aqui é que entra em cena o burro (eu e os que como eu defendem como preferencial a intervenção pelo lado da procura) que, confrontando os poderes instalados, pergunta se ninguém nada terá aprendido com as origens da difícil situação que vivemos. É que ninguém duvide que boa parte das razões para o actual estado de fragilidade das economias mundiais se prendem com o facto de nas últimas décadas os decisores políticos se terem limitado à aplicação de medidas objectivamente beneficiadoras da oferta (empresas) esquecendo, e prejudicando, o lado da procura (famílias), facto perfeitamente demonstrado no quadro seguinte:
que revela a menor taxa de crescimento do RNB relativamente à taxa de crescimento do PIB, no período entre 1995 e 2007, e o peso decrescente que aquele agregado representa face ao PIB.
Como é do conhecimento geral os mercados são forçosamente compostos por duas partes – a oferta e a procura – que de modo algum conseguem existir autonomamente; quando de forma cega se privilegia uma das partes em detrimento da outra a hipótese de alcançar uma posição de equilíbrio é particularmente difícil, senão impossível. Bom exemplo disto mesmo podemos encontrá-lo entre nós, na crise que tem afectado o sector da construção civil, em grande parte fruto da conjugação de factores como o excesso da oferta de novas habitações com a redução da procura (algo perfeitamente natural se atendermos ao facto da população portuguesa apresentar uma baixa taxa de crescimento, agravado pelo aumento das taxas de juro e pelos baixos rendimentos das famílias portuguesas), e nas medidas que têm sido tomadas para a resolver que no essencial se têm resumido à prorrogação dos financiamentos contratados pelos construtores e em muito reduzida parte numa indispensável redução dos preços de venda.
Fundamentado nestes exemplos, apetece-me perguntar: e o burro, sou eu??...
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[1] Princípio que preconiza a redução de impostos para as camadas com rendimentos mais elevados na expectativa que a sua maior propensão à poupança se traduza num aumento do investimento e por esta via no aumento dos rendimentos das classes mias desfavorecidas. Tornou-se particularmente popular entre os teóricos da corrente neoconservadora e dos defensores da actuação na economia pelo lado da oferta (supply- side economics).
[2] É o plano que a administração de George W Bush apresentou, cujo nome deriva do seu principal mentor – o secretário de estado do tesouro Henry Paulson – também conhecido como TARP (Troubled Assets Relief Program ou Programa de Auxílio aos Activos Problemáticos) e que no essencial prevê a utilização de 700 mil milhões de dólares para “comprar” os activos desvalorizados que integram as carteiras dos bancos norte-americanos.
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