quarta-feira, 2 de julho de 2008

A DIFÍCIL LUTA PELA LIBERDADE AFRICANA

Os casos de extremo apego ao poder não são um fenómeno local nem nacional, pelo menos é o que se pode concluir da informação que diariamente nos chega do Zimbabwe.

Depois do folhetim que se sucedeu às eleições legislativas e presidenciais de finais de Março, que deram uma clara vitória à oposição ao partido do actual presidente Robert Mugabe[1] (o ZANU-PF, acrónimo de Zimbabwe African National Union – Patriotic Front) eis que nas vésperas de uma muito contestada segunda volta presidencial – o MDC (Movement for Democratic Change)[2] sempre afirmou que o seu candidato Morgan Tsvangirai tinha obtido a maioria dos votos no primeiro escrutínio – perante a crescente onda de violência sobre os seus partidários, Tsvangirai decidiu desistir da corrida, alegando aquele clima de violência (já se terão registado várias dezenas de mortos e duas centenas de milhares de desalojados), a proibição de vários comícios do MDC, a prisão e as perseguições aos líderes deste partido, a recusa de publicação de comunicados e de publicidade de Tsvangirai nos jornais controlados pelo governo, a redução da ajuda alimentar às populações das zonas de maior implantação do MDC e a escolha entre os militantes da ZANU-PF dos elementos que irão constituir as mesas de voto.

O Zimbabwe, que já foi um dos países mais prósperos da África Meridional atravessa desde 2000 uma profunda crise económica, sofre de uma hiperinflação (em Junho de 2007 o valor apontado era de 4.500%, mas alguns especialistas falam num número da ordem dos 100.000%), de uma elevada taxa de desemprego, pobreza e escassez dos principais bens essenciais, que tem destruído o débil tecido produtivo nacional; como medida para combater esta situação o governo liderado por Mugabe decretou um congelamento dos preços do qual resultou numa onda de escassez generalizada de bens e o crescimento do mercado negro a que os responsáveis políticos responderam com uma vaga de prisões entre os comerciantes.

Este não foi senão mais um motivo de atrito entre os governantes do Zimbabwe e o remanescente do tecido económico pós-colonial; mesmo sem querer atribuir responsabilidades apriorísticas a uns ou a outros, não deixa de ser uma evidência que a degradação da situação económica e social do país, no período pós Rodésia, tem seguido de muito perto a agudização do conflito entre os novos detentores do poder (negros) e os antigos proprietários fundiários e principais agentes económicos (brancos).

Embora a questão ultrapasse hoje, em muito, a dicotomia negros/brancos, para entendermos o actual estado da economia (e a consequente desagregação do poder político) é indispensável não perdermos de vista esta realidade. Apoie-se ou critique-se a política de expropriações de terras seguida por Mugabe, não devem restar muitas dúvidas que tem sido a questão da pose da terra a responsável pela constante degradação das condições de vida das populações.

Assim, querer hoje abordar a questão política do Zimbabwe como se esta se tratasse de um mero problema de funcionamento (ou de disfunção) da democracia é quase tão absurdo como pugnar pelas virtualidades da implementação de modelos democráticos, nem que para tal tenha que se recorrer à “lei da bala”. Num continente ainda mal refeito do seu passado colonial e onde abundam regimes de natureza despótica (que normalmente servem às mil maravilhas os interesses neocolonialistas) que poderão ser desde mero fruto de uma real ausência de um modelo democrático alternativo, até ao total enraizamento de uma classe política oriunda das lutas de libertação mas que, no mínimo, caminha a passos largos para um perigoso estado de senilidade.

Infelizmente este parece-me bem ser o caso concreto no Zimbabwe. Por maiores que sejam os “perigos” de que o regime de Mugabe pretende preservar o seu país, nada pode justificar a situação em que o seu povo está a ser obrigado a viver e ainda menos os processos utilizados para lhe assegurar a preservação no poder. Intimidar candidatos e eleitores numa paródia de processo eleitoral pode vir a custar um ainda maior isolamento internacional do regime.

Dito isto sobre o poder (e a forma como ele tem sido exercido no Zimbabwe) ficará tudo esclarecido?

Não creio! Enquanto Mugabe e o grupo que o apoia mantêm uma importante posição de domínio sobre o exército e o seu oponente Tsvangirai proclama o apoio popular a situação política e social não deverá registar grandes mudanças. Os partidários de Mugabe, muitos dos desocupados e desempregados que se intitulam de “ex-combatentes” continuarão a fazer o que melhor sabem (intimidar e eliminar os opositores), tanto mais que do lado do MDC não se vislumbra uma férrea intenção de opor o que designa por “desejo popular” à vontade de preservação no poder de Mugabe, perfeitamente expressa na fragilidade das decisões que tem tomado ao longo desta crise. Primeiro começou por anunciar a vitória na eleição presidencial, de Março, sobre Mugabe, depois acabou por aceitar a realização de uma segunda volta (aceitando na prática o resultado da contagem oficial que deu o primeiro lugar a Tsvangirai e o segundo a Mugabe, mas sem os famigerados 50% ao primeiro) permitindo à ZANU-PF intensificar e focalizar a campanha de atemorização sobre a oposição, para por fim desistir da eleição nas vésperas da sua realização e apelar à intervenção estrangeira para solucionar o conflito.

As tergiversações apresentadas, acrescidas de uma opção de fuga de Tsvangirai para a embaixada de um país europeu (a Holanda) em Harare, além de não terem evitado o banho de sangue apenas terão contribuído para fortalecer os argumentos caros a Mugabe, como o da nefasta influência dos interesses europeus.

Para culminar tudo isto a OUA, reunida nos últimos dias em Sharm el-Sheikh mais não conseguiu que evidenciar mais que uma profunda divisão sobre este tipo de questões e terminou por aprovar uma frágil resolução apelando à formação de um governo de unidade nacional[3], há semelhança do que ocorreu recentemente no Quénia[4] .

Nu e cru, quando os líderes africanos, divididos nos seus múltiplos interesses e principalmente preocupados com os seus problemas internos (muitas vezes iguais ou semelhantes aos do Zimbabwe), não reúnem um mínimo de condições para fomentar um processo de pacificação[5], resta aos povos africanos que disponham de lideranças eficazes suportar o custo da luta pela democratização dos respectivos países, evitando tanto quanto possível a intromissão das potências ocidentais e orientais.
______________
[1] Robert Mugabe, que nasceu em 1924, tornou-se nos anos 60 líder da ZANU-PF, movimento que combatia o regime branco que declarara a independência unilateral da antiga colónia britânica da Rodésia. Preso durante vários anos fugiu para Moçambique onde se junto aos guerrilheiros que em 1979 alcançariam a vitória, vindo a ser eleito em1980 para a função de primeiro-ministro do primeiro governo de maioria negra. Ocupou o cargo até 1987 quando foi eleito presidente pela primeira vez. Considerada uma figura controversa, sempre manteve relações conflituosas com o Reino Unido e na maioria das ocasiões com a minoria branca que permaneceu no território após a independência.
[2] O MDC foi fundado em 1999 como partido de oposição a Robert Mugabe e ao ZANU-PF. Um dos seus fundadores foi Morgan Tsvangirai e uma das primeiras acções foi a derrota de Mugabe no referendo constitucional que teve lugar em 2000. Em 2002 apoiou Tsvangirai como candidato presidencial contra Mugabe; o resultado foi uma vitória de Mugabe, não sem que se tivessem verificado várias acusações de manipulação, fraude e uso de violência contra a oposição.
[3] Sobre o assunto ver a notícia do PUBLICO.
[4] Sobre esta questão ver o post «MAIS UM ÊXODO AFRICANO?»
[5] Talvez a mais importante intervenção, pelo seu significado político, tenha sido a condenação que Nelson Mandela fez do regime de Mugabe e que a BBC noticiou.

Sem comentários: