Nada disto constituiu grande novidade num continente onde as tensões políticas rapidamente degeneram em violência e onde muitos são os conflitos de natureza étnica que se mantém activos ou em estado de pronta deflagração, nem num país onde a avultam as divisões étnicas e a constituição confere poderes quase ilimitados ao presidente e cuja história recente tem sido marcada pelas figuras dos respectivos “homens fortes”. Obtida a independência em 1963, o seu primeiro presidente foi Jomo Kenyatta, da etnia kikuyu (a que mais se distinguiu e liderou a revolta contra a presença britânica) tendo-lhe sucedido Daniel Arap Moi, um dos seu vice-presidentes, de etnia kalenjin, que iniciou o seu percurso político em oposição a Kenyatta mas com o qual acabou por se aliar e conduzir o país para uma situação de monolitismo político.
Arap Moi, dando continuidade à política pró-ocidental de Kenyatta manteve-se no poder até 2002, altura em que o seu vice-presidente Mwai Kibaki, também ele um kikuyu, lhe sucedeu graças ao apoio de uma coligação e da promessa de distribuição de cargos pelos representantes de outras etnias[1]. O não cumprimento destas promessas originaram um clima de crescente tensão política e social que culminou nas eleições realizadas em 27 de Dezembro último, com a proclamação da reeleição de Kibaki, resultado que os partidários de Raila Odinga, de etnia luo, contestam.
Das dúvidas em torno da legalidade da vitória atribuída a Mwai Kibaki, recentemente agravadas pelas declarações de Samuel Kivuitu, o presidente da comissão eleitoral, ao jornal EAST AFRICAN STANDARD que confirmam a existência de pressões e a dúvida quanto ao resultado da votação, ao eclodir de conflitos entre luos e kikuyus foi um breve passo. Agravados ou não pela actuação das forças policiais (as opiniões dividem-se consoante o “campo” dos observadores) os confrontos estão a provocar um número elevado de desalojados e a conduzir a débil economia queniana para um beco sem saída.
Os EUA e a UE depois de terem “apostado” no apoio à reeleição de Kibaki defendem agora como alternativa a formação de um governo de unidade (presumivelmente entre Kibaki e Odinga, que o primeiro apoia mas o segundo recusa, defendendo a repetição do processo eleitoral); segundo a imprensa existem ainda outras alternativas de mediação, como a de Desmond Tutu (que já se encontrará em Nairobi) e a da própria União Africana, mas o que é facto é que permanece a agitação que levou já a Cruz Vermelha a apelar à recolha de donativos para minorar as necessidades de mais de 250.000 desalojados.
Como não creio na explicação simplista de que os “negros” são incapazes de viver sem este tipo de confrontações regulares ou de que são, por natureza, incapazes de viver em democracia, as razões para tudo isto têm de ser encontradas algures. No caso do Quénia, país que tem beneficiado de algum crescimento económico e até de uma certa prosperidade originada num sector turístico objecto de grande procura (é no seu território que se situa o muito procurado santuário natural de Masai Mara), não serão razões de natureza económico-social, como sucede por exemplo no Zimbabwe, que ditarão este clima de acesa animosidade mas sim resultado de um processo de formação artificial de estados, tão ao gosto das políticas coloniais praticadas pelos europeus.
Mesmo que isto não explique tudo e que exista uma fundada razão de natureza política[2] para o descontentamento popular, ninguém poderá negar que a imposição de um convívio forçado entre grupos étnicos, algumas vezes profundamente diferenciados e muitas outras marcados pelas animosidades cultivadas pelas antigas potências coloniais, relativamente aos quais raramente terá sido implementada uma política de aproximação cultural pelos governantes pós-coloniais, normalmente mais preocupados no seu enriquecimento pessoal que no bem-estar dos povos em prol dos quais terão sido eleitos.
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[1] Como em muitos outros países africanos o Quénia apresenta uma grande diversidade étnica, sendo os kikuyu (23%) o grupo mais numeroso, seguido dos luhya (14%) um grupo de língua bantu, tal como os kikuyu; seguem-se os luo (13%), que se distribuem também pelo Uganda e a Tanzânia, os kalenjin (11%), os kamba (10%), os kisii e os ameru (8%) e os somalis (3%), que se encontram distribuídos por toda a região do corno de África. Os restantes incluem variados grupos onde se destacam os masai e povos não africanos de origem árabe, asiática e europeia.
[2] No caso queniano, como na generalidade do continente africano, é muitas vezes impossível separar as organizações políticas das suas origens étnicas e os atritos entre etnias da desmesurada ânsia de acesso ao poder e à distribuição de riqueza que este proporciona. Raros têm sido os casos em que as elites políticas das jovens nações africanas não são rapidamente associadas a comportamentos corruptos, tanto mais que a disputa pelas riquezas naturais dos seus territórios a que se entregam as grandes empresas ocidentais (e agora também as orientais) facilita muito aquela tendência.
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