domingo, 6 de abril de 2008

IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte I)

Estabelecida uma trégua, após os acesos combates que ocorreram um pouco por todo o sul do Iraque no final do mês passado, entre as forças militares e policiais do governo iraquiano, dirigido pelo xiita Nuri al-Maliki, e as milícias do Exército do Mahdi, dirigidas pelo clérigo xiita Moqtada al-Sadr, é oportuna uma reflexão em torno daqueles acontecimentos, dos seus actores e do que terá provocado este recrudescimento da violência.

Actores internos: Nuri al-Maliki e Moqtada al-Sadr

A primeira referência a salientar é o facto do confronto agora registado ter constituído o primeiro embate entre forças xiitas, facto que poderá pressagiar o início de uma nova fase no complicado processo político interno.

Até agora os principais confrontos (pelo menos os mais mediáticos e sangrentos) foram os que tiveram como interveniente as forças de ocupação e como principais alvos os terroristas da Al-Qaeda e a facção sunita, tida como afecta ao regime do deposto Saddam Hussein. Pelo menos esta era a forma como a imprensa ocidental foi descrevendo os sucessivos focos de conflito que as forças americanas e inglesas foram encontrando, mesmo quando em 2004 se registou o sangrento assalto à cidade de Najaf.

A segunda referência é para a especial a capacidade de organização, o armamento e a resistência que o Exército do Mahdi revelou, da qual resulta que os recentes acontecimentos poderão ter catapultado ainda mais o seu líder, Moqtada al-Sadr, para um papel fundamental na definição do xadrez político iraquiano. Se al-Sadr já representava uma importante força no parlamento – integrou a coligação xiita no poder até Abril do ano passado – o desfecho dos recentes confrontos ampliou-a ainda mais e até poderá ter consolidado a sua implantação nos principais centros populacionais, situação de que Sadr City, o bairro periférico de Bagdad que alberga 2,5 milhões de xiitas e é assim designado em memória do Grande Ayatollah Mohammed Sadeq al-Sadr (pai de Moqtada), é verdadeiro paradigma.

O reconhecimento popular, que lhe adveio principalmente da sua filiação e do facto daquele ter sido executado por Saddam Hussein, pode ainda ajudar a contrabalançar o menor peso religioso originado na sua pouca idade, apenas 35 anos, factor que sendo de grande peso na estruturação da hierarquia religiosa xiita, nem por isso tem forçado Moqtada a revelar-se como um actor menos calculista e ambicioso. Apelando ao mais profundo sentimento xiita, o dogma do “regresso do 12º imã” (o Mahdi), Moqtada tem alicerçado o seu crescente poder num forte apoio popular e no proselitismo dos seus fiéis seguidores que o apresentam como o principal actor na dupla oposição à presença americana e à influência sunita.

Após um período de confronto aberto com o exército americano, que culminaria, em 2004, com o assalto a Najaf que quase custou a extinção do seu braço armado, Moqtada suavizou a sua estratégia chegando mesmo a declarar em Agosto de 2007 uma trégua unilateral com o invasor. Este período, que terá servido para o reagrupamento e reequipamento das suas fileiras, coincidiu com aquele em que se registou uma assinalável redução no número de confrontos e de baixas entre os americanos, foi igualmente aproveitado pelo governo iraquiano (coligação xiita e curda onde pontifica o Supremo Conselho Islâmico do Iraque, agrupamento liderado pelo Ayatollah Muhammad Baqir al-Hakim, do qual é membro o primeiro-ministro al-Maliki[1] e que também dispõe de um braço armado – a Organização Badr), para consolidar a sua posição interna.

Característico das sociedades islâmicas, onde é estreita a dependência entre o poder religioso e o administrativo, a luta política tende a extravasar os contornos habituais para os ocidentais, pelo que os recentes confrontos devem ser encarados como algo “normal” num período de instabilidade política. A esta acresce ainda o facto do actual Grande Ayatollah, o imã Ali al-Sistani (também ele figura tutelar do SCII), apresentar já uma avançada idade, facto que associa à luta política a disputa por uma sucessão à qual al-Hakim é um dos grandes pretendentes.

Se este cenário político-religioso parece um pouco complicado, acrescente-se que além da natural rivalidade religiosa entre al-Hakim e al-Sadr (ainda que este devido à sua pouca idade e à reduzida formação teológica não constitua um adversário directo) existe ainda entre as duas famílias uma ancestral rivalidade pelo papel de liderança entre a comunidade xiita.

Actores regionais: Irão e Turquia

Inserindo tudo isto no contexto regional, constata-se que o vizinho Irão tem desde longa data apoiado os grupos religiosos xiitas (e as respectivas milícias), discutindo os observadores qual dos dois grupos – SCII e Organização Badr versus al-Sadr e o Exército do Mahdi – se lhe situa mais próximo. Enquanto uns salientam as críticas de al-Sadr à hierarquia xiita pela sua dependência iraniana (o próprio Ali al-Sistani é de nacionalidade iraniana), outros recordam que al-Sadr segue as orientações teológicas do Ayatollah Kadhim Hussayni al-Hairi, de nacionalidade iraquiana mas residente em Teerão.

O mais certo é que o regime iraniano apoie ambas as facções, fazendo variar a intensidade dos respectivos apoios em função dos seus interesses conjunturais – oscilando entre uma maior oposição à presença americana ou o lançamento de uma política de aproximação e entendimento com os EUA – estratégia que poderá ser confirmada pelo teor da notícia publicada na página da RADIO FREE EUROPE/RADIO LIBERTY[2] que refere que o cessar-fogo agora alcançado entre as duas facções foi precedido de dois dias de reuniões com representantes dos dois grupos, que se deslocaram em conjunto à cidade iraniana de Qom.

Atendendo à insuspeita origem da fonte da notícia parecem restar poucas dúvidas sobre a influência iraniana na região e até sobre o potencial papel estabilizador que esta poderá assumir. A dúvida subsistirá apenas até que seja resolvida a importante questão sobre o futuro para um país que em função dos interesses americanos e dos dos vizinhos Irão e Turquia (competidores directos pelo estatuto de potência regional), caso em que o país poderá ser retalhado, com o Irão a anexar a região de influência xiita e a Turquia a proceder de forma idêntica com a parte iraniana do Curdistão.

Esta probabilidade é tanto maior quanto a Turquia mantém o seu exército nas fronteiras com a parte iraquiana do Curdistão (fontes há que referem que as acções militares prosseguem no interior do território) a pretexto de combater os “terroristas” do PKK, algo que apenas seria possível com o acordo tácito da administração Bush.

[A seguir: os actores externos]
_______________
[1] Nuri al-Maliki é o líder do Partido Dawa, membro da coligação SCII.
[2] A RADIO FREE EUROPE/RADIO LIBERTY ou RFE/RL é uma organização independente orientada para a divulgação de informação, via radio, para os países da Europa de Leste, do Médio Oriente e para a Ásia Central e Sudoeste Asiático, cujo financiamento é assegurado pelo Congresso norte-americano.

Sem comentários: