Enquanto as manifestações pró-Tibete se vão sucedendo ao ritmo do percurso da chama olímpica, outros acontecimentos se vão desenrolando em torno da renascida polémica da realização dos jogos, neste verão, em Pequim. Entre apelos mais ou menos claros ao boicote aos jogos e o anúncio de alguns chefes de governo da intenção de não comparecerem nas tradicionais cerimónias de abertura, regista-se uma crescente tensão entre as autoridades chinesas e o Comité Olímpico Internacional a propósito da famigerada questão dos direitos humanos que levou o próprio LE MONDE a escrever «Sobe o tom entre Pequim e o COI a propósito dos direitos humanos».
Como habitual as autoridades chinesas mostram-se tão preocupadas com a situação quanto os grupos de pressão ocidentais se encarniçam sobre o assunto, mas de modo algum admitirão uma saída para a crise que os obrigue a “perder a face”, seja do ponto de vista externo e, pior ainda, do ponto de vista interno.
Para cúmulo do ridículo universal é o facto do alvo das recentes manifestações pró-Tibete consistir num símbolo revestido de uma carga muito especial, facto que o humorista Tab conseguiu captar muito bem...
...e que deveria constituir objecto de um debate profundo por parte do COI.
Longe de defender os pressupostos e o “modos operandi” chinês, parece-me de enorme oportunidade um debate internacional sobre o futuro que pretendemos para os Jogos Olímpicos.
Recordando que na sua versão moderna os Jogos resultaram de um projecto que um aristocrata francês, o Barão de Coubertin, lançou em finais do século XIX, numa tentativa de recuperar o ideal helénico da celebração de jogos (manifestações desportivas) como meio de celebração da paz e concórdia entre as cidades-estado gregas. Embora haja historiadores que associam a celebração dos jogos ao culto dos mortos, é inegável que aquando da sua realização era decretada um trégua geral e impostas severas sanções a quem ousasse rompê-la; esta prática perdeu-se durante a vigência do Império Romano e do conturbado período da Idade Média europeia que se lhe seguiu.
Com o renascimento da ideia e a organização regular dos Jogos (a sequência quadrienal apenas foi interrompida nos períodos das duas guerras mundiais) cresceu a sua importância enquanto meta última de qualquer atleta, não sendo por isso de estranhar que estes tenham conhecido uma crescente politização[1]. Desde os Jogos de 1936, realizados em Berlim, que o governo Nazi de Adolf Hitler se esforçou por converter em mais uma manifestação de propaganda, até aos Jogos de 1980 e 1894, realizados respectivamente em Moscovo e Los Angeles que primeiro os EUA e depois a União Soviética boicotaram, e passando pelo atentado ocorrido em Munique durante os Jogos de 1972, várias foram as ocasiões em que os Jogos Olímpicos se viram envolvidos em polémicas de natureza política, sem que até à data a entidade responsável pela sua organização alguma vez tenha revelado grande preocupação em eliminar semelhantes riscos.
Se a eventualidade de um atentado terrorista é uma ameaça que, infelizmente, impende sobre as principais manifestações mundiais (sejam elas de natureza desportiva ou cultural), resultando não tanto do carácter intrínseco do evento mas principalmente da dimensão da sua cobertura mediática, já as manifestações do tipo boicote podem e devem ser evitadas mediante uma simples e razoável medida: a celebração dos Jogos num local fixo, que a comunidade internacional respeite enquanto espaço internacional e neutro, papel que a Grécia, enquanto país de origem, poderia muito bem representar.
Que interesses se movimentam no COI para que até hoje uma solução tão simples ainda não tenha sido posta em prática?
Por anacrónico que pareça, acho que os principais interessados na manutenção desta situação são os mesmos que normalmente se pronunciam pela importância dos Jogos mas que regularmente os usam para a prossecução de fins totalmente alheios ao chamado espírito olímpico, a ponto de me levarem a colocar outra questão: alguém pensa que a escolha de Pequim para os Jogos deste ano foi inocente?
Mesmo que se tenha registado aqui uma conjunção de interesses entre os governos chinês (desejoso de melhorar o seu reconhecimento internacional e de o aproximar da real influência da sua economia) e americano (desejoso de introduzir os seus modelos de funcionamento político e económico num mercado da dimensão do chinês) é possível que este último pensasse já aproveitar a situação para aumentar a pressão internacional sobre o primeiro.
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[1] Esta utilização dos Jogos para a obtenção de vantagens políticas não é característica da sua versão moderna porquanto já no período helénico as diversas cidades-estados gregas não desperdiçavam a oportunidade de capitalizar os sucessos dos seus atletas, sendo que muitas vezes os Jogos chegavam a ser utilizados como sucedâneo da guerra ou como via para a transmissão de mensagens de natureza bélica (era natural que as cidades-estado ponderassem particularmente as iniciativas de ataque às rivais que revelassem melhores resultados nos campos dos jogo, na medida em que estes eram reveladores da boa condição física dos seus guerreiros.
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