quarta-feira, 9 de abril de 2008

IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte II)

Na primeira parte do texto procurei traçar uma panorâmica dos recentes acontecimentos no Iraque, envolvendo os principais actores internos – Nuri al-Maliki e Moqtada al-Sadr – e a actuação dos países vizinhos, com especial destaque para o Irão e a Turquia, estados que lutam pelo estatuto de potências regionais.

Interrompidos os combates entre o exército e a polícia afecta ao governo de al-Maliki, talvez devido à mediação iraniana (ver o post anterior IRAQUE - ESTABILIZADORES OU DESESTABILIZADORES? (parte I)), com um aparente reforço da posição de Moqtada al-Sadr e um evidente desprestígio de Nuri al-Maliki (que se envolveu pessoalmente numa acção infrutífera) e da coligação governamental que lidera, tanto mais gritante quanto o Exército do Mahdi (milícia xiita afecta a al-Sadr) manteve intacta a sua organização e capacidades bélicas. Pior ainda são as notícias que vão dando conta das deserções que a estrutura militar registou para o campo de al-Sadr à medida que os confrontos foram alastrando a outras zonas e se foram arrastando no tempo[1].

Actores externos: os americanos

A atestar pelas notícias difundidas desde as primeiras horas[2] a acção militar não contou com a participação de forças estrangeiras, embora estas tenham estado no terreno fornecendo apoio logístico (alimentos e munições), o que de modo algum pode excluir a administração de George W Bush de todo este cenário, tanto mais que numa fase mais adiantada até disponibilizaram apoio aéreo e de artilharia pesada.

É difícil entender, como pretende o director da CIA, Michael Hayden, nesta notícia divulgada pela RFE/RL que nem ele nem o embaixador norte-americano, Ryan Crocker, nem o comandante-chefe das forças de ocupação, o general David Petraeus, tiveram qualquer conhecimento prévio da operação desencadeada em Bassorá.

Mesmo quando o embaixador norte-americano procura enfatizar o lado positivo da operação militar – a dinâmica do governo de al-Maliki e a tomada do controlo do estratégico porto de Um Qasr[3] – o que acaba por sobressair são as vantagens que o governo de Bush poderá retirar desta situação durante a audição que ontem se realizou no Senado, traduzidas nomeadamente no conteúdo da própria proposta apresentada por David Petraeus – suspensão do programa de retirada de tropas, soba a legação de que o reforço do contingente americano teve como contrapartida a contenção dos contestários e uma redução do número de baixas entre os soldados norte-americanos[4].

É igualmente difícil negar qualquer causalidade entre a decisão de al-Maliki e a recente visita do vice-presidente Dick Cheney à região, inserida no âmbito do périplo, iniciado em Bagdad, que realizou por alguns países da região, até porque este não se coibiu de reafirmar o desejo americano de resolver a situação no Iraque[5] e o objectivo da deslocação não terá sido apenas para conversar com alguns interlocutores iraquianos privilegiados, para abordar com os sauditas a questão da subida do preço do petróleo, nem como ironiza o caricaturista Jeff Danziger para preparar um eventual refúgio após o final do seu consulado.

E os iraquianos?
Como é hábito (e tudo aponta que também neste caso a tradição ainda seja o que é), resolvidos a contento os interesses dos poderosos (EUA, companhias petrolíferas, Irão, etc.) os mais pequenos serão abandonados a braços com as dificuldades que a destruição do país e dos laços sociais e económicos acarretarão.

Para quem ingenuamente duvide que tal possa suceder, recordo aqui a expressão usada pelo senador republicano e candidato á sucessão de George W Bush, John McCain, que para justificar a permanência das tropas americanas no Iraque afirmou aos jornalistas que «os nossos aliados, os países árabes, a ONU e os próprios iraquianos não assumirão as suas responsabilidades se nós retirarmos de forma apressada e desastrada»[6], como se a destruição da débil economia e das débeis infraestruturas iraquianas não tivesse resultado da acção norte-americana e esta não tivesse ocorrido em total dissonância com a opinião da generalidade da comunidade internacional.
Para agravar ainda mais a situação, se as perspectivas oferecidas pela ocupação norte-americana já eram reduzidas, importa referir que tudo indica que após um período em que a conflitualidade interna se encontrava principalmente orientada contra as forças ocupantes ou contra a corrente religiosa oposta (exemplo evidente têm sido os atentados visando as comunidades xiita e sunita), evidencia-se agora que os combates estão a alastrar ao interior do próprio grupo maioritário (os xiitas).

As probabilidades de início de um período de paz no interior do Iraque são cada vez mais diminutas. Após a ocupação norte-americana e o período de confrontos entre xiitas e sunitas, quando os responsáveis norte-americanos procuram passar a mensagem de que estão a ter êxito na política de contenção da violência eis que os recentes confrontos entre o exército leal ao governo de Nuri al-Maliki, coligação de maioria xiita entre o SCII e o partido Dawa, e o Exército do Mahdi, organização liderada por Moqtada al-Sadr, se envolvem numa escalada de violência que apesar da trégua alcançada corre o risco de reacender ao menor pretexto, porque na essência se trata de uma luta pelo poder político num território dividido por questões étnicas (árabes contra curdos), religiosas (xiitas contra sunitas) e pela partilha das riquezas originadas na exploração petrolífera.

Analisada friamente, esta nova realidade não constituirá uma especial novidade para o povo iraquiano, porquanto fruto da sua integração num estado de matriz cultural árabe está há muitos séculos habituado a conviver com acesos períodos de violência, com o objectivo de originar lideranças fortes que lhe proporcionarão períodos de paz e florescimento.

Esta realidade é de entendimento particularmente difícil para os povos ocidentais, que há alguns séculos desenvolveram um modelo não bélico de escolha das lideranças (o tal modelo democrático que a administração Bush e os seus orientadores neocons sempre desejaram implantar pelo Mundo fora, nem que seja à força da bala) e que ultimamente têm pecado pelo fundamentalismo com que observam e pretendem conviver com as outras formas civilizacionais e culturais.
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[1] Uma das fontes desta informação é o insuspeito correspondente da BBC em Bagdad, na sua crónica «Iraq hearing takes on new urgency».
[2] Esta notícia da BBC e este comentário de um seu correspondente podem servir de exemplo.
[3] Um Qasr, situado um pouco a sul de Bassorá e com acesso ao Golfo Pérsico, é o único porto iraquiano que permite a exportação de crude.
[4] Para mais detalhes sobre esta situação ler esta notícia da BBC:«US ‘must suspend’ Iraq withdrawal».
[5] Ver a propósito a notícia da BBC intitulada «Cheney vows to finish job in Iraq».
[6] A citação original pode ser confirmada nesta notícia da BBC.

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