quarta-feira, 13 de junho de 2012

DÍVIDA, QUE DÍVIDA?


Confirmado que está o anúncio de que «Espanha pediu 100 mil milhões» e pese embora o governo espanhol persista na estratégia de negar que o pedido – apresentado como indispensável para a recapitalização da exaurida banca espanhola e garantido pelo Estado – representa um resgate à economia espanhola, será de aguardar para conhecermos o próximo (o sexto, porque «Chipre é o próximo na lista: resgate chega até ao final do mês») estado-membro da UE a “deslizar” para uma situação de dependência financeira. 


Enquanto isso, a evidência da origem no sistema financeiro da “necessidade” espanhola – tal como antes acontecera com a Islândia, a Irlanda e em maior ou menor grau com Portugal – reforça a ideia tantas vezes defendida da necessidade de reavaliação da origem do crescimento das dívidas públicas.

No sentido de contribuir para o debate aqui deixo a tradução dum artigo publicado pelo LE MONDE DIPLOMATIQUE, onde Jean Gadrey, professor da Universidade de Lille e membro do conselho científico da ATTAC (Associação pela Tributação das Transacções financeiras para Ajuda aos Cidadãos), deixa uma reflexão sobre a dívida francesa facilmente extrapolada para as congéneres europeias:
«França: Dívida, que dívida?

por Jean Gadrey – Economista

Na Grécia, as novas eleições legislativas marcadas para 17 de Junho disputar-se-ão sobre a questão da renegociação da dívida. Os contribuintes continuam a recusar-se a “colocar dinheiro num poço sem fundo”, disse Alexis Tsipras, o líder do partido de esquerda, Syriza. Em França, uma campanha de base também exige auditoria cidadã da dívida pública.

Um cheiro de primavera de 2005? Na época, o Presidente da República, Jacques Chirac, tinha submetido a referendo o Tratado Constitucional Europeu (TCE). Os meios de comunicação foram unânimes: era necessário aprovar o texto. A campanha caracterizou-se, no entanto, por uma mobilização sem precedentes. Associações, organizações políticas e sindicais empenharam-se a deslindar, explicar e discutir um documento muito pouco convidativo. Contra o conselho dos especialistas institucionais, quase 55% dos franceses decidiram rejeitar a Constituição da UE.

Sete anos mais tarde, não está em questão nenhum tratado europeu, mas o coro dos editorialistas ressoa novamente: o peso da dívida requer que as pessoas apertem os cintos. E, embora desta vez nenhum referendo tenha sido agendado para perguntar aos franceses a sua opinião sobre o assunto, uma campanha foi a aposta delicada para impor no debate público uma questão que a imprensa está empenhada em silenciar: devemos pagar a totalidade da dívida francesa?

Desde o Verão de 2011, o apelo nacional “Por uma auditoria cidadã da dívida pública”, que reúne vinte e nove associações, organizações não-governamentais (ONGs) e sindicatos, e com o apoio de vários políticos (1), foi assinado por cerca de 60 mil pessoas (2). Mais de cento e vinte comités de cidadãos de auditoria (CAC) oferecendo-se para “substituir as agências de rating” foram criados desde o Outono de 2011. Como explicar semelhante empenho?

Um dos organizadores desta campanha, o filósofo Patrick Viveret, lembra que a palavra “desejo” – aqui empregue no sentido de, se envolver na mobilização – provém de “desejar”: “A sideração tem como característica que mesmo as vítimas achem que não é possível fazer o contrário. Sideração é, economicamente, o que poderia ser chamado de pensamento TINA [“There Is No Alternative”] de Margaret Thatcher: um Estado em que apenas se diz: “Sim, é catastrófico” e “Não, você não pode fazer o contrário” (3)». O que equivale a um “bloqueio da imaginação”, da indignação e da crítica.

No entanto, dentro dos comités de auditoria cidadã, as coisas libertam-se quando os participantes extraem certas conclusões, que geralmente os deixam incrédulos:

- Como? Os gastos do Estado francês em percentagem do total da riqueza produzida, não progrediram ao lingo de vinte anos? Até têm uma ligeira queda de 24% do produto interno bruto (PIB) em meados dos anos 1980 para 22% em meados dos anos 2000? De certeza?

- Você diz que a receita do Estado por sua vez, perdeu quatro pontos percentuais do PIB de 22% para 18% ao longo deste período? “Eles” optaram por privar o Estado de receitas?
- As reduções fiscais decididas na última década representam uma queda real de 100 mil milhões de euros por ano?

- Muitas das grandes economias, como os EUA e o Reino Unido, têm um banco central que empresta directamente ao Estado a taxas próximas de zero, e nós não?

- Se o Banco Central Europeu (BCE) tivesse aceitado emprestar dinheiro directamente aos países da zona do euro como faz para os bancos, ou seja, 1%, ninguém seria agora confrontado com uma dívida classificada como “insuportável” Isso é verdade?

- Nós poderíamos recusar a pagar uma dívida nos termos em que foi contratada? Mas isso já foi feito?

Para essas perguntas, adquiridas ao longo dos encontros, as respostas (4) – sempre positivas – circulam na Net. De assunto frustrante ou inatingível, a questão da dívida pública passou a “desejável” entre aqueles que começaram a conhecer o tema, como fizeram com a reforma das pensões em 2010, ou o Tratado Constitucional europeu proposto em 2005. Ela floresceu não apenas em livros, textos e apresentações, mas, acima de tudo como os inúmeros sinais de propriedade colectiva genuína: desde caricaturas (uma descreve uma “mamã BCE” forçada a alimentar uma criança obesa cujo bibe diz “Banco”), a questionários (“Os detentores de dívida são: 1-Bancos; 2-Seguradoras; 3-Xeques do Petróleo; 4-Nós não sabemos...”. [5]); a cartazes manipulados de filmes; a trechos teatrais; a vídeos divulgados na Net (dívida, é bom [6]!), etc.

Existe um centro, mas como nó duma rede que organiza comícios nacionais e contactos internacionais, e redistribui as análises. Estas retratam “países ricos altamente endividados” sujeitos ao mesmo tipo de ditadura política e financeira que os países pobres muito endividados (PPME) em 1990. Alguns, como os líderes do Comité para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), revelaram então como a dívida tinha surgido, a partir de 1979, de decisões unilaterais dos Estados Unidos, tendo-se tornado no principal meio de subjugação neocolonial do hemisfério sul. A dificuldade é agora mínima para convencer que a mesma dinâmica está em acção no sul... da Europa, e que o contágio pode afectar todos os outros países, incluindo a Alemanha, através dos seus bancos enfraquecidos.

A democracia reivindicada por esses grupos, bem como o pluralismo, levou a colocar todos no mesmo nível. Surgem controvérsias, tanto entre os especialistas dessas redes (Os Economistas Aterrados, a ATTAC, a Fundação Copérnico, o CADTM, os partidários da anti-globalização...) como nos debates locais. A atenção principal incidiu, no primeiro trimestre de 2012, no papel dos juros acumulados no crescimento da dívida pública. Para alguns, é a principal explicação: os juros pagos pelo Estado francês entre 1980 e 2009 ascenderam a 1.340 milhões de euros em 2009, representando 90% do stock da dívida em 2009 (1,5 biliões). Para outros, a questão seria secundária, pelo menos em França. A operação de acumulação a longo prazo seria inútil, porque ninguém afirma que, dada a inflação e o crescimento, seja justo o empréstimo sistemático à taxa zero. Segundo estes o excesso de dívida resultaria principalmente dos benefícios fiscais concedidos aos mais ricos, das desigualdades, e dos resgates aos bancos.

Outros debates surgem, como seja o da particular necessidade da dívida pública: deve um Estado endividar-se continuamente? Ou, dito de outra forma, não haverá uma parte dos gastos públicos (potencialmente financiada pela dívida) que pode ser estimada como socialmente e ecologicamente inútil ou prejudicial, impulsionada por lobbies de empresas e pela concorrência destrutiva entre países ou regiões (7)?

Mas os colectivos locais percebem muito bem que os diferentes pontos de vista são complementares e não opostos. Não importam os detalhes da análise, as propostas têm consenso para remover aos mercados o monopólio do financiamento dos Estados, regressando a taxas de juros muito baixas. E todos salientam a necessidade de forte redução das desigualdades e uma reforma tributária radical, “a la Roosevelt”.

Sempre mais pragmáticos do que teóricos, os debates locais sustentam uma hipótese bastante keynesiana de que parte da dívida pública francesa é, provavelmente, legítima, sujeita a inventário. Mas apenas uma parte: em França e no exterior (Bélgica, Alemanha, em vários países do sul da Europa), os grupos acreditam que a ideia de ilegitimidade é baseada em três argumentos, cada um suficiente para justificar o uso actual deste termo: “Quem discorda com a legislação comum, a equidade, no plano de moral, intelectual ou material”.

O primeiro argumento é a injustiça das decisões que aumentaram a dívida: a fiscalidade de classe, os nichos para os ricos, a crescente desigualdade... O segundo refere-se às escolhas que não se enquadram com o interesse geral: confiar as dívidas públicas aos mercados, isto é aos especuladores. A terceira destaca as decisões tomadas nas “costas” das populações: assente nas suas costas, cobrando a crise sobre aqueles que não desempenharam qualquer papel no seu início; assente nas suas costas devido ao défice democrático e ao estrangulamento da oligarquia neoliberal sobre a informação.
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Notas
(1) Da Europe Ecologie-Les Verts (EE-LV) ao Novo Partido Anti-capitalista (NPA), passando pelo Partido Comunista (PC) ou o Partido para a diminuição.
(3) “Construire une résiliAnce. De la sidération au désir”, a décima terceira sessão do University Club of Budapest, 19 de Setembro de 2011.
(4) Na Primavera de 2011, o livro da ATTAC “Le Piège de la dette publique (Les liens qui libèrent) ”, abordava algumas destas questões.
(5) Todas as respostas estão correctas, excepto a 3.
(7) Ver “Os Estados têm de se endividar?”, 26 de Setembro de 2011, http://alternatives-economiques.fr/»

Vista na perspectiva sugerida propõe Gadrey, a questão da dívida pública ganha outros contornos e, uma vez que o verdadeiro problema não é a dívida mas sim a via pela qual ela tem sido originada e financiada, notícias como a de que afinal o «Resgate a Espanha não aclama mercados» passam a fazer um sentido que os defensores da “austeridade expansionista” insistem em negar.
2012-06-13

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