A conjuntura económica, considerada na sua dimensão internacional, europeia ou nacional, tem monopolizado a atenção, a ponto de relegar quase todas as outras questões para plano secundário.
Nem por isso o Mundo deixou de rodar nem de continuar a acumular injustiças e prepotências um pouco por todo o lado. Exemplo disso continua a ser o mundo muçulmano que, até como consequência directa do agravamento das condições globais, continua a acumular tensões, sejam estas de natureza externa, caso do conflito israelo-palestiniano, sejam de natureza interna, como é o caso do sempre esquecido Sahara Ocidental ou mais recentemente da Tunísia, país mediterrânico que em poucas semanas passou de destino aprazível (e económico) de férias para um país atravessado por profunda convulsão social.
Desde meados de Dezembro e em consequência da crescente degradação das condições de vida da população, que a contestação ao regime de Ben Ali veio subindo de tom e de violência.
Mau grado algumas promessas de abertura do regime, os tunisinos, cansados da ineficácia e do nepotismo mantiveram a sua mobilização até que após uma fracassada tentativa de “liberalização” do regime, ensaiada com a substituição do ministro do interior e o anúncio de libertação dos detidos durante as manifestações mas inviabilizada (segundo esta notícia do LE MONDE) quando o chefe do estado-maior se recusou a disparar sobre os manifestantes, o presidente Bem Ali optou pela fuga para a Arábia Saudita.
A erosão dum regime querido do Ocidente, que há muito conhecia as suas fragilidades mas com quem sempre pactuou (fosse por interesse próprio, fosse integrado na famigerada luta contra o radicalismo islâmico), abriu uma fase de incerteza na vida política daquela país do Maghreb[1] e está a originar uma vaga que ameaça propagar-se aos países vizinhos, ou não fossem estes dirigidos por políticos de idêntica configuração. Isso mesmo é assumido nesta notícia do PUBLICO que a propósito da fuga do ditador tunisino informa que «Queda de Ben Ali celebrada na rua árabe e temida nos palácios» e parece abrir uma perspectiva de renovação no mundo árabe.
Se o sucedido em Tunis constitui um verdadeiro sinal de alarme para a generalidade dos regimes autocráticos árabes, não é menos verdade que estes contarão com fortes apoios para a sua manutenção, que vão desde a tradição cultural islâmica e a natural influência dos restantes autocratas até à cumplicidade dos regimes democráticos ocidentais que sempre os encararam e acarinharam como leais opositores ao radicalismo islâmico e, diga-se em abono da verdade, foi preciso uma conjugação muito especial de condições (desemprego e profunda frustração das expectativas dos mais jovens) para ver eclodir os ventos da revolta, os quais a avaliar pelas notícias que dão conta da constituição do governo tunisino de transição, integrando elementos próximos de Ben Ali, não auguram as melhores perspectivas[2].
E não é apenas esta a razão para se encarar com as devidas reservas uma possível democratização da Tunísia, pois a situação de quase total desorganização da sociedade civil e a fraca implantação das poucas organizações políticas existentes já levaram os actuais responsáveis a anunciar «Eleições legislativas na Tunísia daqui a seis meses» quando nos termos constitucionais estas deveriam ocorrer dentro de 60 dias.
Para finalizar talvez sejam de reter as declarações de Mark LeVine, do Centro de Estudos para o Médio Oriente da Universidade sueca de Lund, que disse à AL JAZEERA:
«Embora os EUA e a comunidade internacional não devam intervir directamente, sem que os militares comecem a prender ou a matar um grande número de pessoas, existem passos que Obama pode dar de imediato, para assegurar que este movimento democrático crie raízes e se espalhe pela região.
Primeiro, o presidente não deve apelar apenas à realização de eleições livres e democráticas. Deve declarar publicamente que os EUA não reconhecerão, nem continuarão a manter relações económicas, qualquer governo não democraticamente eleito através de eleições reconhecidas por observadores internacionais. Em simultâneo deve congelar todos os bens dos ex-líderes da Tunísia, guardando-os até que estes sejam reclamados pelo povo tunisino»;
que contrastam com a dura realidade retratada por Robert Frisk num artigo no THE INDEPENDENT, quando lembra que a «...tarefa dos potentados árabes será a que sempre foi – gerir o seu povo, controlá-lo, amar o Ocidente e odiar o Irão.
Senão, o que andou Hillary Clinton a fazer na semana passada enquanto a Tunísia ardia? Estava a dizer aos corruptos príncipes do Golfo que a sua função era apoiar as sanções contra o Irão, opor-se à República Islâmica e prepararem-se para outro ataque contra um estado islâmico depois das duas catástrofes que os EUA e o Reino Unido já infligiram à região».
[1] O Maghreb é uma região do Norte de África que engloba Marrocos, Sahara Ocidental, Argélia, Tunísia (que constituem o Pequeno Maghreb), Mauritânea e Líbia (chamando-se então Grande Maghreb); a designação resulta da expressão árabe Al-Maghrib que significa poente ou ocidente.
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