sábado, 12 de dezembro de 2009

MERGULHO PÚBLICO

Por uma ou outra razão, a questão do endividamento dos estados está na ordem do dia. Como se não bastasse o abalo provocado pelo constante avolumar de notícias relativamente à situação financeira do Dubai – como era de prever já não se trata apenas do conglomerado DUBAI WORLD, mas do conjunto da actividade económica daquele estado profundamente abalada pela periclitância deste gigante com pés de barro – este acontecimento trouxe à evidência a situação das finanças públicas de outros países.

Entre estes contam-se alguns europeus, como é o caso da Grécia (o que parece estar em pior situação), da Espanha, da Irlanda e de Portugal que no conjunto apresentam um cenário macroeconómico em que o endividamento público se aproxima perigosamente dos 100% do respectivo PIB.

Esta situação, pela sua importância e delicadeza, merece ser abordada de forma cuidada, tanto mais que os seus reflexos que já se começam a tornar visíveis nos mercados financeiros internacionais o que é bem expresso na notícia do PUBLICO que assegura que «Finanças públicas sob suspeita agravam juros da dívida do Estado», devendo ser separada em três grandes áreas de observação: o plano financeiro (nacional e internacional), o papel das finanças públicas nas economias modernas e o papel do sistema financeiro.

No campo estritamente financeiro, o crescente endividamento dos estados é uma situação tendencialmente preocupante, não apenas pela evidência das dificuldades dos respectivos governos, mas também pelas dificuldades que as próprias economias atravessam. Sendo ambos factores que contribuem para o aumento da incerteza, associada ao risco de não pagamento do serviço da dívida, terão como consequência rápida a subida dos “spreads” que estados e empresas se verão obrigados a pagar para se financiarem.

Esta é a perspectiva em que funcionam os mercados nacionais e internacionais de capitais e (até ver) não haverá solução milagrosa que possa alterar um quadro ao qual se adiciona a intervenção das chamadas agências internacionais de “rating”. Bem pode um ou outro jornalista, ou analista, mais atento lembrar a falta de qualidade do trabalho evidenciado por aquelas agências internacionais aquando o rebentamento da bolha do imobiliário, ou perguntar-se o cidadão comum o que tem a dívida pública portuguesa ou a dívida de empresas como a PT, a GALP ou a EDP a ver com as dificuldades do Dubai, que para todos a resposta é tão simples quanto absurda: tem tudo e nada a ver.

Tudo, porque funcionando o nosso país e os seus parceiros comerciais (aqueles que nos compram e vendem mercadorias e aqueles que nos emprestam dinheiro ou a quem nós emprestamos) num sistema de economia onde as mercadorias e o dinheiro circulam de forma mais ou menos livre, tudo tem a ver com tudo; mas também se pode argumentar que a relação será mínima ou nenhuma na medida em que os fluxos de bens e de dinheiro entre Portugal e o Dubai são muito reduzidos.

O raciocínio seria mais ou menos simples no caso de uma comparação bilateral (Portugal – Dubai), mas o “busilis” é que conglomerados como o DUBAI WORLD têm uma vasta e diversificada rede de investimentos que acabará por produzir consequências um pouco por todo o lado.

Para ampliar ainda mais este efeito temos a já referida reacção das empresas de “rating” que, cientes do medonho fiasco que constituiu a sua actuação laxista na avaliação do risco de empresas e produtos financeiros, procuram agora recuperar parte da credibilidade perdida mesmo correndo o risco de voltarem a errar, agora por excesso.

Como se não bastasse esta conjugação de factores há ainda que acrescentar a isto o modelo de funcionamento dos mercados e das empresas financeiras, que no essencial acabam por rapidamente ampliar os efeitos de choque (positivos ou negativos) por adoptarem como princípio de funcionamento o mimetismo[1] em detrimento da análise fundamentada das economias e das empresas.

Escusado será dizer que sendo esta a realidade de funcionamento dos mercados financeiros qualquer perturbação, real ou imaginária, provoca uma reacção inevitavelmente ampliada pelo efeito de pânico. Foi assim que logo às primeiras notícias da situação no Dubai se começou a ouvir (e a ler) que algumas economias europeias apresentavam uma situação igualmente preocupante e que nos últimos dias não têm parado de “chover” notícias sobre as medidas tomadas pelos governantes gregos e irlandeses para tentarem inverter a situação, sendo que a mais espectacular delas é a que refere que a «Irlanda vai cortar salários a funcionários do Estado».
E aqui será o momento oportuno para todos nos questionarmos sobre o papel das finanças públicas nas economias modernas.

Mesmo sabendo que o tema é altamente polémico e por si só suficiente para a produção de vários “in-folio”, arrisco alguns breves comentários, não sem antes lembrar que existe uma antiga polémica entre os economistas sobre as virtualidades das finanças públicas. Enquanto para os seguidores das correntes mais liberais e monetaristas o endividamento público é o exemplo claro da ineficiência da gestão pública e o responsável pela redução dos lucros das actividades produtivas (por via dos impostos cobrados sobre as transacções e os lucros das empresas), para os seguidores das correntes keynesiana (defensores menos intransigentes do primado do mercado) ou mais orientados para a faceta social da economia, o endividamento público pode ser uma forma de estimular a economia e de realizar alguma forma de compensação para as políticas redistributivas que sobrelevam a remuneração do factor capital.~

Por tradição a Europa tem privilegiado em certa medida o chamado papel social do Estado (ao contrário da maioria dos países, os europeus beneficiam em geral de melhores sistemas de segurança social e de assistência médica), opção que obviamente implica maiores orçamentos públicos e inevitáveis acréscimos na carga fiscal. O delicado equilíbrio entre estes factores e a inevitável influência que as decisões de carácter meramente político[2] têm nesta matéria resultam, na maioria dos casos, na elaboração de orçamentos públicos onde o volume das despesas é superior ao das receitas.

Partindo desta explicação muito simplista para a origem dos déficits públicos, rapidamente se entende como se origina o endividamento (a parte das despesas do orçamento que as receitas não conseguem cobrir) e como sucessivas decisões políticas ou até necessidades específicas (como pode ser entendida a actuação de um governo para combater os efeitos mais gravosos de um crise económica) o podem conduzir aos valores que actualmente registam. Mas a grande questão é como conciliar as necessidades com os recursos, e a habitual resposta dos governos recai invariavelmente na redução da componente da despesa directamente ligada aos custos do funcionalismo público, seja através de medidas de redução de pessoal ou de contenção salarial, e raramente é fruto de um trabalho de avaliação de desperdícios[3] e de efectivo saneamento financeiro.

Mas mesmo que, por um qualquer passe de mágica tivessem chegado ao governo da nossa República algumas figuras capazes de executar semelhante arrojo, permaneceria apor resolver o terceiro vértice do triângulo: o papel do sistema financeiro.

Aqui reside, talvez, o mais delicado do problemas a resolver pois os próprios mercados financeiros são sustentados pelo sistema financeiro e funcionam segundo as regras e a lógica deste, as quais se encontram nos antípodas dos princípios de funcionamento em prol da comunidade que deveriam balizar a gestão da coisa pública e do respectivo orçamento.

Assim, mesmo que lográssemos a reintrodução de rigorosos critérios de gestão estes apenas fariam total sentido caso de verificasse um profunda modificação no paradigma de funcionamento do sistema financeiro, deixando de privilegiar um sistema creditício onde os banqueiros, por serem detentores do monopólio da criação da moeda, são os únicos que lucram a expensas dos contribuintes.
___________
[1] Recorde-se que os agentes de Mercado, forçados a tomar decisões em períodos conturbados e com prazos mínimos, usam como mecanismo de defesa fazer o que vêem fazer; algo de parecido ao mecanismo de defesa das manadas de herbívoros que, quando acossadas por um predador, tendem a correr em grupo e na mesma direcção, na expectativa de confundir o adversário ou mais prosaicamente de verem “comido” o distraído que escolheu a direcção oposta.
[2] Recorde-se a propósito a habitual “norma nacional” que assegura maiores aumentos para a função pública e aumento de outras despesas em anos eleitorais, para se compreender a real influência que as opções meramente políticas têm nesta matéria.
[3] A par com o sentimento comum da exorbitância de gastos ministeriais com consultores, assessores e adjuntos e mesmo entendendo-a com as devidas reservas, a notícia do JORNAL DE NEGÓCIOS que refere que o «Ensino Superior português podia produzir o mesmo com metade do dinheiro» pode servir de exemplo para a avaliação dos tais desperdícios.

Sem comentários: