Qual barco que mete água por todos os lados, a situação parece incontrolável numa empresa que acaba de registar o 25º suicídio no espaço de ano e meio – a ponto de já se terem começado a registar as primeiras reacções dos poderes estabelecidos, ainda que apenas ao 24º caso é que se tenha verificado a primeira “baixa” na administração[2] –, seja através de alguma acção do governo francês, seja da própria administração[3] ou dos clientes[4], começando até a registar-se outros ecos, como seja a recente publicação dos resultado de uma sondagem que dá conta do facto de 2/3 dos franceses inquiridos se julgarem cada vez mais pressionados pelo trabalho.
Este fenómeno, objecto de um crescente interesse por parte da imprensa, não é novo e ainda menos um exclusivo de países com economias mais avançadas que a nossa; recordo-me inclusive de uma notícia que o JORNAL DE NOTÍCIAS publicou em meados de 2002 segundo a qual era cada vez maior o número de bancários que recorriam aos serviços de psiquiatria, como evidente sinal da crescente degradação das condições sociais e de trabalho em sectores de actividade particularmente sujeitos a processos de “modernização” ou de “reestruturação” – chavões que na gíria gestionária não significam senão a habitual procissão de reduções de quadros de pessoal, redistribuição de funções, sobrecarga de responsabilidades e, inevitável, crescimento exponencial dos objectivos – tudo em nome da sacrossanta produtividade e sob a permanente ameaça do despedimento (em especial para os trabalhadores mais jovens), da deslocalização do posto de trabalho ou da “prateleira” (para os trabalhadores mais velhos).
Além de não constituir novidade, antes a realidade que milhões de trabalhadores enfrentam diariamente, a persistência de práticas abusivas na gestão de recursos humanos começou já a transformar-se no que parece ser uma normalidade. Depois das empresas do sector financeiro – as primeiras onde conceitos como o da gestão por objectivos e práticas como a da competitividade desregrada e sem resquícios de ética – outras começaram a “importar” aquelas técnicas de gestão como sinal da sua modernidade e da sua capacidade perante mercados cada vez globalizados e concorrenciais, facto que poderá estar na origem de notícias como a que dá conta de que em Portugal o «consumo de psicofármacos aumentou 36,6 por cento em cinco anos».
Já não deverão vir longe os tempos em que sociólogos e outros investigadores na área das ciências sociais começarão a apontar a responsabilidade destes modelos anacrónicos de gestão no comportamento de outras variáveis sociais como a natalidade, a capacidade de sociabilização das gerações mais novas (quem é que “esmagado” entre as elevadas cargas horárias de trabalho, o “stress” permanente dos objectivos que nunca param de crescer ou a rivalidade sem nexo com aqueles com que deveria cooperar, ainda encontra disponibilidade para “viver”?) e toda uma panóplia de disfunções físicas e psicológicas cuja ocorrência ainda não começou a ser associada aquela prática. Mas, entretanto, para aqueles que entendem que existe “vida” além do “trabalho” e que denunciam o absurdo das teoria que pugnam pelo uso da difícil via da competição para alcançar o que se poderia atingir usando modelos de trabalho mais cooperativos, continua o calvário do dia-a-dia de trabalho sem gosto nem glória... ou a saída de um acto extremo como o suicídio.
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[1] A FRANCE TÉLÉCOM é apenas a principal empresa francesa de telecomunicações e uma das cem maiores empresas mundiais e cuja principal marca é a ORANGE (telecomunicações móveis e digitais). Resultou de uma divisão da empresa pública PTT (Postes, Télégraphes et Téléphones) e da posterior privatização em 2004; em 2008 apresentou um volume de facturação de 53,5 mil milhões de euros e um número de trabalhadores superior a 185 mil, que segundo esta notícia do DN já só deverá atingir os 100 mil.
[2] Luis-Pierre Wenes, o número 2 da administração liderada por Didier Lombard, demitiu-se no início do mês; a sua substituição já foi assegurada por Stephane Richard que, segundo esta notícia do NOUVEL OBS, reconhece que terão existido alguns exageros nos métodos de gestão ao contrário de Lombard que ainda hoje reafirmou a intenção de não se demitir.
[3] Exemplo disto pode ser esta notícia do NOUVEL OBS que dava conta de que o PDG (o equivalente ao nosso presidente do conselho de administração) da empresa admitia não ter reconhecido os “sinais de aviso”.
[4] Paradigmático da forma como o público francês está a reagir a este imbróglio é esta notícia do NOUVEL OBS que refere o facto dos acontecimentos estarem a gerar um elevado número de cancelamentos de contratos.
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