sábado, 29 de setembro de 2007

A IMPORTÂNCIA DOS BONZOS

Ao décimo dia de manifestações contra a ditadura militar em Myanmar, os todo-poderosos militares decidiram subir mais um degrau na escalada da confrontação e pela primeira vez abriram fogo sobre os manifestantes. Saldo da opção: uma dezena de mortos, segundo fontes oficiais, várias dezenas, segundo fontes da oposição.

Pese embora as divergências nos números, estes não são nada que se compare com os mais de 3.000 de mortos e desaparecidos que ocorreram em 1988 aquando da última grande movimentação popular contra a ditadura militar que em 1962 colocara no poder o general U Ne Win. Três milhares de vidas humanas custaram o afastamento daquela figura que no mesmo ano seria substituída pelo general Saw Maung, em consequência de novo golpe militar.

O movimento de 1988, que ficou para a história como o Levantamento 8-8-88[1], teve origem no descontentamento popular em resultado das más condições económicas e da manifesta incapacidade dos militares para resolverem a situação. Então como agora a população desta antiga colónia inglesa[2] veio em massa para a rua exigir o fim do governo militar. Apesar do malogro da iniciativa, realizar-se-iam eleições em 1990, cujos resultados – esmagadora vitória da Liga Nacional para a Democracia (LND) que alcançou 80% dos lugares parlamentares – foram prontamente anulados pelo partido dos militares (Conselho para a Restauração do Estado Lei e Ordem) que recusou ceder o poder.

O regime, liderado desde 1992 pelo general Than Shwe, além de ter mudado a designação do partido no poder para Conselho para o Estado Paz e Desenvolvimento e de ter prometido uma nova constituição[3] pouco mais fez pelo que volta agora a confrontar-se com a oposição popular.
O que torna particularmente interessante o acompanhamento da evolução da situação naquele país, além do natural desejo de ver resolvida uma situação política particularmente anti-natural – em qualquer região do mundo os aparelhos militares existem para fins de protecção (ou projecção de força) e não para assegurar funções legislativas ou executivas, para as quais estão evidentemente desajustados – é ver a forma como nele actua o aparelho religioso. Myanmar, país do sudoeste asiático, é predominantemente budista e a influência da estrutura religiosa sempre foi determinante em todos os momentos de maior relevância política.

O movimento independentista que se opôs à colonização britânica contou com a empenhada participação dos monges budistas (bonzos), tendo o mesmo acontecido em 1988.

Tal como então, também desta vez o movimento de contestação contra a junta militar conheceu evidente crescimento após as primeiras aparições de bonzos nas manifestações. A importância destes resulta do facto das populações continuarem ainda hoje a reconhecer os seus religiosos como verdadeira reserva moral da sociedade e de historicamente estes sempre se terem manifestado em defesa das populações que servem e de quem dependem exclusivamente[4].

A recente decisão dos bonzos de iniciarem um processo de recusa em aceitar esmolas dos militares pode bem constituir um golpe definitivo nas esperanças de preservação dos militares no poder.

Não é pois de estranhar que até no Ocidente se veja a crise birmanesa sob um prisma muito particular…

tanto mais que nos tempos actuais existem novos meios de difusão da informação – a Internet – de que se têm socorrido alguns birmaneses para fazer chegar ao resto do mundo o relato do que por lá se passa.

Não é pois de estranhar que além de um jornalista japonês morto (uma das primeiras vítimas mortais) a junta militar esteja a tentar por todos os meios impedir o funcionamento da Net no seu território e a sua utilização enquanto veículo de difusão dos acontecimentos.

As reduzidas ligações comerciais de Myanmar, que quase se limitam ao triângulo China, Índia e Tailândia, tornam particularmente ineficaz o recurso aos mecanismos diplomáticos habituais bem como à política de sanções económicas tão do agrado de americanos e europeus.

Após o fracasso da iniciativa britânica para obter uma condenação pelo Conselho de Segurança da ONU – solução a que a China se opôs sob a alegação, não sem fundamento, que a actual crise não constituindo uma ameaça à segurança internacional ou regional não passará de um problema de ordem interna – apenas aqueles três países poderão influenciar o regime militar birmanês, o que só acontecerá quando sentirem os seus interesses económicos ameaçados; até lá o LND e a sua principal figura – Aung San Suu Kyi[5] – apenas poderão contar com as suas próprias forças e com a ainda grande influência dos bonzos.

A luta poderá ser desigual, mas a recente decisão dos bonzos de recusarem esmolas[6] dos militares, em resposta à repressão e às prisões a que têm sido sujeitos, parece começar a fazer alguns estragos no moral das tropas, pelo menos fazendo fé em notícias como esta difundida pelo DIÁRIO DIGITAL, que dando conta das primeiras insubordinações tornam ainda mais difíceis as respostas a perguntas simples como:

Irão os governantes militares dar ouvidos aos incontáveis apelos à calma e ao diálogo?

Poderá o regime vacilar sob o peso da fúria popular ou em resultado de divisões no interior do exército, ou conseguirá perpetuar-se através de um processo de aterrorização da população como o fez em 1988?

Como muito bem resume um correspondente da BBC NEWS na região, Jonathan Head: «Ignoramos qual destes cenários é mais plausível pela simples razão que é impossível conhecer o pensamento da reduzida clique de generais que dirige o país» [7]
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[1] Consequência das grandes manifestações de 8 de Agosto que culminaram com o afastamento de Ne Win.
[2] Então designada como Birmânia, o território esteve sob colonização inglesa entre 1886 e 1948 e sob administração provincial conjunta com a Índia. Após a Segunda Guerra Mundial e a ocupação japonesa acabou por alcançar uma independência que nunca conheceu tempos fáceis.
[3] Prometida em 1992, quinze anos volvidos o regime militar ainda não conseguiu elaborar o documento final.
[4] A importância dos monges não deriva apenas de um fenómeno de maior religiosidade das populações mas fundamentalmente das comunidades budistas sempre terem estabelecido um relacionamento muito estreito com os grupos religiosos. Não só estes dependem exclusivamente das populações para a satisfação das suas necessidades básicas (alimentação e vestuário) como estas dependem dessas dádivas para o reconhecimento dos seus méritos.
[5] Aung San Suu Kyi, é a líder da oposição e activista dos direitos humanos premiada com o Nobel da Paz em 1991. Natural de Rangun, é filha de Aung San o herói nacional da independência da Birmânia que foi assassinado quando esta tinha apenas dois anos de idade; regressou ao país por altura do Levantamento 8-8-88 tendo-se tornado rapidamente a líder do movimento de contestação ao regime militar. Após a vitória eleitoral da LND, Suu Kyi viu-se remetida a prisão domiciliária pela junta militar que governa o seu país. Após a atribuição do Prémio Sakharov, em 1990, e do Nobel da Paz no ano seguinte, o governo militar decidiu levantar, em 1995, a pena de prisão domiciliária que lhe imposera, como sinal de abertura democrática dirigido à comunidade internacional, mas as suas liberdades individuais continuam muito limitadas. (adaptado de Wikipédia)
[6] Nas comunidades budistas a esmola reveste-se ainda hoje de uma importante função espiritual e os monges mantém viva a tradição de procederem à recolha diária dos seus únicos meios de subsistência.
[7] Ver o artigo de opinião, na íntegra, aqui.

1 comentário:

antonio ganhão disse...

Bom texto. Vamos ver como tudo isto termina. Faz-me lembrar Timor.