sábado, 1 de setembro de 2007

HAVERÁ FUTURO NA CRISE?

Seja qual for a profundidade da crise que atravesse a economia global (pela sua dimensão e pelas suas ramificações a crise financeira que está a afectar a economia norte-americana facilmente se generalizará, tanto mais que tudo o indica estaremos já no dealbar de uma crise económica) é cada vez maior o número de economistas que apontam a necessidade de novas formas de abordagem para o conhecido ciclo expansão – recessão – expansão que as economias mais desenvolvidas se habituaram a registar nos últimos anos.

Por isso, contrariar os habituais optimistas e falar de crise a propósito da actual conjuntura recessiva norte-americana terá que ser muito mais que clamar que o rei vai nu! Muitos sabemos isso há demasiado tempo para bastar afirmar o que achamos evidente.

Se as economias sustentadas em mercados de capitais cada vez mais fortes - ainda que sem o correspondente suporte na respectiva componente produtiva - se revelam cada vez mais frágeis às suas convulsões internas, já deveriam ter originado novas abordagens práticas mas isso é o que de modo algum interessa aos promotores do modelo actual porque significará uma inevitável perca de poder.

Confirmando que, ao contrário do que pretendem os defensores do modelo sustentado na escassez de liquidez financeira, a actual crise é muito mais que uma mera crise de liquidez reveja-se o que em Março deste ano escreviam os analistas do LEAP[1]: «…os EUA estão próximos de se afundar na “Muito Grande Depressão” de 2007 e (…) o ponto de inflexão da crise sistémica global confirma-se para o mês de Abril. As próximas semanas são ser caracterizadas pela extensão do contágio da crise imobiliária ao conjunto da esfera financeira e ao consumo das famílias americanas, originando graves consequências nos resultados de muitos sectores da economia americana e no dólar US».

A fim de se ter uma ideia da dimensão que pode atingir uma crise do dólar US, atente-se na evolução do volume dos activos financerios denominados nesta moeda detidos por estrangeiros. Os quase 13 biliões (1312) de dólares US produzirão uma onda de choque incontível se a moeda americana mantiver a tendência de desvalorização que tem vindo a registar. A interpenetração entre as economias mais avançadas e a forte dependência de muitas moedas em relação ao dólar US vai produzir grandes estragos na economia mundial.

Se tudo isto é cada vez mais um dado adquirido é também cada vez mais pertinente a interrogação sobre a estratégia que os responsáveis mundiais (e os americanos em particular) estão a seguir para contrariar, ou pelos menos minimizar, os efeitos descritos. Espanto dos espantos, perante a crise originada pelo aumento da taxa de insolvência no mercado de crédito imobiliário dos EUA, os governadores dos principais bancos centrais (o americano Ben Bernanke, do FED, e o francês Jean Claude Trichet, do BCE) têm–se limitado a injectar sucessivas doses de moeda no sistema bancário como se tudo se resumisse a uma mera situação conjuntural de falta de liquidez no mercado; seguidores fiéis das tradições e dogmas monetaristas, Bernanke e Trichet têm-se limitado a fazer o que viram os seus antecessores fazer anteriormente... e tudo poderia continuar pelo melhor não fora esta prática derivar de duas concepções erróneas. A primeira é, como vimos, a de que não estão a lidar com uma mera crise de confiança nos mercados de capitais; a segunda é que a moeda injectada nos bancos resulta de um mero artifício contabilístico (logo não vai resolver qualquer problema de falta de liquidez originada nos baixos rendimentos das famílias) gerador de mais juros a pagar ou, pior, resulta da impressão de papel-moeda numa mera operação de produção legal de moeda falsa, que se realizada em excesso produzirá dois efeitos particularmente perversos: irá contribuir para o aumento da inflação (o tal Monstro aterrorizador de banqueiros) e para uma ainda maior desvalorização a prazo da moeda norte-americana e uma maior necessidade de subir as taxas de juro por forma a manter a atractividade dos seus activos junto dos investidores estrangeiros.

Se atentarmos na realidade, ou seja que a crise originada no mercado imobiliário resultou do efeito conjugado das elevadas taxas de juro e do baixo nível de rendimentos das famílias que, em número cada vez maior entram em situação de incumprimento, arrastando consigo os institutos de financiamento imobiliário com maior volume de crédito concedido de alto risco e já distribuído pelos fundos de investimento, de pensões e de especulação (hedge funds), que já estará a atingir os bancos comerciais[2] junto dos quais estes se financiaram, constata-se que a política do FED mais não vai fazer que ampliar os efeitos da crise.

Partindo da leitura da situação de escassez de liquidez que a economia mundial vive, autores como Richard C Cook[3], têm vindo a produzir trabalhos no sentido de explicar a necessidade de uma nova política monetária, não orientada para favorecer os interesses do sector financeiro mas sim para o do equilíbrio do tecido económico.

Num dos seus trabalhos mais recentes, intitulado “CREDIT AS A PUBLIC UTILITY: THE KEY TO MONETARY REFORM”, Richard C. Cook, começa por salientar que «vivemos numa era de desregulamentação, na qual economistas e políticos falam do “mercado” e não do governo, como a via adequada para a tomada de decisões económicas» e continua «...se a economia baseada no mercado é tão boa, porque é que os rendimentos do trabalho têm estagnado, contribuindo para um rápido controlo da riqueza pelos mais ricos, a classe média tem declinado, a pobreza tem crescido, a indústria de base está a desaparecer, a bolha especulativa no imobiliário está a rebentar, os preços dos bens estão inflacionados, as cotações das acções são frágeis mas continuam a subir, financiamos uma guerra no Médio Oriente que nos custa biliões de dólares mediante recurso a dívida externa e os mercados de capitais são dominados por fundos predadores? Porquê e como é que “o mercado” prejudicou tanto a maioria enquanto enriquecia uma minoria?

No topo de tudo isto está o crescimento exponencial da dívida. As famílias americanas nunca, ao longo da sua história, estiveram tão endividadas. O mesmo acontece com o governo federal, os governos estaduais e os poderes locais, assim como os negócios. Os únicos não endividados são as instituições financeiras a quem toda a gente em geral deve dinheiro. Talvez isto é que seja o que se designa por “o mercado”» para concluir que o principal problema reside numa escassez crónica de meios monetários (liquidez) e que esta é consequência de uma actuação do sistema financeiro, que a coberto de um banco central (o FED no caso americano), tem vindo a criar uma situação que torna toda a gente dependente do crédito.

Se este fosse utilizado enquanto instrumento de desenvolvimento – gerador de mais bens e serviços e da consequente melhoria das remunerações salariais – e desnecessário enquanto meio para suprir necessidades de consumo, nem as famílias ou os Estados estariam na situação de sobreendividamento que hoje conhecemos.

Na prática o que Cook defende é o abandono de uma política orientada em benefício de uns quantos mas em prejuízo da vasta maioria, algo que pragmaticamente me parece impossível de alcançar de forma rápida e sem enormes custos e sacrifícios.

Quando corremos o sério risco de vir a ter que enfrentar uma grande crise económica, na sequência das que as economias têm registado no último século, devia ser evidente para todos a necessidade de uma mudança nas políticas que aqui nos conduziram, porém, esperar isso dos políticos que tão diligentemente defenderam este estado das coisas e que terão sido eleitos com o “alto patrocínio” da alta finança parece-me absolutamente impossível.

Muitos continuaremos a defender princípios basilares como os do “governo do povo para o povo” e os benefícios da democracia, mas aqueles que verdadeiramente determinam o futuro que nos espera estarão já muito mais preocupados a arquitectar as formas através das quais se perpetuarão...

Prova disso mesmo são as recentes declarações de George W Bush que admitindo uma intervenção favorável aos cidadãos mais endividados exclui idêntico procedimento relativamente aos especuladores e de Ben Bernanke que prometendo a acção necessária para travar os efeitos adversos na economia em geral mas não servem que para confirmar a existência de um cenário de crise. Se numa próxima intervenção o FED cortar a taxa directora, opção que se me afigura pouco provável[4], não haverá mais lugar a dúvidas quanto à dimensão da crise.
________________
[1] LEAP (Laboratoire Européen d’Antecipation Politique) é um “think tank” europeu consagrado à elaboração de antevisões políticas e económicas
[2] Ver esta notícia da BBC que reporta o facto de pela segunda vez nas duas últimas semanas o banco Barclays, alegando problemas no sistema de compensação interbancário (que não afectaram mais nenhum banco daquela praça), ter recorrido ao Banco de Inglaterra para obter fundos, cerca de 2 mil milhões de libras, que não terá logrado obter no mercado interbancário.
[3] Richard C. Cook é um estudioso e consultor de empresas de nacionalidade norte-americana. Licenciado na Universidade William and Mary (uma das universidades públicas mais prestigiadas nos EUA) este antigo analista governamental (durante a presidência de Jimmy Carter) que também desempenhou funções na Food and Drug Administration, na NASA (onde esteve envolvido na denúncia dos defeitos que culminaram com o desastre do vai-vem Chalenger) e no Departamento do Tesouro dos EUA abandonou funções governamentais em Janeiro de 2007 e tem desenvolvido desde então uma actividade de escritor, orador e consultor em matérias de administração pública, mudança organizacional e resolução de conflitos. Pelo seu papel nos trabalhos da comissão federal nomeada para a investigação do acidente do Chalenger e na divulgação das respectivas explicações, foi galardoado em 1991 com o prémio Cavallo Foundation Award for Moral Courage in Business and Government.
[4] Ver a explicação no post A MÃO INVISÍVEL.

Sem comentários: