A leitura das notícias nas últimas semanas poderá levar a supor que depois dos levantamentos populares que ditaram a queda dos ditadores tunisino (Ben Ali) e egípcio (Hosni Mubarak) outros líderes autocráticos do mundo árabe poderão conhecer o mesmo destino, facto que parece ter reacendido no Ocidente a ideia de que o seu conceito de democracia política poderá ser adoptado naquela região.
Mesmo considerando que as condições sociológicas e o efeito da globalização da cultura ocidental serão parte inegável – e importante – no desenvolvimento e na difusão da contestação às lideranças autocráticas que no século passado se instalaram no mundo árabe, nada disto assegura que o futuro dos povos que corajosamente agora se revoltam contra lideranças velhas de décadas melhore de forma significativa, nem que este movimento represente mais que um efeito da destruição dos elos políticos que ligam os diferentes regimes autocráticos.
Verdadeira representação disso mesmo tem sido a forma como a contestação tem acontecido num pais após outro e no facto desta se revelar mais eficaz naqueles onde as rendas da exploração de hidrocarbonetos (petróleo e gás natural) são menores ou inexistentes ou nos mais ocidentalizados, enquanto dá alguns sinais de menor popularidade naqueles onde o regime se sustenta numa certa forma de monarquia (Marrocos, Arábia Saudita, Jordânia).
Duvido mesmo que as movimentações e os apelos à revolta (designados na terminologia local como “dias de raiva”) tivessem encontrado eco se as condições materiais das populações não se tivessem degradado em consequência directa da crise global que levou ao aumento das taxas de desemprego e do preço dos bens de primeira necessidade[1], facto que reforça ainda mais a ideia de que a contestação parece resultar principalmente da desagregação e do desgaste próprio de regimes que duram há várias décadas e que já não conseguem renovar-se nem mobilizar apoios. Exemplos na história recente podem ser encontrados na agitação popular que em 1998 levou à deposição do ditador indonésio, Suharto, que, tal como agora, aconteceu depois de um ano antes a chamada crise asiática[2] ter forçado o país a recorrer ao apoio do FMI e de, na sequência destes dois acontecimentos, o poder de compra local ter caído cerca de 50%; tal como então a história mantém uma admirável tendência para se repetir, pois também agora foi a degradação das já precárias condições de vida das populações árabes o detonador para a agitação e a contestação dos anquilosados regimes autocráticos, impotentes perante a dimensão da crise e da contestação.
Seja qual for a evolução dos próximos dias, quando há registos de manifestações e agendamentos de novas movimentações em países tão diversos como Marrocos, Tunísia, Líbia, Yemen, Bahrein, Síria, Irão e Jordânia – mesmo depois duma anunciada remodelação governamental pelo rei Abdullah – permanecem duas incógnitas de peso: a posição dos aparelhos militares de cada um destes estados e a reacção norte-americana perante aquele que poderá constituir um rude e final golpe na hegemonia da sua moeda enquanto instrumento preferencial de cotação e pagamento do petróleo e seus derivados[3], além de acrescidas dificuldades logísticas para a sua 5ª esquadra, que tem no Bahrein a sua base de comando.
Embora raramente referida por analistas e comentadores, a verdadeira chave para a antevisão do futuro da região está nas estruturas militares e não nos anseios e na maior ou menor capacidade de mobilização e de contestação das populações. Senão, vejam-se os recentes acontecimentos no Egipto, onde o desfecho do braço de força esteve na actuação do exército que, agora como durante o regime de Mubarak, controla na verdade o país e na sua maior ou menor disposição para afrontarem os EUA, país de quem dependem para o seu equipamento e que no último quartel do século passado, deixando de fora a Líbia e a Síria, teceu uma habilidosa teia de interesses que parecendo aumentar a capacidade operacional de cada país deixou-os, na realidade, à mercê das suas conveniências e das dos israelitas.
[1] Recorde-se que já em 2008 tinham ocorrido no Egipto manifestações contra a subida do preço do pão que incluíram pilhagens em padarias.
[2] A crise asiática resultou de um ataque especulativo contra um conjunto de moedas daquela região, incluindo a rupia indonésia, consubstanciado numa prática generalizada de operações de “short selling” (venda a descoberto) que levou a uma forte desvalorização da rupia, ao colapso da economia e à suspensão dos pagamentos das dívidas ao exterior.
[3] Recorde-se que a Arábia Saudita usa desde 2009 a cotação Brent (europeia) do petróleo em detrimento da americana.
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