Embora seja um desgastado lugar comum, parece-me ainda uma boa forma de introduzir qualquer comentário sobre a situação palestiniana, tanto mais que durante esta semana muito se leu e ouviu sobre a passagem do Papa Bento XVI por aquela região do Médio-Oriente[1].
Deixando de parte o folclore que sempre rodeia as deslocações papais e as habituais e inconsequentes declarações e apelos à Paz e à Concórdia, talvez o mais importante e significativo acontecimento tenha sido o completo fracasso que resultou precisamente do encontro inter-religioso previsto para o primeiro dia da visita.
De acordo com fontes tão diversas quanto insuspeitas, como esta notícia do PUBLICO ou estoutra da BBC, o encontro inter-religioso previsto para a tarde do primeiro dia da visita do Papa ao Médio-Oriente foi palco de um incidente quando o xeque Tayssir Al-Tamini tomou a palavra (alegadamente fora da agenda de intervenções) e em árabe, mas percebendo-se pelo tom de voz que o discurso era de poucos amigos, fez um discurso de “negação do diálogo” (segundo a interpretação oficial do Vaticano citada pelo PUBLICO). Quanto à conclusão do incidente as fontes divergem, pois o PUBLICO assegura que o Papa abandonou a sala e o encontro terminou de imediato, facto que as restantes fontes não informam, como também não o fazem relativamente a quaisquer conclusões.
Aliás a quase ausência de informação é a nota dominante do acontecimento e apenas em três locais (na página da agência noticiosa ZENIT, num blog associado ao jornal italiano L’ESPRESSO[2] e num sítio católico francês – Eucharistie Sacrement de la Miséricorde, que exibe o que parece uma tradução do primeiro) encontrei alguma informação adicional, nomeadamente a transcrição de parte do discurso do xeque, presidente do Supremo Tribunal Palestiniano (entidade responsável pela aplicação da lei islâmica nos territórios palestinianos), que nas palavras do blogger italiano disse o que muita gente pensa.
Mais, o incidente deve ser analisado dentro dum contexto específico e pode ser bem revelador, como se refere na última fonte citada, de «...que o desejo de ver as três religiões darem um exemplo de um acordo de paz no Médio Oriente, tal como pretende Bento XVI, exige uma paciência e tenacidade verdadeiramente divinas».
Esta polémica, incluindo a questão de saber se a reunião foi ou não suspensa, não é estéril e merecia certamente melhor cobertura informativa que a que recebeu, pois na actual conjuntura a questão do diálogo inter-religioso pode revelar-se um importante apoio na procura de uma solução para a questão palestiniana; muito mais relevante até que os apelos papais à solução dos dois estados, tão cara aos EUA e a alguns sectores palestinianos, mas tão pouco do agrado dos israelitas e cada vez menos exequível face ao grau de ocupação israelita dos territórios palestinianos.
É certo que não estava à espera que o Vaticano fosse para o Médio Oriente defender a solução que me parece mais adequada – dois povos, um estado – nem que as suas posições sejam tidas em grande conta pelas partes interessadas, mas também não se afigura totalmente displicente o conhecimento da forma como se terá desenvolvido (ou não) o famigerado diálogo inter-religioso, sem esquecer que o seu aprofundamento só será efectivamente real quando as divisões políticas deixarem de funcionar como agentes potenciadores das divergências religiosas e estas passem a ser entendidas como valores fundamentais para os indivíduos, mas não fundadores para a vida e a disputa política das sociedades.
Se é verdade que em boa medida o ocidente cristão realizou com sucesso há muitos anos um processo de separação entre a esfera religiosa e a política (longe vão os tempos em que o Papado influenciava e decidia sobre os governos nos países católicos) e que idêntico processo ainda não ocorreu nas sociedades islâmicas, facto que hoje é muitas vezes apresentado como razão para as divergências e os ódios que de parte a parte se propalam, não é menos verdade que as tentativas de influência mais não têm feito que inflamar ainda mais os ânimos.
O proselitismo que é dificilmente dissociável das culturas religiosas (quem já esqueceu as guerras e os milhões de mortos que a supremacia das fés e dos deuses sustentaram ao longo dos tempos) será sempre um importante factor de redução dos possíveis benefícios da desejável aproximação entre as chamadas religiões do Livro (judeus, cristãos e muçulmanos partilham além da fé monoteísta o culto dos textos sagrados), tanto mais que estas religiões, ao contrário das religiões orientais que apresentam uma profunda raiz filosófica, se sustentam principalmente num valor tão intangível como a fé e mantém uma grande atracção por fenómenos como o do martírio.
Para fechar o círculo regressando à questão palestiniana, termino com a referência à oportuníssima entrevista de Tony Blair (recordam-se… o ex-primeiro ministro britânico, grande co-responsável conjuntamente com George W Bush pela injustificada invasão do Iraque, inventor do “New Labour” e agora representante do Quarteto para a Paz no Médio Oriente)
ao PUBLICO que titulou tonitruantemente: «Tony Blair: Não há nada mais importante do que a paz no Médio Oriente» mas que no essencial se resumiu a reafirmar a defesa da cada vez mais desgastada solução dos dois Estados; tão desgastada que no dia seguinte o TIMES estava a dar voz a declarações do rei da Jordânia[3], Abdullah bin al-Hussein, que asseguram estar em preparação um plano de paz não com 2 estados (Israel e a Palestina) mas com 57, ou seja o conjunto dos membros da Organização da Conferência Islâmica.
O futuro dirá o que tudo isto tem de realista, mas quase seguramente vamos voltar a assistir a uma nova ronda de conversações onde todos se mostrarão profundamente empenhados em obter resultados à custa do povo palestiniano.
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[1] Igual referência deve merecer a notícia difundida pelo PUBLICO, segundo a qual «Obama avisa Israel para não atacar o Irão» e que se inserirá na nova estratégia de desanuviamento entre os EUA e o Irão e de progressiva transferência de forças militares norte-americanas do Iraque para o Afeganistão.
[2] O blog SETTIMO CIELO é da autoria de Sandro Magister, natural de Milão, licenciado em Teologia, autor de dois livros de história política da Igreja católica – “La politica vaticana e l’Italia 1943-1978” e “Chiesa extraparlamentare. Il trionfo del pulpito nell’età postdemocristiana” – e colunista regular do semanário L’ESPRESSO na qualidade de especializado em questões religiosas.
[3] Referências a estas declarações podem ser lidas no PUBLICO, na BBC NEWS e no TIMES ONLINE.
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