quarta-feira, 8 de julho de 2015

EQUÍVOCOS DE MUITAS PALAVRAS

Poucos duvidarão que vivemos tempos de mudança (e de mudança conturbada) e que historicamente estes tempos são particularmente fecundos. Assim foi com os grandes saltos que a Humanidade foi dando ao longo do tempo e embora uns se tenham revelado mais tranquilos que outros, é inegável que muitas das grandes mudanças implicaram o seu quinhão de sacrifícios (e de sacrificados) e que em todas elas terá havido quem tenha procurado explicar o inevitável aos sacrificados.

Foi assim que na sociedade ocidental se enraizaram estruturas aparentemente conciliatórias que beneficiando sempre da proximidade dos poderosos lá foram prometendo o céu aos mais sacrificados. Do mesmo modo, desde a difusão da imprensa têm abundado os escribas que privilegiam o apaziguamento à informação dos leitores. Isso mesmo sucede, como o faz César das Neves, quando se procura reduzir a complexa e muito delicada situação da Zona Euro aos meros «Equívocos de uma palavra» - Austeridade.

O autor baseia a sua argumentação no pressuposto que a austeridade é resultante da cumulação de défices e de endividamento, que foram consequência de má governação e que a austeridade oferecida pela ajuda externa é mais suave e mitigada que a que resultaria dum súbito ajustamento do total das despesas, incluindo os juros, ao total das receitas.


O que parece um raciocínio inabalável conduzindo à inevitável conclusão, bem ao gosto friedmaniano, de que não há almoços grátis – leia-se: perdão da dívida – é tão susceptível de crítica como qualquer outra opinião. Como, por exemplo, quando revela que padece do mesmo tipo de simplismo que atribui aos críticos da austeridade ao afirmar que estes esquecem que já antes da crise não existia crescimento ou este foi insuficiente para evitar o endividamento explosivo, ele, por sua vez, esquece de referir que a adopção generalizada das teses monetaristas e do princípio do “trickle-down economics”, em benefício das grandes empresas e dos grupos de maiores rendimentos, conduziu à erosão das receitas públicas e daí ao agravamento dos défices. Não foram apenas os políticos «…capturados por interesses, próprios ou alheios, concedendo benesses acima daquilo que o país podia pagar…» que agravaram as dívidas; foram, isso sim, os políticos que, capturados pelos interesses subjacentes às teses monetaristas, levaram à redução da carga fiscal sobre os que mais e melhor podiam pagar, que estiveram na origem do problema.

Mas este não é o único equívoco de César das Neves. O segundo, em nada inferior ao primeiro, é o de ora colocar em pé de igualdade os interesses de devedores e credores, ora sobrevalorizar os direitos dos credores – o princípio da sacrossantidade dos juros e do capital – enquanto faz tábua rasa do elementar dever da avaliação e acautelamento dos investimentos. Por outras palavras, enquanto aos devedores cumpre a obrigatoriedade de respeitar as obrigações assumidas em seu nome, os credores (agentes económicos invariavelmente melhor informados) estão isentos da mínima responsabilidade.

É óbvio que ao longo da argumentação não deixa de apresentar pontos de vista dignos de nota, como seja a referência ao interesse dos contribuintes em controlar os desmandos praticados em seu nome pelos governantes, embora não o faça no sentido do apelo ou do apoio a um processo de auditoria cidadã das dívidas, antes, e tão só, por admitir, sem rebuço ou contrição, que são aqueles contribuintes quem suporta os custos das más políticas.

Por estas razões e pelos resultados práticos da aplicação das teorias ordoliberais, é que, ao contrário do que pretende César das Neves, os equívocos não residem numa palavra e é aconselhável que ao invés da recomendação, de contornos absolutamente monásticos, para «…um uso mais austero da palavra austeridade…» nos preocupássemos com os habilmente tecidos equívocos de muitas palavras…


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