quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

DUELO NA SÍRIA

Têm sido recorrentes na última semana as notícias sobre a localidade síria de Ghouta. Não há meio de comunicação ocidental que se preze que não o tenha apresentado em cabeçalho ou notícia principal, referindo essencialmente o número de mortos originado pela ofensiva das forças sírias contra um dos últimos bastiões da oposição.

Por contraposição a outras iniciativas que tiveram lugar na já longa guerra civil síria – sim, o que ocorre naquela região do Médio Oriente é uma guerra civil alimentada por disputas pela hegemonia regional e pelos ancestrais interesses geoestratégicos de russos e americanos – o que está agora a ser relatado como um genocídio perpetrado pelo regime de Bashar Al Assad não deverá ser muito diferente do resultado de muitas outras ofensivas levadas a cabo sob o alto patrocínio das potências ocidentais na região. Recordem-se as ofensivas contra o Daesh, na Síria e no Iraque, ou até as quase silenciadas operações sauditas no não menos martirizado Iémen e tenha-se uma ideia do real quadro na região.


É evidente que todas as baixas civis ou militares devem ser lamentadas, mas a nossa objectividade não pode ser sempre sacrificada em nome dos mesmos interesses, para mais num conflito e numa região onde estes têm assumido uma geometria cada vez mais ao sabor dos humores e da agenda norte-americana. Depois duma guerra Irão-Iraque, alimentada na sequência do derrube do Xá Reza Pahlavi por uma oposição liderada pelos ayatollah xiitas, de duas guerras contra o iraquiano Saddam Houssein, a última das quais quase irradicou um dos países artificialmente criados pelo acordo Sykes-Picot (pacto secreto entre os governos do Reino Unido e da França que, admitindo a hipótese de derrota e aniquilação do Império Otomano na I Guerra Mundial, definiu as respectivas esferas de influência no Oriente Médio e criou o actual mapa político da região), eis-nos agora a atravessar um período que poderá ser definido como de recomposição e reajustamento do intricado xadrez local e onde nunca pode ser esquecido o papel desestabilizador doutra criação artificial das potências ocidentais: o Estado de Israel.

Continuar a difundir a imagem de carniceiro de Bashar Al-Assad, como antes se fez com a de Saddam Housein, ou enfatizar apenas o papel do Irão ou da Rússia de Putin enquanto se esquece o da Arábia Saudita, o de Israel e dos EUA, apenas ajuda a alimentar os diferendos regionais e a dificultar qualquer solução. O fundamental desígnio de pacificação da Síria (como o de qualquer outra região ou conflito) não pode ser alcançado a partir duma visão enviesada da realidade que o tem alimentado, nem dos seus intervenientes directos e indirectos.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

O (DES)ACORDO ORTOGRÁFICO

Voltou esta semana ao Parlamento, por iniciativa do PCP e no Dia Internacional da Língua Materna (21 de Fevereiro), a polémica questão do Acordo Ortográfico e, como esperado o «Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico», embora durante o debate o PS, PSD, CDS e BE tenham admitido a necessidade do seu aperfeiçoamento, mas remetido para as conclusões duma Comissão de Avaliação de Aplicação do Acordo Ortográfico que deverão ser conhecidas daqui por uns meses.


Este resultado deixou o «PCP sozinho na defesa de desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico de 1990» (repare-se que transcrevi tal qual o moderno “suzinho”), que parece ter nascido dos interesses do sector editorial (se calhar pensavam que assim iriam beneficiar do vasto mercado brasileiro), nunca foi cabalmente debatido pela sociedade civil, ao qual muitos linguistas se opõem e nenhum dos outros países da CPLP ratificou.

Crítico desde a primeira hora desta idiosincrasia, quase me apetece reclamar como o saudoso Baptista Bastos (também ele um declarado opositor ao novo acordo) – não me tirem o “p” ao Baptista! – e não tenho qualquer dúvida que o facto de existirem já bom número de palavras homógrafas e homónimas não justifica que se criem mais com a regra da completa abolição das consoantes mudas que têm as especial relevância de fazerem falar...

Claro que, ao contrário das línguas mortas, as línguas vivas sofrem (e sofrerão) os efeitos do tempo e do seu uso, mas em resultado deste desconchavado acordo vigora uma situação de total confusão, onde umas pessoas escrevem sem respeitar o acordo, outras respeitando-o e um terceiro grupo (quiçá os maiores beneficiários desta trapalhada) misturando tudo.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

QUANDO AS BOAS NOTÍCIAS ESCONDEM A TRISTE REALIDADE

Voltámos esta semana a ouvir falar do bom desempenho da economia nacional com a notícia de que o «Produto Interno Bruto cresce 2,7% em 2017», dizendo-se mesmo que «Desde 2000 que a economia portuguesa não crescia tanto».

Saber que a «Economia portuguesa cresceu 2,7% em 2017, o ritmo mais rápido desde 2000» é uma notícia claramente positiva principalmente quando é o próprio INE que afirma no seu relatório que «[e]sta evolução resultou do aumento do contributo da procura interna, refletindo principalmente a aceleração do investimento...», confirmando a validade da tese há muito defendida sobre a importância do efeito multiplicador do consumo interno e que os neoliberais defensores da “austeridade-expansionista” tanto criticam e tanto contribuiram para delapidar.

Mas ninguém pode embandeirar em arco com a afirmação de que a «Economia cresceu 2,7% em 2017 à custa do investimento interno» quando o país continua a registar níveis de investimento preocupantemente baixos, nem será expectável qualquer inversão desta tendência enquanto se mantiver o peso excessivo dum serviço da dívida que outra coisa não é senão um mecanismo de transferência da riqueza nacional produzida para o exterior.


Continuar a defender a renegociação da dívida não é apenas uma necessidade da mais elementar justiça económica e social, é também algo de indispensável a quem quiser assegurar o futuro da economia nacional; sem demagogias nem falsos compromissos, o crescimento salutar do investimento de que continuamos a carecer (aquele que não se sustente em larga medida do recurso ao crédito) apenas poderá ocorrer quando se puser cobro ao processo de contínua transferência da riqueza proporcionado pelo sistema da dívida e nos termos em que este tem funcionado.

sábado, 10 de fevereiro de 2018

LEGISLAÇÃO POR MEDIDA

Os últimos dias têm sido férteis em notícias reveladoras do estado a que chegou a produção legislativa. Não me estou a referir aos casos mais mediáticos que envolvem juízes e procuradores da República, antes a coisa bem mais prosaicas como a recente alteração legal que faz com que a «A partir de Maio os animais de estimação podem entrar em restaurantes», facto por si só que me levará a questionar a razoabilidade da manutenção da proibição de fumar nos mesmíssimos locais.

Talvez pior ainda que esta incongruência é a notíucia de que o «Governo negoceia portagens para salvar 700 empregos da PSA em Mangualde», na sequência destoutra onde o grupo «PSA avisa que fábrica de Mangualde está em risco de fechar devido às portagens».

Se a primeira situação parece configurar uma evidente incongruência entre a sanha com que se fazem aplicar outras regras sanitárias e o evidente laxismo agora autorizado, a segunda parece ainda mais grave porquanto configura uma surpreendente submissão aos interesses dum fabricante automóvel que pretende ver alterado o mesmo critério de classificação dos veículos para efeitos de cobrança de portagens que tantos condutores há anos reivindicam sem qualquer resultado.


Diga-se, em termos práticos, que o problema do grupo PSA consiste na aplicação duma regra absurda (altura do veículo ao eixo dianteiro) para efeitos de aplicação da tarifa de portagem. A regra agora objecto de reavaliação determina que uma viatura com altura superior a 110 cm no eixo dianteiro seja taxada pela classe 2, foi criada em tempos para exclusiva protecção de um outro grupo automóvel (VAG) que então produzia em Palmela o monovolume Sharam e assim se viu benefiado perante uma cocnorrência que apresentava modelos idênticos mas com mais alguns cêntimetros de altura sobre o eixo dianteiro.

As autoridades rodoviárias e os sucessivos governos que sempre fizeram orelhas moucas aos argumentos demonstrativos do absurdo deste critério, que constitui uma idiosincrática aberração nacional sem exemplo em qualquer outro país, preparam-se agora para o corrigir, não pelo reconhecimento da aberração ou do erro mas simplesmente porque outro interesse surge agora, mascarado sob o argumento da salvaguarda dumas centenas de postos de trabalho.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O JUSTICIALISMO

Têm crescido os casos de investigação judicial relacionados com suspeitas de corrupção envolvendo empresários, figuras da política e até membros da magistratura, situação que pode ser encarada sob uma perspectiva positiva – a melhoria do ambiente social e a aparência de um efectivo combate a um dos grandes flagelos sociais e económicos – mas que tem igualmente revelado preocupantes sinais fragilidade, seja na aparente irrelevância de alguns casos, como foi exemplo o da suspeita de corrupção lançada sobre Mário Centeno, seja na forma como estes “casos” persistem em chegar ao conhecimento da imprensa.

Se nada deve abalar a eficácia do sistema judicial, menos ainda deve este servir para um julgamento precoce dos indiciados que em última instância funcionará sempre em desprimor da Justiça e benefício daqueles a quem o excesso de ruído ambiente protege do devido escrutínio.


Pior ainda é quando todo o processo de sensacionalismo parece estranhamente enviesado e é canalisado para a esfera do combate político, por intervenientes que, pobres de ideias ou de argumentos, procuram minar o campo adversário.

Se ninguém de boa fé parece negar a necessidade da isenção e probidade da Justiça, já o sentimento de equidade parece cada vez mais ferido e abandonado à sua sorte num contexto onde tudo o que interessa é eliminar os adversários a qualquer preço e por quaisquer meios. Continuando nesta via, perante a passividade e o silêncio quase geral, caminhamos a passos largos para um sistema justicialista e caudilhista que encerrará ainda mais o trilho já demasiadas vezes estreito do debate de ideias e da procura de soluções para os problemas económicos, ambientais e sociais que a todos afligem.

Demasiadas vezes assistimos à redução do debate político a um mero jogo de interesses donde invariavelmente tem emergido o fortalecimento dos interesses duma minoria económica e politicamente poderosa em detrimento dos interesses da vasta maioria das populações.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

DESIGUALDADES

Em mais um início de ano regista-se em Davos nova reunião do World Economic Forum (também conhecido como o fórum dos ricos) e a apresentação de mais um relatório anual da OXFAM, revelando visões distintas sobre a realidade que vivemos.

Para os dignitários que anualmente desfilam por Davos vale sobretudo a ideia onde o «FMI revê em alta crescimento mundial para 2018 e 2019. Mas duvida que a aceleração seja durável», pois nas palavras da própria Christine Lagarde, a directora-geral do FMI, «“Esta retoma económica é cíclica. Não se sintam satisfeitos”». Em resumo e em linguagem comum é quase como um “aproveitem que isto não vai durar muito!”


Sinal disso mesmo pode ser lido no último relatório da OXFAM ao revelar que está a «Riqueza guardada nas mãos de "meia dúzia"» quando anuncia que mais de 80% da riqueza criada no mundo em 2017 pertence a 1% da população mundial enquanto 50% desta recebeu práticamente nada. Os números da desigualdade ganham ainda outra expressão quando ficamos a saber que nos últimos doze meses a riqueza dos mais ricos aumentou 762 mil milhões de dólares (quase quatro vezes o PIB nacional e, segundo a mesma OXFAM, o suficiente para eliminar sete vezes a pobreza extrema) e que na última década os trabalhadores por conta doutrém viram o seu rendimento aumentar a uma média de 2% ao ano enquanto os multimilionários viram a sua riqueza aumentar a uma taxa média anual de 13%.

Claro que de pronto surgiram vozes acusando o relatório de desonestidade intelectual, defendendo os benefícios da globalização económica e lembrando os milhões de pessoas que esta já retirou da pobreza extrema; o que não negaram foi os níveis crescentes de desigualdade e a conjunção de cenários cada vez menos optimistas sobre a evolução do emprego, face aos quais não será de estranhar que, na ausência de respostas, surja uma crescente contestação e que esta adquira contornos cada vez mais violentos.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

METADE DA VERDADE

Na sua mais recente crónica semanal no DN, o Prof. César das Neves deixa-nos o seu ponto de vista sobre aquilo que apelida de «Metade da verdade» a respeito dos resultados do actual governo.

Claro que a maior parte das afirmações são correctas e verdadeiras, correpondem à realidade a que assistimos diariamente e até alguns dos avisos deixados não são para serem encarados de forma leviana. O problema é que a sua visão dos equilíbrios macro-económicos dos apoiantes das políticas neoliberais (como as dos apoiantes da actual política) apresenta evidentes contornos de puro artificialismo, ou não fossem eles produto de mera manipulação contabilística.


O que o Prof César das Neves esconde é que se os actuais responsáveis políticos se limitam a revelar meias verdades, os seus antecessores sustentaram as suas práticas em duvidosos estudos – recorde-se o famigerado ensaio (a «Growth in a Time of Debt», publicado peloNational Bureau of Economic Research) dos celebrados Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart que, afirmando a existência duma forte correlação entre elevadas dívidas públicas e reduzido crescimento económico, serviu para sustentar as austeritárias teses neoliberais mas se veio a revelar objecto duma manipulação primária (ver o post «ACONTECE...») pelos seus autores – e na comprovadamente abjecta mentira de pretenderem atingir o saneamento e o equilíbrio financeiro, quando o que na realidade sempre pretenderam foi o agravamento do processo de desequilíbrio na distribuição da riqueza, iniciado há várias décadas.

Talvez por isso, os cidadãos hoje apoiem as meias verdades em detrimento das claras mentiras!

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

AINDA A RENEGOCIAÇÃO DA DÍVIDA

As notícias esta semana vindas a lume dando conta que António «Costa anuncia que défice de 2017 deverá ser de 1,2%», oportunidade em que o mesmo assegurou que a dívida pública deverá situar-se pelos 126,2% do PIB, não deveriam servir apenas para confirmar a boa saúde da economia nacional ou para criticar as correspondentes opções governativas, do mesmo modo que a notícia de meados de Dezembro onde a «Fitch tira rating do lixo e põe Portugal no grupo da Itália» pouco alterou o quadro geral da difícil situação do país.


Claro que a decisão da Fitch confirmar idêntica posição da Standard & Poor’s terá impacto em alguns investidores, mas isso não significa que tenham terminado os problemas ou que uma apreciação positiva dos mesmíssimos organismos que tantas responsabilidades evidenciaram no eclodir da crise em 2008 deva ter um valor de especial relevância.

A realidade é que quase sete anos volvidos sobre a intervenção da troika (FMI, BCE, UE) o endividamento continua a apresentar valores elevados e o sistema financeiro nacional a revelar as debilidades que só os poderes estabelecidos não querem ver. Bem podem o Governador do Banco de Portugal ou o Primeiro-Ministro afirmar a solidez do sistema financeiro nacional que a realidade diária desmente-os rapidamente; o país continua descapitalizado enquanto assistimos à continuação da sangria da pouca riqueza nele criada, confirmada com o anúncio, no final de 2017, que «Portugal devolve mais 1.000 milhões ao FMI ainda este ano».

O que continua por anunciar é o início de uma verdadeira solução para um endividamento com aquela expressão que, por mais que custe aos sectores mais tradicionalistas e conservadores, não poderá deixar de contemplar uma profunda renegociação da dívida, cenário que a UE procura controlar com a escolha de Mário Centeno para novo presidente do Eurogrupo (aquela estrutura sem qualquer enquadramento legal que reúne os ministros das finanças da Zona Euro) onde terá como missão «Domar os poderosos do euro com dívida de 126% às costas» e sem qualquer vislumbre de solução para o seu problema.

domingo, 7 de janeiro de 2018

CORREIOS PARA QUEM?

Por por estes dias voltaram às notícias os protestos populares depois de conhecido que os «CTT confirmam fecho de 22 lojas no âmbito do plano de reestruturação», plano este que fora anunciado em meados de Dezembro e que quase de imediato originou que «CTT sobem na bolsa à boleia do novo plano de reestruturação».

Sabendo por demais o real significado da apresentação dum “plano de reestruturação”, não espantaram as notícias da pronta subida da sua cotação em bolsa nem as de que o «Maior accionista investe 2 milhões nos CTT após plano de corte de custos», que os «Donos da Mayoral reforçam nos CTT» ou que a «Global Portfolio Investments reforça no capital dos CTT para 5,66%», logicamente acompanhadas das que chamaram a atenção para o singelo facto daquele plano implicar que os «CTT fecham o dobro das lojas que encerraram desde a privatização».


E o busilis centra-se precisamente na privatização. À memória voltam os comentários tecidos em 2013 – ver os posts «MATAR O CARTEIRO» e «AFUNDADAS ESPERANÇAS» – e a certeira previsão do encerramento de agências feita quase um ano depois no post «CTT TESOURO» que se centrava na questão dos negócios que desde sempre rodearam a venda dum serviço da importância da distribuição postal. Certo é que neste momento quem assume a posição de principal accionista é a GESTMIN, sociedade de gestão de participações financeiras onde pontifica Manuel de Mello Champalimaud, que é quem vai controlar plano de reestruturação dos CTT.

A tudo isto somam-se mais algumas incongruências; é que se os «CTT em crise “distribuiu sempre mais de 90% dos seus lucros a acionistas”», as «Agências que os CTT querem fechar lucraram 2,4 milhões de euros em 2017» e já se diz que a «Reestruturação dos CTT poderá não ficar pelas 300 rescisões» de trabalhadores quando é sobejamente conhecido (e reconhcido) que os «CTT lideram queixas dirigidas a empresa de correios. Reclamações aumentam 212%» facto simplesmente ignorado por quem nunca se preocupou com o serviço público.

E no caso dos CTT é precisamente de serviço público que se trata, um serviço que além de indispensável é igualmente garante do que cada vez mais parecem ser os últimos resquícios de coesão social. Claro que aos seus “donos” apenas interessam os lucros, os quais sempre distribuíram magnanimamente, e de uma forma tão ávida que até já entre os políticos se refere que «Deputado socialista defende que “os CTT têm de ser obrigados a cumprir o serviço público”» ou que «Jerónimo de Sousa defende que CTT devem ser alvo de "intervenção pública"» e até o «CDS exige cumprimento da obrigação de proximidade dos CTT», enquanto nos corredores do poder «Costa e Marcelo deixam CTT nas mãos da Anacom», como se de algum regulador nacional pudesse advir mais que pífias recomendações.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

RECEIEM O PIOR

Estamos a poucos dias do início da aplicação de novas regras na relação entre os bancos e os seus clientes, mas poucos clientes saberão (ou imaginarão) o que lhes reserva o novo ano.

Sabe, por exemplo, que a partir da próxima semana os bancos permitirão (com autorização do cliente) o acesso de entidades terceiras às contas dos clientes para que possam facultar serviços de pagamento ou que passará a se obrigatório gravar ou passar à forma escrita as ordens de investimento ou de movimentação de poupança dos clientes?

Embora haja quem anteveja que «Novo ano traz protecção reforçada para investidores», o essencial destas novas normas – a Diretiva Europeia de Serviços de Pagamento II (também conhecida por PSD II) e a Diretiva dos Mercados de Instrumentos Financeiros II –  é que podendo contribuir para a agilização de transacções e serviços, também acarretam outros riscos para bancos e clientes. Além das óbvias e indispensáveis adaptações de procedimentos e plataformas informáticas por parte dos bancos, também os clientes verão aumentada a sua vulnerabilidade às tão faladas fraudes informáticas, tanto mais previsível que os bancos verão reduzida a sua responsabilidade por operações de pagamento não autorizadas de 150 euros para 50 euros, por transação.

Outra importante alteração se fará sentir ao nível da intermediação financeira com a entrada em vigor da chamada DMIF II, directiva que exige novas formas de prova (gravação magnética ou em documento escrito) no momento em que um cliente opta por uma aplicação financeiro para o o seu dinheiro e obriga os bancos a um processo de formação e certificação dos seus trabalhadores. Mas a experiência e as práticas anteriores não garantem que «Gestores de conta obrigados a ter formação contínua» não repitam os procedimentos que levaram aos casos dos “lesados” do BES e do BANIF.

Foi talvez para evitar tais repetições, com a sucessão de queixas e problemas que levaram já a que o «Estado financia em 145 milhões fundo dos lesados do BES», que os legisladores europeus produziram mais este conjunto de regras que, estou em crer, pouco mais irão salvaguardar que os interesses dos banqueiros, ainda e sempre a expensas dos clientes e dos trabalhadores agora transformados, seguramente com pompa e circunstância, em “conselheiros financeiros” através de meros programas de formação on-line, disponibilizados nas vésperas da entrada em vigor das novas regras, e no futuro em bodes expiatórios das más soluções financeiras “vendidas” aos clientes.


Regulamentar que a «Concessão de crédito para a compra de títulos passa à categoria de “produto complexo”» pode ser um passo importante no sentido de minimizar os efeitos devastadores que a generalização daquela prática já acarretou, mas o verdadeiro problema – aquele que orça em milhares de milhões de euros em imparidades bancárias – não foram os empréstimos daquele tipo contratados nas agências, antes os poucos negociados entre os banksters e os grandes investidores e que ainda hoje continuam a pesar nos respectivos balanços.

sábado, 23 de dezembro de 2017

21D

Depois do 11M (11 de Março, data do atentado contra a rede ferroviária suburbana de Madrid que o governo do PP então liderado pelo histrião José Maria Aznar se apressou a atribuir ao movimento separatista basco, ETA) a Espanha parece vir a ficar marcada pelo 21D (21 de Dezembro, data das mais recentes eleições na Catalunha), de uma forma que associa dramaticamente o PP ao pior que a Espanha nos tem dado.


Depois dumas eleições impostas por Madrid onde «Carles Puigdemont ganha força apesar do resultado do Ciudadanos», bem pode o actual líder do PP e primeiro ministro de Espanha anunciar que o «bloco independentista “não representa a vontade de todos os catalães”» que em nada alterará a realidade que o próprio criou com a aplicação do famigerado Artigo 155 da Constituição Espanhola quando ditou a suspensão da autonomia da região catalã, a demissão dum governo (Generalitat) democraticamente eleito e a prisão ou o exílio de alguns dos seus membros, nem o facto da participação nestas eleições terem alcançado os 83% de participação, depois das de 2015 terem atingido os 75%.

Com o apoio da generalidade das forças políticas espanholas o PP recuperou as velhas soluções imperativas que há séculos têm servido para fazer germinar legítimos anseios de autonomia entre os catalães, agudizados pela redução do investimento do governo central na Catalunha, determinado pelo eclodir da crise económica global em 2008, e a reversão pelo Tribunal Constitucional, decidida em 2010, do estatuto autonómico que vigorava desde 2006. O resultado foi um extremar de posições que culminou com a realização dum referendo local ilegalizado pelo governo central e impedido de concretizar pela presença de um aparelho policial não catalão.

Apesar das dúvidas levantadas sobre os limites do Artigo 155, o governo de Mariano Rajoy (com o apoio do rei Filipe VI) não hesitou na sua aplicação, no derrube do governo local e na marcação de eleições antecipadas, cujo resultado o jornal espanhol EL PAIS resumiu com um lacónico: «“Volvemos a estar en el punto de partida”». Transformando um problema de natureza política num problema judicial, Rajoy pode tê-lo adiado, mas nunca resolvido!

E assim é! «O plebiscito que veio baralhar e voltar a dar» numas eleições – realizadas sob um estado de democracia limitada e com parte dos candidatos detidos ou exilados – onde a vitória do Ciudadanos (movimento liberal de centro direita, criado em reação ao independentismo catalão obteve o melhor resultado de sempre dum partido não independentista) não evitou que o conjunto dos partidos autonomistas que integraram a destituída Generalitat (JxCat, ERC e CUP) mantenha a maioria de deputados, a ponto de se poder dizer que «Perde Rajoy e ganha o independentismo em noite agridoce para Arrimadas», a líder dos Ciudadanos.

O futuro próximo da região – e por extensão da própria Espanha – continuará a mesma incógnita, a ponto de se poder dizer (como o fez o LE MONDE) que o resultado do 21D representa «O triplo fracasso de Mariano Rajoy na Catalunha», pois este tentou contrariar a tentativa de secessão do governo de Carles Puigdemont, restaurar a estabilidade da região (e do país) e quebrar o impeto aos independentistas e obteve em resposta a recondução da maioria independentista e a quase completa erradicação do seu PP do panorama político catalão. Os fortíssimos apoios institucionais dados ao Ciudadanos e as fortes condicionantes de actuação proporcionadas aos apoiantes do nacionalismo catalão acabaram por se revelar insuficientes para conter a evidente vontade demonstrada nas urnas, onde a vitória do Ciudadanos talvez se deva apenas ao facto da Esquerra Republicana de Catalunya (ERC) e o Junts per Catalunya terem concorrido isoladamente, quando em 2015 o fizeram em conjunto conseguindo então 39,5% dos votos.

Embora se diga que a líder do Ciudadanos, Inês «Arrimadas duvida que independentistas consigam acordo», dificilmente resultará outro quadro que não a formação de mais um governo catalão pelos partidos autonomistas, não sendo sequer de excluir uma possível aproximação ao menos radical Catalunya En Comú (o Podemos catalão que com 8,9% dos votos elegeu 8 deputados), o que poderia ditar até alguma flexibilização nas inevitáveis negociações que se têm de seguir com o fragilizado Mariano Rajoy.

A seguir...

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

COMO FOI INVENTADO O POVO JUDEU

No rescaldo da decisão da administração norte-americana onde Jerusalém é reconhecida como capital de Israel, das reacções do mundo árabe e muçulmano, que levaram o Egipto a apresentar uma proposta de resolução ao Conselho de Segurança da ONU, e o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, a afirmar que a «Decisão dos EUA sobre Jerusalém "não é lógica" e complica soluções».


Já conhecido o desfecho da reunião do Conselho de Segurança, onde os «EUA vetam resolução do Conselho de Segurança sobre Jerusalém», proponho hoje uma abordagem diversa de quase todas as que temos lido sobre o assunto, apelando ao enquadramento histórico do chamado conflito israelo-palestiniano.

O texto (pode ser lido aqui na versão francesaé da autoria do historiador israelita Shlomo Sand, versa sobre as origens do povo judaico e foi apresentado como uma desconstrução do mito histórico que é a ideia de que os judeus seriam descendentes directos de Moisés, David e Salomão; como tantos outros povos, eles formaram-se num processo histórico rico e contraditório, que envolve múltiplas etnias e não cabe na descrição religiosa e fundamentalista que ainda prevalece. Foi publicado em 2008 nas página do LE MONDE DIPLOMATIQUE (a tradução é da minha responsabilidade) a propósito do lançamento do seu livro «A invenção do povo judeu» e talvez ajude a compreender uma outra visão que vai além da solução “dois povos-dois estados” agora formalmente posta em causa.

COMO FOI INVENTADO O POVO JUDEU

por Shlomo Sand

Qualquer israelita sabe que o povo judeu existe desde a entrega da Torah [1] no monte Sinai e se considera seu descendente directo e exclusivo. Todos estão convencidos de que os judeus saíram do Egipto e se fixaram na Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de David e Salomão, posteriormente dividido entre Judéia e Israel. E ninguém ignora o facto de que esse povo conheceu o exílio em duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no século VI a.C., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.

Foram quase dois mil anos de errância desde então. A tribulação levou-os ao Iémen, a Marrocos, à Espanha, à Alemanha, à Polônia e até aos confins da Rússia. Felizmente, eles sempre conseguiram preservar os laços de sangue entre as comunidades, tão distantes umas das outras, e mantiveram a sua unicidade.

As condições para o retorno à antiga pátria amadureceram apenas no final do século XIX. O genocídio nazi, porém, impediu que milhões de judeus repovoassem naturalmente a terra de Israel (Eretz Israel), um sonho de quase vinte séculos.

Virgem, a Palestina esperou que seu povo original regressasse para florescer novamente. A região pertencia aos judeus, e não àquela minoria desprovida de história que chegou lá por acaso. Por isso, foram justas as guerras realizadas a partir de 1948 pelo povo errante para recuperar a posse de sua terra;. a oposição da população local é que era criminosa.

De onde vem essa interpretação da história judaica, amplamente difundida e acima resumida? Trata-se de uma obra do século XIX, feita por talentosos reconstrutores do passado, cuja imaginação fértil inventou, sobre a base de pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu. É verdade que a abundante historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas as concepções essenciais. elaboradas no final do século XIX e princípio do XX. nunca foram questionadas.

Quando apareciam descobertas capazes de contradizer a imagem do passado linear, elas praticamente não tinham eco. O imperativo nacional, qual boca solidamente amordaçada, bloqueava qualquer espécie de contradição ou desvio em relação ao relato dominante. E as instâncias específicas de produção do conhecimento sobre o passado judeu – os departamentos exclusivamente dedicados ao estudo da “história do povo judeu” são bastante distintos daqueles da chamada “história geral” – contribuíram muito para essa curiosa paralisia. Nem o debate, de carácter jurídico, sobre “quem é judeu” preocupou esses historiadores: para eles, é judeu todo o descendente do povo forçado ao exílio há dois mil anos.

Esses pesquisadores “autorizados” tão-pouco participaram da controvérsia trazida pelos “novos historiadores” do final dos anos 1980. A maioria dos actores desse debate público, em pequeno número, veio de outras disciplinas ou de meios extra-universitários: foram sociólogos, orientalistas, linguistas, geógrafos, especialistas em ciência política, pesquisadores em literatura e arqueólogos que formularam novas reflexões sobre o passado judaico e sionista, alguns deles vindos do estrangeiro. Dos “departamentos de história judaica” só surgiram rumores temerosos e conservadores, revestidos por uma retórica apologética baseada em idéias preconcebidas.

Judaísmo, religião proselitista

Ou seja, em sessenta anos, a história nacional amadureceu muito pouco e, aparentemente, não evoluirá no curto prazo. Porém, os factos revelados pelas novas pesquisas apresentam a qualquer historiador honesto questões surpreendentes à primeira vista, mas fundamentais.

Pode a Bíblia ser vista como um livro de história? Os primeiros historiadores judeus modernos, como Isaak Markus Jost e Léopold Zunz, não a encaravam assim no começo do século XIX: aos seus olhos, o Antigo Testamento era um livro de teologia constitutivo das comunidades religiosas judaicas depois da destruição do Primeiro Templo. Foi preciso esperar pela segunda metade do século XIX para encontrar historiadores como Heinrich Graetz, que teve uma visão “nacional” da Bíblia:  transfromaram a partida de Abraão para Canaã, a saída do Egito e até o reinado unificado de David e Salomão em relatos de um passado autenticamente nacional. Desde então, os historiadores sionistas não deixaram de reiterar essas “verdades bíblicas”, transformadas no alimento quotidiano da educação israelita.

Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a terra treme, abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológicas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século XIII antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter feito os hebreus saírem do Egito, nem tê-los conduzido à “terra prometida” — pelo simples facto de que, naquela época, a região estava nas mãos dos próprios egípcios! Aliás, não existe nenhum vestígio de revolta de escravos no reinado dos faraós, nem de uma conquista rápida de Canaã por estrangeiros.

Tão-pouco há sinal ou lembrança do sumptuoso reinado de David e Salomão. As descobertas da última década mostram a existência de dois pequenos reinos: Israel, o mais poderoso, e Judá, a futura Judéia. Os habitantes desta última não sofreram nenhum exílio no século VI a.C.: apenas as elites políticas e intelectuais tiveram de se instalar na Babilónia, de cujo encontro decisivo com os cultos persas é que nasceu o monoteísmo judaico.

E o exílio do ano 70 d.C. teria efetivamente acontecido? Paradoxalmente, esse “evento fundador” da história dos judeus, de onde a diáspora tira sua origem, não originou o menor trabalho de pesquisa. E por uma razão bem prosaica: os romanos nunca exilaram povo nenhum em toda o flanco oriental do Mediterrâneo. Com excepção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes da Judéia continuaram a viver nas suas terras mesmo após a destruição do Segundo Templo.

Uma parte deles converteu-se ao cristianismo no século IV, enquanto a maioria aderiu ao Islão, durante a conquista árabe do século VII. A maior parte dos pensadores sionistas não ignoravam isso: tanto Yitzhak Ben Zvi, que seria presidente de Israel, quanto David Ben Gurion, fundador do país, escreveram-no até 1929, ano da grande revolta palestiniana. Ambos mencionam em várias ocasiões, o facto dos camponeses da Palestina serem os descendentes dos habitantes da antiga Judéia [2].

À falta de um exílio a partir da Palestina romanizada, de onde vieram os judeus que povoaram o perímetro do Mediterrâneo desde a Antiguidade? Por trás da cortina da historiografia nacional, esconde-se uma surpreendente realidade histórica. Da revolta dos Macabeus, no século II a.C., à revolta de Bar Kokhba, no século II d.C., o judaísmo foi a primeira religião proselitista. Os asmoneus (ou macabeus) já tinham convertido à força os edomitas da Judeia do Sul e os itureus da Galileia, anexando-os ao “povo de Israel”. Partindo desse reino judeu-helenista, o judaísmo espalhou-se por todo o Oriente Médio e pelas margens do Mediterrâneo. No primeiro século de nossa era surgiu no território do atual Curdistão, o reino judeu de Adiabena, ao qual se seguiram outros com as mesmas características.

Os textos de Flávio Josefo não são a única evidência do ardor prosélito dos judeus. De Horácio a Sêneca, de Juvenal a Tácito, muitos escritores latinos expressaram os seus receios. O Mishná e pelo Talmude [3] permitem essa prática de conversão – mesmo que, diante da crescente pressão do cristianismo, os sábios da tradição talmúdica expressem reservas sobre isso.

O êxito da religião de Jesus, no começo do século IV, não colocou fim à expansão do judaísmo, mas empurrou o seu proselitismo para as margens do mundo cultural cristão. No século V, no lugar do actual Iémen, surgiu o vigoroso reino judeu de Himiar cujos descendentes mantiveram a fé judaica após a expansão do Islão e preservam-na até aos dias de hoje. Também os cronistas árabes nos contam sobre a existência , no século VII, de tribos berberes judaizadas: face à pressão árabe sobre o norte de África surgiu a figura lendária da rainha judia Dihya-el-Kahina, que tentou detê-lo. Esses berberes judaizados participarão na conquista da Península Ibérica estabelecendo ali os fundamentos da simbiose particular entre judeus e muçulmanos, característica da cultura hispano-arábe.

A conversão em massa mais significativa ocorreu, no século VIII, no imenso reino khazar entre o mar Negro e o mar Cáspio. A expansão do judaísmo do Cáucaso até à actual Ucrânia originou várias comunidades que seriam expulsas para o Leste europeu pelas invasões mongóis do século XIII. Lá, os judeus vindos das regiões eslavas do sul e dos atuais territórios alemães estabeleceram as bases da grande cultura ídiche [4].

Estas narrativas das origens plurais dos judeus aparecem mais ou menos hesitantes na historiografia sionista até a década de 1960; sendo em seguida progressivamente marginalizadas antes de desaparecerem da memória pública em Israel. Os conquistadores da cidade de David, em 1967, tiveram que ser descendentes diretos do seu reino mítico e não - Deus não permita! - os herdeiros de guerreiros berberes ou cavaleiros Khazar. Os judeus são então um "ethnos" específico que, depois de dois mil anos de exílio e errânciua, regressou finalmente a Jerusalém, a sua capital.

Os proponentes desta narrativa linear e indivisível não mobilizam apenas o ensino da história: convocam também a biologia. Em Israel, desde os anos de 1970 uma sucessão de pesquisas "científicas" tentou demonstrar, por todos os meios, a proximidade genética dos judeus em todo o mundo. A "pesquisa sobre as origens das populações" é agora um campo legítimo e popular de biologia molecular, enquanto o cromossoma Y masculino ganhou um lugar de honra ao lado de uma Clio judia [5] numa busca frenética da singularidade original do "povo escolhido".

Essa concepção histórica constitui a base da política identitária do estado de Israel e é exactamente esse o seu ponto fraco. Presta-se efectivamente a uma definição essencialista e etnocentrista do judaísmo, alimentando uma segregação que mantém a distância entre judeus e não-judeus (tanto árabes como emigrantes russos ou trabalhadores imigrantes).

Israel, sessenta anos após a sua fundação, recusa conceber-se como uma república existente para os seus cidadãos. Quase um quarto deles não é considerado judeu e, de acordo com o espírito das suas leis, esse estado não lhes pertence. Por outro lado, Israel ainda se apresenta como o estado dos judeus do mundo inteiro, mesmo que não seja mais uma questão de refugiados perseguidos, mas de cidadãos plenos e iguais que vivem em plena igualdade nos países onde residem. Por outras palavras, uma etnocracia sem fronteiras justifica a severa discriminação que pratica contra alguns dos seus cidadãos invocando o mito da nação eterna, reconstituído para se reunir na "terra dos seus antepassados".

Escrever uma nova história judaica, para além do prisma sionista, não é tarefa fácil. A luz que reflecte é transformada em cores etnocêntricas. No entanto, os judeus sempre formaram comunidades religiosas organizadas, principalmente pela conversão, em várias regiões do mundo: elas não representam um éthnos portador de uma única origem e que se teria deslocado ao longo de vinte séculos.

Sabemos que o desenvolvimento de toda historiografia — e, de maneira geral, as da modernidade — passa pela invenção do conceito de nação, que ocupou milhões de seres humanos nos séculos XIX e XX.

O desenvolvimento de toda a historiografia como, genericamente, o processo da modernidade passa, como sabemos, pela invenção da nação. Ele ocupou milhões de seres humanos no século XIX e durante uma parte do XX. Recentemente, porém, esses sonhos começaram a ruir. Un número cada vez maior de pesquisadores analisam, dissecam e desconstroem os grandes relatos nacionais e, principalmente, os mitos da origem comum, caros aos cronistas do passado. Certamente os pesadelos identitários de ontem darão espaço, amanhã, a outros sonhos de identidade. Assim como toda a personalidade é feita de identidades fluidas e variadas, também a história é uma identidade em movimento.



[1] Texto fundador do judaísmo, a Torah é composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia, ou Pentateuco: Génese, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio.
[2] Cf. David ben Gurion e Yitzhak ben Zvi, Eretz Israel no passado e no presente (1918, em ídiche), Jerusalém, Yitzhak ben Zvi, 1980 (em hebraico), e Yitzhak ben Zvi, Nossa população no país (em hebraico), Varsóvia, Comité Executivo da União da Juventude e o Fundo Nacional Judeu, 1929.
[3] A Mischna, considerada como a primeira obra de literatura rabínica, foi concluída no século II d.C. O Talmude sintetiza o conjunto dos debates rabínicos respeitantes à lei, aos costumes e à história dos judeus. Há dois Talmudes: o da Palestina, escrito entre os séculos III e V, e o da Babilónia, concluído nos finais do século V.
[4] Falado pelos judeus da Europa oriental, o ídiche é uma língua eslavo-germânica, com palavras vindas do hebraico.
[5] Na mitologia grega Clio era a musa da História.»


2017-12-20