terça-feira, 18 de janeiro de 2011

CÓLERA NA TUNÍSIA


A conjuntura económica, considerada na sua dimensão internacional, europeia ou nacional, tem monopolizado a atenção, a ponto de relegar quase todas as outras questões para plano secundário.

Nem por isso o Mundo deixou de rodar nem de continuar a acumular injustiças e prepotências um pouco por todo o lado. Exemplo disso continua a ser o mundo muçulmano que, até como consequência directa do agravamento das condições globais, continua a acumular tensões, sejam estas de natureza externa, caso do conflito israelo-palestiniano, sejam de natureza interna, como é o caso do sempre esquecido Sahara Ocidental ou mais recentemente da Tunísia, país mediterrânico que em poucas semanas passou de destino aprazível (e económico) de férias para um país atravessado por profunda convulsão social.

Desde meados de Dezembro e em consequência da crescente degradação das condições de vida da população, que a contestação ao regime de Ben Ali veio subindo de tom e de violência.

Mau grado algumas promessas de abertura do regime, os tunisinos, cansados da ineficácia e do nepotismo mantiveram a sua mobilização até que após uma fracassada tentativa de “liberalização” do regime, ensaiada com a substituição do ministro do interior e o anúncio de libertação dos detidos durante as manifestações mas inviabilizada (segundo esta notícia do LE MONDE) quando o chefe do estado-maior se recusou a disparar sobre os manifestantes, o presidente Bem Ali optou pela fuga para a Arábia Saudita.


A erosão dum regime querido do Ocidente, que há muito conhecia as suas fragilidades mas com quem sempre pactuou (fosse por interesse próprio, fosse integrado na famigerada luta contra o radicalismo islâmico), abriu uma fase de incerteza na vida política daquela país do Maghreb[1] e está a originar uma vaga que ameaça propagar-se aos países vizinhos, ou não fossem estes dirigidos por políticos de idêntica configuração. Isso mesmo é assumido nesta notícia do PUBLICO que a propósito da fuga do ditador tunisino informa que «Queda de Ben Ali celebrada na rua árabe e temida nos palácios» e parece abrir uma perspectiva de renovação no mundo árabe.

Se o sucedido em Tunis constitui um verdadeiro sinal de alarme para a generalidade dos regimes autocráticos árabes, não é menos verdade que estes contarão com fortes apoios para a sua manutenção, que vão desde a tradição cultural islâmica e a natural influência dos restantes autocratas até à cumplicidade dos regimes democráticos ocidentais que sempre os encararam e acarinharam como leais opositores ao radicalismo islâmico e, diga-se em abono da verdade, foi preciso uma conjugação muito especial de condições (desemprego e profunda frustração das expectativas dos mais jovens) para ver eclodir os ventos da revolta, os quais a avaliar pelas notícias que dão conta da constituição do governo tunisino de transição, integrando elementos próximos de Ben Ali, não auguram as melhores perspectivas[2].


E não é apenas esta a razão para se encarar com as devidas reservas uma possível democratização da Tunísia, pois a situação de quase total desorganização da sociedade civil e a fraca implantação das poucas organizações políticas existentes já levaram os actuais responsáveis a anunciar «Eleições legislativas na Tunísia daqui a seis meses» quando nos termos constitucionais estas deveriam ocorrer dentro de 60 dias.
Para finalizar talvez sejam de reter as declarações de Mark LeVine, do Centro de Estudos para o Médio Oriente da Universidade sueca de Lund, que disse à AL JAZEERA:

«Embora os EUA e a comunidade internacional não devam intervir directamente, sem que os militares comecem a prender ou a matar um grande número de pessoas, existem passos que Obama pode dar de imediato, para assegurar que este movimento democrático crie raízes e se espalhe pela região.

Primeiro, o presidente não deve apelar apenas à realização de eleições livres e democráticas. Deve declarar publicamente que os EUA não reconhecerão, nem continuarão a manter relações económicas, qualquer governo não democraticamente eleito através de eleições reconhecidas por observadores internacionais. Em simultâneo deve congelar todos os bens dos ex-líderes da Tunísia, guardando-os até que estes sejam reclamados pelo povo tunisino»;

que contrastam com a dura realidade retratada por Robert Frisk num artigo no THE INDEPENDENT, quando lembra que a «...tarefa dos potentados árabes será a que sempre foi – gerir o seu povo, controlá-lo, amar o Ocidente e odiar o Irão.

Senão, o que andou Hillary Clinton a fazer na semana passada enquanto a Tunísia ardia? Estava a dizer aos corruptos príncipes do Golfo que a sua função era apoiar as sanções contra o Irão, opor-se à República Islâmica e prepararem-se para outro ataque contra um estado islâmico depois das duas catástrofes que os EUA e o Reino Unido já infligiram à região».


[1] O Maghreb é uma região do Norte de África que engloba Marrocos, Sahara Ocidental, Argélia, Tunísia (que constituem o Pequeno Maghreb), Mauritânea e Líbia (chamando-se então Grande Maghreb); a designação resulta da expressão árabe Al-Maghrib que significa poente ou ocidente.

[2] Que além das já referidas pelo PUBLICO quando noticiou que «Novo Governo tunisino é ainda dominado pelos homens do regime», se viram ainda agravadas logo que se soube que o «Novo Governo da Tunísia desmorona-se após a posse» devido à renúncia de quatro dos novos ministros (três da central sindical UGTT e outro da FDLT) em protesto contra a presença de membros do partido RDC (afecto ao ex-presidente Ben Ali) eocupando as principais pastas.

sábado, 15 de janeiro de 2011

A CANDIDATURA SÉRIA DA INÉPCIA COMO VIRTUDE


Entrados na recta final de mais um pleito eleitoral, quando o país vive um momento particularmente difícil e os governantes do PS, com a benção e o beneplácito do PSD e do CDS, tentam convencer-nos que os sacrifícios a que nos obrigam são para nosso exclusivo bem (nunca para o deles, ou para o que eles representam...), perfila-se aos eleitores um problema de solução delicada: a escolha entre um inepto sério (para conjugar as classificações que, respectivamente, Baptista Bastos e Vasco Graça Moura atribuíram a Cavaco Silva, nas suas crónicas «Da inépcia como virtude» e «A candidatura séria») ou um inepto culto ou voluntarioso (caso me permitam a aleivosia da colagem à análise de Baptista Bastos), como cada vez mais se revelam Manuel Alegre e Fernando Nobre.


É que se Cavaco continua imutável (característica que Vasco Graça Moura tanto lhe louva) é na forma canhestra como repete (ou manda repetir em seu redor) as auto proclamadas virtudes da sua sabedoria em matérias económicas enquanto aconselha que se consulte um especialista para saber como se devia ter gerido a nacionalização do BPN, ou lança um véu de diáfano silêncio sobre os ex-gestores daquele banco (especialistas da sua área partidária) que, imbuídos do mais sadio dos espíritos empreendedores, malbarataram o dinheiro dos seus clientes, quando não o envolveram nas mais despudoradas fraudes.

Mas a desonestidade intelectual de Cavaco Silva (e por acréscimo da maioria dos seus apoiantes) não se limita a este tipo de questões, pois em muitas outras matérias facilmente se detecta o perfil que ele inúmeras vezes repudia: o do político manipulador, sempre pronto a desdizer o que antes dissera e, mesmo, a sacrificar aqueles sobre cujos ombros se faz transportar. Exemplo disso mesmo foram as suas considerações sobre um dos seus fieis apoiantes – o presidente do conselho de administração da CGD, Faria de Oliveira –, que em benefício próprio descartou com a mesma ligeireza e leviandade que antes usara com Fernando Nogueira (entre outros), mas que sob a alegação da legislação em vigor nunca usou com Dias Loureiro, outro dos indiciados responsáveis pelas fraudes no BPN.

É por isto que a seriedade é uma das virtudes mais difíceis de colar a Cavaco Silva e se este alguma vez tivesse revelado um mínimo de curiosidade sobre os fenómenos políticos talvez tivesse encontrado em alguma obra consultada a velha máxima de que «há mulher de César não basta ser séria, tem que o parecer» e embora aparentemente deslocado do contexto eleitoral o caso BPN acabou por se transformar em algo de relevante para o candidato que se diz da seriedade, mas que persiste num discurso de omissões e meias verdades.

Tal como o fez há cinco anos, Cavaco procura atravessar mais uma campanha eleitoral  onde sobressaindo os “fait-divers” espera alcançar a reeleição sem que dele se ouça a menor referência às suas ideias; perante tal vacuidade e nunca perdendo de vista o que foi a sua passagem duma década pela chefia do governo, período durante o qual abundaram os fundos europeus e se reeditou a clamorosa política de obras públicas característica do “fontismo”[i], custa a entender como é que Vasco Graça Moura vislumbra que «...se Portugal ainda não teve um lindo enterro, isso se deve à magistratura de influência e à intervenção moderadora de Cavaco Silva».

Ao esforçado golpe de asa com que Vasco Graça Moura tenta transformar o que apelida de campanha para denegrir o presidente candidato, falha de «...uma crítica detalhada, fundamentada e consistente à maneira como ele exerceu a sua magistratura...», contraponho três episódios perfeitamente elucidativos da estatura política de Cavaco Silva: a promulgação de diplomas aos quais coloca públicas reservas; quando, profundo conhecedor da dramática situação financeira do país e da conjuntura económica mundial (a crer no seu auto-elogio), aceitou empossar um governo minoritário visivelmente frágil para a tarefa e, por último, as intervenções da campanha onde tem procurado distanciar-se das responsabilidades perante a actual crise quando foi, nos bastidores, um dos impulsionadores do acordo PS-PSD para a aprovação do OGE que avidamente promulgou e que culmina agora com a notícia (do PUBLICO) de que «Cavaco também quer trabalhadores do privado a pagar a crise».

Bem podem os apoiantes de Cavaco colar o seu principal rival, Manuel Alegre, às políticas do governo de José Sócrates, tentando fazer esquecer que estas foram por ele validadas, que num ponto Baptista Bastos tem razão, e também eu «gostava de que o Presidente fosse um homem culto, lido, cordial e descontraído».

O problema é que o mais culto dos «outsiders», talvez enredado nas contradições dos apoios do PS e do Bloco de Esquerda, tem-se revelado particularmente frágil na réplica e o outro, tudo o indica até ao momento, é tão só voluntarioso.

Mesmo assim, parece que há quem receie pela vitória anunciada de Cavaco Silva, e, como o fez Vasco Pulido Valente na sua última crónica no PUBLICO chegue a apontar um eventual crescimento da abstenção como justificação para uma indesejada segunda volta e reforço o termo indesejada pois esse deve ser o sentimento do autor, porque contrariamente ao que sugere a abstenção(ou o voto em branco) não têm o efeito que pretende, pois quantos menos votos válidos existirem menor será o número necessário para eleger Cavaco Silva.


[i] Termo usado para designar o período da Monarquia Constitucional, entre 1868 e 1889, onde pontificou a figura de Fontes Pereira de Melo, que se traduziu numa diminuição da instabilidade política que caracterizou o período da Regeneração e que se caracterizou por acções de fomento de obras públicas e de modernização das infraestruturas do país (construção de pontes, estradas e o início da construção da rede ferroviária portuguesa), mas que tendo sido grandemente financiado com recurso a empréstimos externos (principalmente junto de bancos ingleses) redundou num colapso financeiro que rapidamente fez regressar a instabilidade política.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

REMENDOS


Quando antevi no primeiro “post” deste ano que as enormes dificuldades que Portugal iria encontrar para financiar as suas necessidades começariam a esclarecer-se logo com o leilão de BT’s que teria lugar daí a dias, não estava a realizar qualquer prodígio divinatório embora não esperasse que aquela emissão atingisse um valor seis vezes superior ao registado no início de 2010 e superior em 80% ao valor registado no leilão de Setembro[1].

Embora nunca referido directamente, este claro aumento de custo está na origem das notícias que nos últimos dias têm insistido na iminência do recurso ao FMI e que não constituirão mais que o reflexo dos anseios dos restantes membros da Zona Euro, que ao que parece continuam convencidos da possibilidade de enfrentarem a estratégia de ataque concertado contra a moeda única sem nada mudarem de essencial no seu funcionamento.

Crentes pios nas virtualidades dos “mercados” e no primado da sua supremacia, os dirigentes europeus esperam salvar o essencial (a estabilidade das suas balanças e dos seus orçamentos) enquanto aceitam sacrificar, um após outro, os membros mais fracos.

Não será assim de estranhar que alemães e franceses pareçam de acordo na necessidade de Portugal recorrer ao FMI (mesmo que se leia que «Alemanha rejeita estar a fazer pressão sobre Portugal») enquanto a imprensa anuncia que esta é uma «Semana crucial para Portugal e de alerta em Espanha», pois tal como aconteceu há uma semana, haverá lugar em Portugal a um leilão de OT’s[2].


A crer nas notícias que dão conta que «Os juros da dívida portuguesa já chegaram aos 7,3%» no mercado secundário, será de esperar que os valores que se verificarão no próximo leilão fiquem acima dos 6,806%, que foi a taxa média ponderada registada no último leilão de OT’s a 10 anos, que teve lugar em Novembro último.

Isto se privilegiarmos uma perspectiva meramente financeira para a avaliação da situação, porque quando observada numa perspectiva económica a situação nacional deveria ser apreciada pelos “mercados” como francamente melhor que antes da aprovação do orçamento, tanto mais que o governo de José Sócrates acaba de anunciar que «Défice vai ficar “claramente abaixo dos 7,3%”». A menos que afinal os tais “mercados” acreditem mais na dura realidade que resultará dos planos de austeridade e nas previsões que apontam que a «Economia portuguesa será a terceira pior do mundo em 2011» do que na bondade e eficácia dos remendos que os governantes anunciam como panaceia para os nossos males e que esta polémica constitua, afinal, mais uma peça na campanha eleitoral que decorre no país.

Porque nada acontece por acaso e a história está pejada de exemplos análogos, deveremos assistir a nova subida na taxa média ponderada do leilão que amanhã decorrerá e, muito convenientemente ao adiamento da intervenção do FEEF (Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, EFSF na sigla inglesa) e do FMI para data posterior à reeleição (desejada) de Cavaco Silva, pelo que o mais natural é que esta ocorra imediatamente após a próxima reunião de chefes de estado da UE, que terá lugar no dia 4 de Fevereiro.

E assim continuaremos, de remendo em remendo, para ganho de uns poucos e prejuízo de todos, até que se ouça alguém gritar que o rei vai nu...


[1] Como se pode confirmar pela consulta da página do IGCP (Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público), no primeiro leilão de 2010 de BT’s a 6meses, a taxa média ponderada foi de 0,592%, contra uma taxa de 3,686% para o leilão da semana passada, quando em Setembro a mesma taxa ponderada se fixou nos 2,045%.
[2] O anúncio pode ser lido aqui, na própria página do IGCP.

sábado, 8 de janeiro de 2011

VISLUMBRES


Tantas vezes aqui tenho clamado contra o silêncio a que a imprensa tem votado aqueles que não opinam segundo os superiores cânones estabelecidos que, quando ocorre o inverso é da mais elementar justiça que lhe seja feita referência.

Estou a referir-me concretamente a duas entrevistas publicadas pelo DN e pelo I a Boaventura de Sousa Santos e a João Ferreira do Amaral[1], nas quais é perceptível uma rara oposição à corrente de pensamento dominante.

Embora originários de áreas de conhecimento diferentes – Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e um reputado investigador do fenómeno da globalização, enquanto João Ferreira do Amaral é economista e foi assessor para os assuntos económicos durante as presidências de Mário Soares e Jorge Sampaio – revelam uma profunda preocupação pela tentativa de compreensão dos fenómenos económicos e sociais numa perspectiva integrada.

Embora das suas declarações não resultem propostas concretas de alternativa ao modelo que tem sido utilizado, ressalta de ambas uma clara ideia da sua existência (pelo menos no plano conceptual); Boaventura Sousa Santos é talvez o mais claro dos dois quando afirma que «enquanto não forem regulados os mercados financeiros quaisquer planos de austeridade vão ser seguidos por novos planos de austeridade, porque os mercados estão numa fase absolutamente insaciável. Em segundo lugar, ainda estamos numa fase do susto», pois João Ferreira do Amaral prefere colocar a tónica na necessidade de “reinvenção” da moeda única, ou não tivesse sido um dos maiores opositores à adesão portuguesa ao Euro.

Embora continuem a primar pela ausência vozes que pugnem pelas mudanças que se impõem – o regresso à esfera pública do poder de criação de moeda, acompanhada duma drástica redução dessa capacidade pelo sector financeiro e a inversão do absurdo modelo de financiamento público por aquele sector, e a consagração do conceito do crédito como utilidade pública e não como via para a concentração da riqueza – ou por soluções alternativas – como acontece neste “post” do blog «The Left Banker» onde o seu autor, atribuindo a principal responsabilidade para a situação à adesão ao Euro e aos políticos que a defenderam, aponta soluções como: a saída da moeda única, a nacionalização da banca e a conversão do crédito em utilidade pública, a dinamização de actividades tradicionais como a agricultura e as pescas, o aumento do salário mínimo e um combate eficaz à corrupção política e empresarial responsável pelo desperdício anual de milhares de milhões de Euros.

Mesmo não subscrevendo na íntegra as propostas, parecem-me dignas de referência por representarem contributos para uma discussão, que, sendo para já débil e quase em surdina, pode e deve crescer, para que o fortalecimento desta corrente não surja quando já for demasiado tarde...


...e já tenhamos sido varridos pela maré do lixo das ideias que diariamente nos servem.


[1] A entrevista a Boaventura de Sousa Santos pode ser lida aqui e a João Ferreira do Amaral aqui.