sábado, 19 de julho de 2014

PARA MELHORAR O GUIÃO…

Sinal dos tempos, coincidência ou verdadeiro milagre (a escolha da opção fica ao critério de cada um) desde a apresentação de «Um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa», proposta estruturada para o urgente debate sobre a indispensável reestruturação da dívida, originou ondas de repercussão na imprensa onde não tem faltado uma ou outra opinião reforçando essa necessidade ou criticando a opção pela política da “austeridade-expansionista”.

Depois de conhecido que «Até o FMI já admite que a dívida é de alto risco e poderá ser reestruturada» e quando o candidato à presidência da Comissão Europeia, Jean-Claude «Juncker reconhece erros da troika e promete Europa mais social» o debate das alternativas é mais que necessário: é indispensável!


Nas palavras dos autores daquele relatório, são seus objectivos: «(i) a negociação para a redução do valor presente da dívida (reestruturação de dívida), através da alteração de juros e prazos; (ii) o saneamento dos passivos bancários, para garantir a solvabilidade e estabilidade da banca; e (iii) a modernização fiscal para pôr as contas do Estado em ordem e tornar sustentável, numa perspectiva macroeconómica, a recuperação económica e o crescimento económico futuro», donde resulta que centram a sua atenção num modelo de reestruturação da dívida pública, através do aumento significativo da maturidade e duma redução dos juros, sem redução do montante, enquanto para a dívida privada externa (essencialmente constituída por dívida bancária) propõem uma redução alcançada através dum processo de resolução bancária, nos seguintes termos: «(a.) Titulares de acções registariam perdas equivalentes ao valor contabilístico dos capitais próprios (as perdas de valor de mercado seriam substancialmente inferiores); (b.) Titulares de dívida subordinada registariam perdas de 100%, em conformidade com as práticas vigentes e aceites nos mercados financeiros internacionais; (c.) Alguns credores, nomeadamente o Eurosistema e os depositantes com depósitos inferiores a 100.000€, não teriam quaisquer perdas; (d.) Os restantes credores (relativa à parte dos depósitos acima de 100.000€ e credores de títulos de dívida bancária), bem como o Fundo de Garantia de Depósitos que se substitui aos depositantes com depósitos inferiores a 100.000€, veriam os seus créditos face ao sistema bancário residente reduzido em 34%. Receberiam, porém, como contrapartida, acções dos respectivos bancos com valor nominal idêntico ao da redução dos seus créditos sobre a banca e com valor contabilístico equivalente a 61,2% dessa redução. Note-se que receberiam acções de bancos com balanços muito mais robustos do que actualmente, acções essas que teriam tendência a apreciar-se», podendo em resumo dizer-se que a sua proposta se centra na actuação interna.

O tratamento simultâneo, mas igualmente em separado, da dívida pública e da dívida externa e a opção por não recorrer à solução do perdão de dívida constituem a imagem forte do guião. Se a abordagem global da questão do endividamento público e privado apresenta o mérito de evidenciar o grande peso deste último (algo que tem vindo a ser sucessivamente escamoteado) e o tratamento diferenciado que propõe (redução do segundo por via da transferência parcial das perdas para os accionistas do sistema financeiro) deixa bem claro a diferença da sua natureza, nem por isso deixa igualmente de branquear o comportamento dos agentes (decisores políticos e sistema financeiro) que muito contribuíram para que o endividamento atingisse os valores que lhe conhecemos.

Por opção de natureza ética mantenho a ideia da indispensabilidade duma auditoria à dívida pública que, separando a dívida necessária da fraudulenta, conduzisse a que os co-responsáveis pela última viessem a ser penalizados por via da respectiva incobrabilidade. A proposta de atingir uma redução prática por via da extensão da sua maturidade é uma opção possível (tecnicamente interessante e de modo algum descabida) mas que desperdiçará a oportunidade para introdução de critérios de endividamento, de processos de controlo e de métodos de avaliação que deveriam ser aplicados no futuro.

Numa conjuntura em que o BCE mantém a taxa de desconto (taxa a que o banco central do euro financia os bancos) nuns escassos 0,15% e quando até o “think tank«Alemão Ifo aconselha redução da dívida para países do Sul», demonstrando uma crescente tomada de consciência da insustentabilidade da dívida pública, é exigível que além da questão da eventual redução facial (“haircut”) seja igualmente revista a taxa de juro dos empréstimos.

Já no caso dum sistema financeiro a braços com uma delicada situação de sobreendividamento (proporcionalmente maior que o endividamento público e que esteve na origem da opção pelo resgate conduzido pela “troika”, como recentemente o confirmou Philippe Legrain, um ex-conselheiro da presidência da Comissão Europeia, quando assegurou que as «Ajudas a Portugal e Grécia foram resgates aos bancos alemães») era impossível não recorrer a um “haircut” e a proposta de redução dos passivos bancários (mediante intervenção do Fundo de Garantia dos Depósitos e da conversão de parte dos saldos dos depósitos superiores a 100.000€ em capital) constitui uma solução idêntica à que a “troika” recorreu no programa de resgate que aplicou em Chipre (ver o “post” «SINAIS DE CHIPRE»).

Em resumo: pese embora o bem estruturado e quantificado trabalho apresentado sob a chancela do Institute of Public Policy Thomas Jefferson – Correia da Serra, no que respeita à proposta de reestruturação da dívida pública preferia, pelas enunciadas razões éticas e para pedagogia futura, que o processo se iniciasse com uma redução da dívida estimada em função duma auditoria que distinguisse a dívida legítima (a que seria amortizada) da ilegítima (a que não deve ser paga) ao qual se acrescentaria a extensão das maturidades e uma redução da taxa de juro, não para o valor proposto (1%) mas para um nível igual ao da taxa de desconto praticada pelo BCE.

Mas o problema das dívidas públicas dos países da periferia da Zona Euro, criado como o foi pelo funcionamento desregulado dum sistema bancário duma zona monetária criada para o servir, não se esgota numa abordagem de natureza doméstica, sendo indispensável incluir uma proposta de actuação ao nível da Zona Euro.

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