sábado, 17 de novembro de 2007

A CIDADE E AS SERRAS

O título poderia sugerir uma reflexão sobre a obra homónima ou o seu autor – Eça de Queirós – mas prosaicamente devo confessar que surgiu ao ler as notícias sobre o actual surto grevista em França.

Há quatro dias que vários sindicatos ligados ao sector ferroviário estão a provocar o caos na capital daquele país. Para quem conheça a cidade (a sua eficiente rede de transportes ferroviários) ou sobre ela tenha lido alguma coisa, sabe que uma paralisação naquele sector nevrálgico se traduz invariavelmente pela instalação do maior pandemónio, bastando para tal recordar que a população da cidade e arredores já ultrapassará os 12 milhões de habitantes, além dos sérios prejuízos provocados sobre uma economia que é considerada a sexta a nível mundial[1].

Seis meses volvidos sobre a tomada de posse de Nicolas Sarkozy como Presidente da República eis que surge a primeira verdadeira prova de força entre o novo poder e os sindicatos com a questão do alargamento da idade da reforma a assumir o papel de leit motiv da contestação, a qual deverá agravar-se quando no dia 20 a função pública e os professores entrarem também em greve. Nada disto constitui novidade para ambas as partes (os sindicatos franceses são há muito conhecidos pelas suas manifestações de força e Sarkozy já desempenhara as funções de ministro do interior no governo de Dominique de Villepin) salvo o facto da principal reivindicação agora apresentada constituir um dos temas mais escaldantes por essa Europa fora.

Bom, por toda a Europa não! Existe um pequeno rectangulo onde os governantes ainda conseguem introduzir alterações daquele tipo sem dificuldades de maior; apesar de algumas vozes de protesto e uma ou outra crítica mais feroz, o governo de José Sócrtaes conseguiu fazer em Portugal o que Sarkozy está agora a tentar.

Há semelhança da dicotomia que Eça de Queirós estabeleceu entre a França e o Portugal dos finais do século XIX, também agora se manifesta uma evidente diferenciação entre uma classe trabalhadora que resiste a mudanças gravosas no regime de previdência e segurança social e outra que pacificamente aceitou mudanças de idêntico calibre.

Bom, para um observador mais atento talvez a aceitação não tenha sido assim tão pacífica...

O que na realidade marca a diferença entre os que resistem e os outros é que no caso nacional grande número dos visados com as novas medidas estarão a adaptar-se ao novo modelo! Como?

Simples, recorrendo à proverbial capacidade de adaptação que os lusos manuais de história costumam louvar. Mesmo que de forma inconsciente uns, consciente outros, o que estará a acontecer é que os trabalhadores tenderão a ajustar o seu esforço a um período de tempo de trabalho mais dilatado.

Com a inteligente solução de aumentar a vida útil de trabalho como forma de ultrapassar a imprevidência (quando não a pura desonestidade) com que têm sido geridos os fundos que supostamente deveriam gerar os rendimentos necessários ao pagamento das reformas futuras[2], o que os modernos governos liberais e neoliberais, que campeiam por esse mundo fora, vão alcançar é uma muito provável redução da sua sacrossanta produtividade.

A confirmar-se esta hipótese, as gerações mais jovens devem ir-se preparando para sucessivos alargamentos do período de vida útil (caminha-se a passos largos para um círculo vicioso onde no limite será proibido a qualquer trabalhador morrer antes de tempo
[3]) e a uma muito provável recuperação de antigas práticas utilizadas nos tempos da escravatura para assegurar a produção mínima – a aplicação de castigos físicos aos mais “preguiçosos”...
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[1] Atrás dos EUA, Japão, Alemanha, China e Grã-Bretanha.
[2] Sobre esta questão ler os seguintes posts sobre o assunto: A PROPÓSITO DA FALÊNCIA DA SEGURANÇA SOCIAL, AS MENTIRAS DA FALÊNCIA DA SEGURANÇA SOCIAL e O MODELO FUTURO PARA A SEGURANÇA SOCIAL.
[3] Os governantes mais espertos, cientes da ineficácia de uma medida de mera proibição, introduzirão, no mínimo, a obrigação legal dos herdeiros pagarem os descontos a que o defunto se tenha eximido por ter morrido antes de atingido o número máximo de anos de descontos.

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