quarta-feira, 1 de março de 2017

YUAN VERSUS DÓLAR

Ainda que poucas vezes abordado ou referido por analistas e comentadores, desde a eclosão, em 2008, da crise sistémica global que o mundo procura um substituto para a sua dependência do dólar americano. A intoxicação foi tão forte que demorou quase uma década a elaborar um esboço de solução que, estranhamente, vem de uma instituição que se poderia pensar obsoleta – o FMI – e do interesse da China em juntar a sua moeda (o yuan) ao cabaz que origina a cotação da moeda escritural daquele organismo: os direitos especiais de saque (DES).

E a que se deve essa recuperação? Ao paciente trabalho duma China que após longos atrasos no destino do sistema monetário internacional viu uns EUA incapazes de evitar o inevitável e, seja por um sinal flagrante da sua perda de poder ou pelo reconhecimento da posição chinesa enquanto principal credor dos EUA, aceitarem a participação chinesa abdicando do direito de veto que têm no FMI.


Verdade se diga que o reconhecimento desta velha ferramenta existente (a que mais se assemelha a uma moeda mundial, na linha da solução defendida em Bretton Woods por John Maynard Keynes) no papel de solução à esclerose do mundo do dólar tem o potencial para reconstruir o sistema monetário internacional e até mesmo de ter muito maiores implicações na reconfiguração do mundo multipolar.

Desde o colapso do sistema de Bretton Woods, quando em 1971 os EUA declaram a inconvertibilidade do dólar em ouro (o pilar básico do acordo que permitiu ao dólar americano alcandorar-se ao papel de equivalente geral mundial e deu o empurrão decisivo à ascensão dos EUA ao lugar de maior economia mundial), vieram perdendo importância e capacidade para efectivamente estabilizarem o sistema monetário internacional; a ascensão dos BRICS revelou ainda mais as limitações duma moeda escritural formada a partir dum cabaz de moedas que contém apenas o dólar, o euro, a libra e o iene, e que dificilmente pode reflectir a geometria da economia global do século XXI. Com a inclusão do yuan a partir de Outubro de 2016, os DES recuperaram alguma da importância perdida.

Claro que o dólar continua ainda sobre-avaliado e a sua proporção pouco mudou e se o yuan incorporou o cabaz, fê-lo em detrimento das três outras moedas, especialmente do euro, o que não terá deixado de agradar aos americanos que sempre viram na moeda-europeia a sua grande rival. Esta evidente fragilidade europeia (agravada também pela ainda maior descida da libra) é sinal claro da tibieza da liderança da UE mas pode traduzir-se num processo de transição mais pacífico para um mundo multipolar, agora que a China não deixará de paulatinamente fazer valer o seu estatuto de segunda economia mundial.

Confirmando este novo protagonismo para os DES o governo chinês já patrocinou uma emissão de dívida denominada em DES (ainda que este, por ser extensível a investidores privados, seja apenas um veículo financeiro que replica os DES do FMI) e embora os 2 mil milhões de DES previstos para aquela emissão de obrigações possa parecer pequena, este montante deve ser comparado com os meros 204 mil milhões de DES emitidos desde a criação do FMI, o que justifica a ideia duma clara reanimação desta ferramenta monetária.

Outro sinal da evolução no sentido dum mundo multipolar e dos extremos cuidados de que a China se tem rodeado é a tentativa de integrar as ferramentas de governança "internacional" existentes, adaptando-as ao mundo nascente e tornando-as realmente mundiais. É exemplo disto o facto do Banco Mundial (outra das organizações criadas a partir de Bretton Woods) ter legitimado aquela que é uma emissão obrigacionista claramente percebida como um ataque contra a supremacia do dólar, que posiciona os DES como embrião duma moeda mundial, agora que o contexto deflacionário ocidental retira muita da sustentação às habituais críticas de risco de inflação (o eterno pavor alemão que muito tem contribuído para anular o papel e o poder do euro) e que abre perspectivas a novas políticas apontadas ao investimento em infra-estruturas e inovação através de uma retoma da despesa pública e na moderação das políticas de flexibilização da política monetária, recuperando o papel do dinheiro na economia real e não apenas no mundo financeiro especulativo.

O redesenho da governança mundial, traduzido na revitalização dos grandes fóruns internacionais (FMI, Banco Mundial e até a ONU) serve a agenda política dos BRICS liderados pela China e pode até ajudar a Europa a libertar-se da influência dos EUA, sem confrontos directos nem claros sinais de agitação, enquanto o Banco de Investimento Asiático para as Infra-estruturas (AIIB) continua a ver crescer o número dos seus membros.

Por último, a aposta numa moeda escritural que termine com vantagens o papel hegemónico do dólar deverá ainda contribuir para o fortalecimento de grupos regionais, fomentando uniões monetárias que ajudem esses grupos de países a integrarem o cabaz de referência para os DES, processo onde a Europa poderá ter a sua influência nem que seja apenas pela sua experiência única em tais agrupamentos (seja aprendendo com os erros europeus, seja com os seus êxitos), o aumento da estabilidade financeira mundial (resultado da substituição de um dólar há muito esgotado pelas suas responsabilidades desproporcionadas) e a reorganização do mundo em grupos regionais constituindo blocos dum novo mundo multipolar.

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