sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O PAPEL DOS BANCOS CENTRAIS

Não são raras as vezes em que ao iniciar cada novo “post” me interrogo sobre a respectiva utilidade. Tal é a sensação de inutilidade que me assola de cada vez que volto a bordar questões como a das origens da crise das “dívidas denominadas em euros” ou pretensas soluções como a da “austeridade-expansionista”, que não poucas vezes tenho ponderado desistir de remar contra a maré, guardando para minha exclusiva saciedade intelectual as ideias e argumentos que aqui vou alinhavando.

O pensamento unificado, aceite e reconhecido, exercido na Europa sob a égide da escola ordoliberal alemã, tudo tem estiolado em redor; seja por convicção dos comentadores, por estipêndio directo (como diria Baptista Bastos) ou na expectativa de dele vir a beneficiar, raras são as excepções na quebra da regra: na imprensa nacional não há lugar à apresentação de teses ou hipóteses contrárias aos magnânimos benefícios e à sacralizada receita austeritária, para exorcismo dos satânicos malefícios do Estado ou para a mera cura através do seu emagrecimento.


Ainda assim, lá vai surgindo uma ou outra voz contra a corrente, como é o caso do artigo «Acabar o Euro» assinado por Marco Capitão Ferreira no ECONÓMICO, onde o autor repesca um artigo de opinião de Mark Blyth (o consagrado autor de “Austeridade – uma ideia perigosa”) e Eric Lonergan (gestor dum “hedge fund”), publicado na reputada FOREIGN AFFAIRS (ver «Print Less but Transfer More - Why Central Banks Should Give Money Directly to the People»), que começa por questionar o modelo de financiamento através do sistema bancário e acaba por concluir que um modelo de financiamento directo a empresas e famílias, numa conjuntura onde coexiste uma capacidade de produção longe de esgotada e uma procura reduzida, não gerará inflação e ainda apresenta a vantagem de não contribuir para a formação de bolhas especulativas induzidas pelo próprio sistema financeiro.

Enquanto Blyth e Lonergan denunciam a evidente incapacidade dum sistema financeiro, assoberbado pela necessidade de financiar as estratégias especulativas que pratica, para assegurar a função de financiamento à economia e apelam a uma intervenção directa dos bancos centrais na economia, Marco Capitão Ferreira transpõe aquele raciocínio para a Zona Euro e deixa no ar a questão da continuidade da moeda única sem reajustamentos nas suas regras originais quando afirma que «(s)e não acabarmos de construir o euro acabamos com o euro, e por essa via, fazemos perigar o projecto europeu nascido nos escombros da II Guerra Mundial», mas queda-se sem adiantar o que faltará fazer.

É aqui, com redobrada razão, que agora urge levar a discussão da reformulação do Euro a um patamar diferente do habitual e além de questionar o modelo de governação do BCE (organismo sem o indispensável controlo democrático) ou algumas das regras que espartilham uma efectiva intervenção da economia da Zona Euro, avançar sem receio no sentido de retirar o monopólio do financiamento da dívida pública ao sistema financeiro, permitindo que as necessidades de cada Estado sejam directamente financiadas pelo BCE (no mínimo até ao limite dos 60% do PIB) e a um custo inferior ao dos bancos, em lugar de insistir em soluções gizadas em exclusivo benefício do sistema financeiro. Assim o recente anúncio de que «Super Mario surpreende o mercado e corta taxa de juro para novo mínimo histórico de 0,05%» ou de que «BCE põe em marcha a compra de activos para estimular a economia», constituem uma repetição infrutífera das panaceias já ensaiadas. Continuando por realizar uma avaliação rigorosa e imparcial dos activos tóxicos (derivados e demais produtos estruturados) nas carteiras dos bancos, as necessidades de capital dum sistema financeiro exaurido pelas crescentes imparidades (quer as que resultam das estratégias especulativas quer as que derivam do aumento do incumprimento) são de tal monta que estes absorverão a quase totalidade dos “estímulos” que o BCE destina ao relançamento da economia, facto que reforça a credibilidade duma solução que leve os bancos centrais a repor liquidez na economia através dos orçamentos públicos e das indispensáveis políticas públicas orientadas para o desenvolvimento e crescimento económico, únicas capazes de inverter uma conjuntura onde a «Zona euro estagna com investimento privado em queda» e de combater as elevadas taxas de desemprego.

Quando até já se reconhece que tem andado o «BCE sempre um passo atrás, em relação aos outros bancos centrais» e que os novos programas de compra de activos se resumem a uma situação onde «Draghi testa novas armas para evitar comprar dívida soberana», com os quais espera evitar as críticas alemãs, começa a trilhar-se um caminho (é certo que tortuoso) que apenas pode culminar no abandono definitivo das teses que reduziram o papel do BCE ao de controlador da inflação e abrir espaço para a redefinição das suas funções enquanto Banco Central do Euro.

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