sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

A CRISE DAS DÍVIDAS – AS ORIGENS

A leitura da notícia de que o chefe da missão do FMI em Portugal, Subir Lall, deixou o aviso numa entrevista ao FINANCIAL TIMES que o «Ajustamento da economia portuguesa vai demorar mais dez a 15 anos», recordou-me um artigo que li há dias sobre anteriores actuações daquele organismo.

Embora publicado na última edição nacional do LE MONDE DIPLOMATIQUE (mas não disponível em linha) aqui deixo uma tradução própria do referido artigo, assinado por Rafael Correa. Nele, o actual presidente do Equador, economista de formação (frequentou as Universidades Católicas de Guayaquil e de Lovaina e a University of Illinois) deixa a sua perspectiva sobre um fenómeno que conhece, como diria Luís Vaz de Camões, fruto de um saber de experiências feito.

Particularmente interessante (e a razão pela qual o traduzi – o original pode ser lido nesta página da edição francesa – e o reproduzo) é o facto do texto apresentar uma perspectiva de experiência real e quase pessoal.

«A União Europeia endividada reproduz os nossos erros

Rafael Correa

Nós, os latino-americanos somos especialistas em crises. Não porque sejamos mais inteligentes do que os outros, mas porque as sofremos todas. E gerimo-las terrivelmente mal, porque só tínhamos uma prioridade: a defesa dos interesses do capital, ainda que mergulhássemos a região numa longa crise da dívida. Hoje vemos com preocupação a Europa seguir o mesmo caminho.

Na década de 1970, os países latino-americanos entraram numa situação de dívida externa excessiva. A história oficial diz que isso resultou de políticas de governos "irresponsáveis" e dos desequilíbrios acumulados por causa do modelo de desenvolvimento adoptado pelo subcontinente, depois da guerra: a criação de uma indústria capaz de produzir localmente produtos importados, ou “industrialização por substituição de importações”. Essa enorme dívida foi de facto promovida - e até imposta - pelas instituições financeiras internacionais. A lógica defendida era que por meio de projectos de financiamento com alta rentabilidade, que na época abundavam no Terceiro Mundo, teríamos sucesso no desenvolvimento, enquanto o retorno sobre estes investimentos permitisse saldar as dívidas. Isso durou até 13 de Agosto de 1982 quando o México se declarou incapaz de cumprir os prazos.

Em consequência, toda a América Latina teve que sofrer a suspensão dos empréstimos internacionais, a par com o forte aumento das taxas de juros sobre a sua dívida. Os empréstimos que foram contratados a 4% ou 6%, mas com taxas variáveis, chegaram de repente a 20%. Mark Twain disse: “Um banqueiro é alguém que lhe empresta um guarda-chuva quando está sol e o exige-o de volta quando começa a chover...” Assim começou a nossa crise da dívida. Durante os anos 1980, a América Latina fez para os seus credores uma transferência líquida de recursos de 195 mil milhões (cerca de 554.000 milhões em valor corrente). Ao mesmo tempo, a dívida externa da região aumentou de 223 mil milhões em 1980 para 443 mil milhões de dólares... em 1991! Não por causa de novos empréstimos, mas por causa de refinanciamento e de acumulação de juros. Na verdade, o subcontinente assistiu à conclusão da década de 1980 com os mesmos níveis de rendimento per capita que tinha, em meados da década de 1970. Fala-se de uma “década perdida” para o desenvolvimento. Na verdade o que se perdeu foi toda uma geração.

Embora as responsabilidades tivessem sido partilhadas é claro que os países dominantes, as burocracias internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), bem como os bancos privados internacionais, resumiram as dificuldades ao problema de endividamento dos estados (overborrowing). Em contrapartida nunca assumiram as suas próprias responsabilidades pela concessão exagerada de crédito (overlending). Crises fiscais graves e dívida externa gerada pela transferência líquida de recursos da América Latina para os seus credores levaram muitos países da região a assinar “cartas de intenção” ditadas pelo FMI. Estes acordos vinculativos permitiram a obtenção de empréstimos a partir desta organização bem como a sua caução na renegociação de dívidas bilaterais com os países credores reunidos no Clube de Paris. Os programas de ajustamento estrutural e estabilização impuseram a receita do costume: austeridade fiscal, o aumento dos preços de serviços públicos, privatizações, etc. Todas as medidas através das quais não se tentava sair rapidamente da crise, ou impulsionar o crescimento e o emprego, mas a garantir o pagamento de empréstimos dos bancos privados. Em última análise, os países continuavam endividados, não junto destas instituições, mas de instituições financeiras internacionais que protegiam os interesses dos bancos.

No início de 1980, um novo modelo de desenvolvimento começou a impor-se na América Latina e no mundo: o neoliberalismo. Este novo consenso sobre a estratégia de desenvolvimento tem sido apelidado de “Consenso de Washington”, cujos principais mentores e impulsionadores são as instituições financeiras multilaterais com sede em Washington. De acordo com a lógica em voga, a crise na América Latina deveu-se à excessiva intervenção do Estado na economia, à falta de um sistema adequado de preços livres e ao afastamento dos mercados internacionais - sendo sabido que estas características resultavam do modelo latino-americano de industrialização por substituição de importações. Consequência duma campanha de propaganda ideológica sem precedentes, disfarçada de pesquisa científica, bem como a pressão directa do FMI e do Banco Mundial, a região passou de um extremo ao outro: da desconfiança do mercado à confiança excessiva nas regras do livre comércio, da desregulamentação e da privatização. A crise não era apenas económica, antes resultado duma falta de liderança e de ideias. Estávamos com medo de pensar por nós mesmos e concordámos, de forma  tão passiva quanto absurda, com os ditames estrangeiros.

A descrição da crise que atravessou o Equador (ler “L’Equateur, 1998”) será, provavelmente, familiar a muitos europeus. A União Europeia sofre dum endividamento produzido e agravado pelo fundamentalismo neoliberal. Embora respeitando a soberania e a independência de cada região do mundo, estamos surpresos que a Europa, ao mesmo tempo tão esclarecida, repetia em todos os aspectos, os erros de ontem da América Latina. Os bancos europeus emprestaram à Grécia fingindo não ver que seu défice orçamental era quase três vezes maior do que o reportado pelo Estado. Isso levanta novamente o problema dum sobreendividamento onde se escamoteia a contrapartida: o excesso de crédito. Como se o capital financeiro nunca tivesse qualquer responsabilidade.
De 2010 a 2012, o desemprego atingiu níveis alarmantes na Europa. Entre 2009 e 2012, Portugal, Itália, Grécia, Irlanda e Espanha reduziram seu orçamento de despesa de 6,4% em média, prejudicando gravemente os serviços de saúde e educação. Esta política é justificada por uma escassez de recursos, mas grandes somas foram disponibilizados para socorrer o sector financeiro. Em Portugal, na Grécia e na Irlanda , os valores de resgate bancário excedem os gastos anuais em salários. Enquanto a crise está atingindo directamente os povos da Europa, continuam a impor-se as receitas fracassadas em todo o mundo.

Tomemos o exemplo de Chipre. Como sempre, o problema começa com a desregulamentação do sector financeiro. Em 2012, a sua má gestão torna-se insustentável. Bancos cipriotas, em especial o Bank of Cyprus e Laiki Bank, tinham concedido à Grécia empréstimos privados num valor superior ao produto interno bruto (PIB) do Chipre. Em Abril de 2013, a “troika”, o FMI, o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia, propõe um “resgate” de 10 mil milhões de euros condicionado a um programa de ajustamento que inclui a redução do sector público, a abolição do sistema de reformas para os novos funcionários, a privatização das empresas públicas estratégicas, o ajustamento fiscal até 2018, a limitação dos gastos sociais e da criação dum “fundo de resgate”, cujo objectivo é apoiar os bancos e resolver os seus problemas, além do congelamento dos depósitos superior a 100.000 euros.

Não há dúvida de que as reformas são necessárias, ou que devemos corrigir erros graves, incluindo os originais: a União Europeia incluiu países com diferenciais de produtividade muito importantes que os salários internos não reflectem. No entanto, na maioria das vezes, as políticas não procuram recuperar da crise com o menor custo para os cidadãos europeus, mas apenas garantir o pagamento da dívida aos bancos privados.»

Dada a sua extensão tomei a liberdade de dividir o artigo em duas partes; uma primeira na qual o autor elabora um breve enquadramento histórico sobre as origens da crise das dívidas e uma segunda (a publicar de seguida) onde coloca a ênfase nos efeitos sobre as pessoas que a sofreram… e sofrem.

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