sábado, 18 de maio de 2013

MILAGRES…


Continuando o registo da política-espectáculo, em vésperas de mais um Conselho de Estado (e da correspondente manifestação popular em Belém) e pouco depois de noticiado que «Eurogrupo fecha sétima avaliação do programa de ajustamento e liberta ajuda», assistimos à verdadeira farsa quando «Cavaco afirma que a sétima avaliação da troika é “inspiração de Nossa Senhora de Fátima”»!


A afirmação pode, obviamente, ser objecto de várias leituras; Cavaco Silva pode ter aproveitado a presença numa cerimónia de entrega de prémios científicos para reafirmar as suas convicções religiosas e afastar qualquer possível ligação ao racionalismo agnóstico, caso em que revelou a mais absoluta falta de tacto e até de respeito por quem o terá convidado, pode em alternativa ter ensaiado uma “graçola” ao estilo americano, caso de todo em todo pouco provável conhecida que é a sua postura de seriedade e rigor e evidente a sua completa desadequação ao desempenho de comediante, ou acredita piamente naquilo que disse, que é das três alternativas a mais óbvia e, claramente, a pior de todas.

As convicções religiosas do casal presidencial (a confirmar-se que a inspiração veio de Maria Cavaco Silva) pertencem ao seu foro pessoal e devem ser respeitadas desde que nele permaneçam, mas produzir uma afirmação daquelas é tanto mais inconveniente quanto, a propósito da situação política nacional, o mesmo Cavaco lembrou circunspectamente que «“É preciso evitar exposições públicas de divergências” na coligação».

Por fim, se um acontecimento tão previsível quanto a conclusão favorável do processo de avaliação da “troika” (quem de bom senso esperará que os “juízes” não julguem favoravelmente em causa própria) mereceu este tipo de comentário presidencial, que dirá o mesmo Cavaco quando, concluído o PAEF, se ensaiar com sucesso uma verdadeira emissão de dívida? Será que quando o IGCP (Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública) lograr realizar um verdadeiro leilão participado – no lugar de mais uma farsa que foi apresentar uma operação sindicada, como a recentemente organizada por um conjunto de seis bancos mandatados para vender a dívida a um número restrito de “interessados” e a preço irresistível, agravada ainda pelo tacto de Vítor Gaspar nem sequer se ter coibido de afirmar que a «Emissão de dívida foi um “grande sucesso”» – veremos o presidente partir em peregrinação de acção de graças ao Senhor Santo Cristo ou ao Divino Espírito Santo, para não mais regressar?

Não contente com uma referência de resultado e gosto duvidosos que deixa pairar a pertinente questão de sabermos Cavaco Silva mergulhado no mais profundo desespero, lendo no I que «Depois de Fátima, presidente invoca S. Jorge», já nem pairam dúvidas de quando voltará a invocar alguma figura da hagiologia cristã, nem de que este evidente pendor presidencial para o misticismo merece análise profunda e abalizada doutros que reúnam maiores conhecimentos que os meus. Ainda assim, sempre me atrevo a lembrar (ou, porque não, a lançar mais achas para a fogueira) que a última referência pode pressagiar alguma até agora oculta tendência sincrética de Cavaco Silva, pois a figura de São Jorge além de transversal a igrejas como a católica, a ortodoxa e a anglicana é ainda figura maior do culto umbanda (de origem afro-brasileira), sob o nome de Ogum.

Reconfirmada a total inépcia e desadequação de Cavaco Silva para a função que desempenha e agora que até já circulam notícias de que a «Alemanha junta-se ao coro de críticas contra a austeridade das troikas», a que ponto poderá esta sua nova e perturbante faceta acarretar mais dissabores e vexames a somar à penúria e vergonha a que nos condenaram os seus apaniguados?

Observada a questão à luz crua do racionalismo, esta recém-descoberta veia mística poderá revelar afinal uma mera tentativa para esconder as tendências que por essa Europa eclodem contra os interesses da minoria que tem manobrado a crise em proveito próprio; críticas e denúncias que são cada vez mais frequentes e começam já a surgir de sectores cada vez mais próximos dos poderes estabelecidos, como recentemente aconteceu com um relatório publicado pelo “think tank” europeu Bruegel onde é analisada a actuação das “troikas” na Grécia, Irlanda e Portugal e cujas conclusões, não sendo demolidoras também não são propriamente favoráveis.

Embora para uma larga percentagem de europeus os ventos de mudança – como os prenunciados pelas mais recentes posições alemãs, com a notícia de que até já a chanceler «Merkel acusa Barroso e troika de serem os culpados da austeridade», ou o recente redireccionamento da política francesa onde «Hollande defende criação de governo permanente e dívida comum para a Zona Euro» – possam chegar demasiado tarde, pode começar a questionar-se a quem restará a fé como recurso salvador: aos milhões que têm vindo a sofrer os horrores das políticas recessivas ou aos muito poucos que mais que tudo receiam perder um pouco do muito que têm vindo a acumular.

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