sábado, 14 de julho de 2012

BARBÁRIE


Ainda que sob este epíteto se pudessem incluir acontecimentos tão diversos quanto as já longas polémicas que envolvem Miguel Relvas (o aproveitamento em benefício próprio de regras difusas e o uso de “prerrogativas” associadas ao estatuto de figura política) ou a recente notícia de que em Portugal «Três milhões vivem com menos de 500 euros/mês», pretendo hoje ajudar a não deixar cair no esquecimento as notícias que desde finais do mês passado vieram dando conta que «Combatentes islamistas estão a destruir os mausoléus de Tombuctu», tanto mais que ainda esta semana pudemos ler que «Islamitas continuam a destruir Tombuctu».


Para se ter uma pequena ideia do que significam as notícias,recorde-se que Tombuctu, cidade do Mali classificada em 1988 como Património Mundial pela UNESCO em reconhecimento da sua importância histórica, é conhecida como a cidade dos 333 santos, reputada por um conjunto de mausoléus em terracota (construções únicas no Mundo) que albergavam os restos mortais de vários santos sufis[1] e sede da centenária universidade de Sankore e do não menos famoso centro Ahmed Baba que alberga uma colecção de 20.000 manuscritos árabes antigos.

Não bastando o reconhecido risco de desaparecimento sob as areias do Sahara – facto que levou a UNESCO a incluí-la na sua Lista do Património Mundial em Perigo – eis que é agora alvo duma ameaça ainda maior. Local conhecido pela sua abertura cultural – nos séculos XV e XVI foi um importante centro de tolerância religiosa e racial, habitado por muçulmanos, cristãos e judeus –, sempre soube conciliar as culturas locais – songhai, tuaregue e árabe – e conservar as várias tradições, até que com o recrudescimento da revolta tuaregue no norte do país (facilitada pela massiva distribuição de armas durante a insurreição líbia que ditou o fim de Kadhafi) e a chegada dos modernos ventos do radicalismo islâmico, personificados nos guerrilheiros islamistas do Ansar al-Dine[2] (movimento que se afirma ligado à Al-Qaeda), ameaça repetir a barbárie que foi a destruição pelos “taliban” afegãos doutro monumento classificado como Património Mundial – os Budas de Bamiyan[3].

Quando estamos em vias de assistir à concretização de mais um atentado à Civilização, inserido naquela que há séculos é a reacção habitual dos que apenas entendem o dogmatismo da “sua verdade”, perpetrado por fanáticos religiosos do mesmo calibre dos que destruíram até à raíz as culturas pró-colombianas na América Latina ou dos que impuseram as suas convicções religiosas nos territórios colonizados, resta-me lembrar outro “atentado” cultural e profundamente gratuito – o que teve lugar em Março de 2007 em Bagdad, não numa qualquer rua, mas na simbólica Al-Mutanabi (assim designada em homenagem ao famoso poeta da época abássida), dedicada ao comércio de livros e habitual local de reunião dos intelectuais iraquianos – repetindo as palavras dum livreiro iraquiano e que serviram de título ao “post” que então lhe dediquei: «AGORA ASSASSINAM OS LIVROS...».



[1] Os sufis ou sufitas, defendem uma corrente mística e contemplativa do Islão e os seus praticantes procuram desenvolver uma relação íntima, directa e contínua com Deus, através da prática de cânticos, música e dança, o que é considerado ilegal pela sharia de vários países muçulmanos. A designação sufismo é utilizado para descrever um vasto grupo de correntes e práticas, que podem estar associadas a qualquer das duas principais correntes islâmicas (sunita ou xiita), ainda que para os mais radicais de qualquer delas seja considerado como um movimento herético, razão pela qual tem sido regularmente perseguido ao longo da história.
[2] Também designado por Ansar Dine (Defensores da Fé), é um grupo islâmico que pretende a imposição da sharia (lei islâmica) em todo o território do Mali; no início da chamada Rebelião Tuaregue actuou em conjunto com o MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) na oposição ao regime de Bamako, mas os dois movimentos já divergiram ao ponto de se terem registado confrontos entre as duas forças.
[3] Os Budas de Bamiyan eram duas estátuas de Buda escavadas na rocha pelos monges budistas que viveram no vale homónimo até à chegada do islão no século XIX. Integrado na mítica Rota da Seda e localizado a menos de 250 km da capital afegã, Cabul, o local sobreviveu intacto até que em 2001 foi destruído pelo movimento “taliban”, sob a alegação se tratarem de ícones.

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