terça-feira, 19 de agosto de 2014

CAPTURA DO QUOTIDIANO

Talvez ninguém esperasse que dez dias passados sobre um banal incidente (infelizmente a realidade norte-americana há muito nos habituou à rotina das mortes violentas, até às mais inexplicáveis, como a dum jovem de 16 anos e desarmado, que interpelado por perturbar o trânsito acaba mortalmente atingido por seis disparos) no subúrbio de Ferguson as populações locais continuassem a sair à rua reclamando justiça.

Múltiplas serão as razões para que, após as primeiras noites de motins, Ferguson tenha saltado para as primeiras páginas dos jornais acompanhando os habituais cabeçalhos de violência e pilhagens; uma serão as taxas judiciais que muitos residentes estão obrigados a pagar, a maioria relacionadas com pequenas infracções mas que depressa entram numa escalada preocupante, agora que o processo em curso de privatização da Justiça abriu à iniciativa privada os procedimentos de cobrança, outra e uma das principais, será o clima de desconfiança perante uma força policial maioritariamente branca, situação a que as autoridades federais do Missouri tentaram responder nomeando um natural do lugar e membro da comunidade para chefiar a polícia, o capitão Ronald Johnson. Esta decisão começou por ser bem recebida numa comunidade onde as tensões raciais permanecem sempre latentes, dando lugar a uma acalmia nos ânimos.


 Mas, pressionada a esclarecer as condições da morte do jovem Michael e a identificar o autor dos disparos, a polícia divulgou a informação de que o jovem seria suspeito de envolvimento num assalto, no que a comunidade entendeu como uma tentativa para denegrir o falecido e desculpabilizar o agente policial, originando novo recrudescimento da violência. Em reacção, o governador instaurou o recolher obrigatório e chamou a Guarda Nacional para auxiliar a polícia a conter os manifestantes.

Esta óbvia musculação dum aparelho policial que nos últimos tempos se tem visto “fortalecido” com veículos blindados de origem militar, além de não contribuir para o apaziguamento dos ânimos trouxe para a ordem do dia a muito importante questão do recurso a tácticas e equipamento (armamento e veículos) de evidente uso militar...


…que não tem escapado a comentadores, caricaturistas e, claro, às populações maioritariamente negras, mesmo quando são realizados esforços no sentido de disfarçar o indisfarçável e reconquistar a confiança perdida.


O processo de militarização das forças policiais norte-americanas não constituiu novidade, nem ocorre em resposta a crises pontuais como a que agora se vive nos arredores de St. Louis, antes integra uma opção bem definida em direcção a um estado militarizado; basta ver o armamento normalmente utilizado (incluindo o recurso a armas automáticas) a que acresce agora a nova tendência para dotar as forças policiais de viaturas do tipo MRAP (Mine-Resistant Ambush Protected, são viaturas blindadas para transporte de combatentes usadas pelo exército para resistirem à deflagração de engenhos explosivos improvisados e a ataques ou emboscadas, popularizada no Brasil sob o nome de Caveirão e que no caso português são as famigeradas Pandur, conhecidas na terminologia portuguesa por VBR - Viatura Blindada de Rodas) mais adequadas a cenários de guerra que à dissuasão de manifestantes.

A questão da crescente militarização das forças policiais não se resume ao território norte-americano nem é explicado pela simples apetência dos seus naturais pelo uso generalizado de armas (incluindo armas automáticas do tipo militar); a comprová-lo vejam-se as imagens próprias de qualquer reunião política internacional para detectarmos a presença generalizada de polícias fortemente armados, a distribuição estratégica de atiradores especiais (vulgo “snipers”) e o uso de helicópteros e viaturas blindadas, como se de um cenário de guerra se tratasse e numa evidente captura do quotidiano dos cidadãos que despreocupadamente julgam viver em regimes democráticos.

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