sábado, 3 de dezembro de 2005

SOBRE A INFORMAÇÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

Trata-se de um tema de permanente actualidade, seja ele debatido por quem for, mas quando abordado por Umberto Eco ganha seguramente outros contornos e outra audiência.

Assim, não resisto a reproduzir o artigo inserto no DIÁRIO DE NOTÍCIAS de hoje:

«Dêem-nos o crime diário

Na minha opinião, se o furacão que atingiu Nova Orleães não tivesse atingido terra que tinha sido escavada, nivelada, dragada, desflorestada e pilhada, os seus efeitos teriam sido menos devastadores. Penso que estamos todos de acordo acerca disto.

O debate começa realmente com a questão de se um furacão aqui e um tsunami ali são ou não devidos ao aquecimento global. Quero esclarecer à partida que, apesar de não ser um perito nestas ciências, estou convencido de que as alterações de muitas condições ambientais são causadoras de fenómenos que não aconteceriam se estivéssemos mais preocupados com o destino do planeta e, por isso, sou a favor do Protocolo de Quioto.

Mas acredito também que os tornados, ciclones e tufões sempre aconteceram, de outra forma não teríamos alguns dos melhores escritos de Joseph Conrad ou muitos filmes famosos sobre tais desastres.

Atrevo-me portanto a sugerir que os séculos passados testemunharam catástrofes terríveis, que mataram dezenas de milhares de pessoas e que talvez tenham acontecido dentro do mesmo (muito curto) espaço de tempo como o que passou entre o recente tsunami na Ásia e o Katrina nos Estados Unidos. Já ouvimos contar alguns casos destes.

Alguns até deram origem a uma literatura, como o terramoto de Pompeia e o de Lisboa; outros estão rodeados por informação inexacta e aterradora, como a erupção de Krakatoa. Mas - tudo somado - penso que seja legítimo supor que dezenas e centenas de outros cataclismos arrasaram costas e populações distantes enquanto nós estávamos ocupados com assuntos muito diferentes.

O facto é que no mundo globalizado a velocidade de comunicação assegura que tomemos conhecimento imediato de qualquer acontecimento trágico, mesmo que este ocorra no canto mais longínquo do mundo, e ficamos com a sensação de que acontecem mais catástrofes actualmente do que no passado.

Por exemplo, acredito que um espectador médio de televisão possa questionar qual será o vírus misterioso que possa originar o facto de tantas mães matarem os seus bebés. E é difícil culpar o buraco do ozono por isto. Outra coisa deve estar por detrás disso.

Há efectivamente outra coisa, mas não é secreta, nem está escondida. A questão é que, ao longo dos séculos, o infanticídio tem sido sempre um desporto razoavelmente popular e os antigos gregos costumavam ir ao teatro chorar por Medeia, a qual, como sabemos, matou os filhos há milhares de anos - e apenas para castigar o marido.

No entanto, e que isto nos sirva de consolação, entre os seis mil milhões de habitantes do planeta, as mães assassinas foram sempre uma percentagem infinitesimal e, por isso, devemos tentar não olhar com suspeitas para todas as senhoras que passam por nós a empurrar um carrinho de bebé.

No entanto, qualquer pessoa que veja os noticiários da televisão fica com a ideia de que vivemos num inferno no qual não só as mães matam os filhos todos os dias como jovens de 14 anos usam armas de fogo, imigrantes roubam, raptores cortam orelhas, pais assassinam as famílias, sádicos injectam veneno em garrafas de água mineral e sobrinhos dedicados esquartejam tios e tias. Naturalmente, tudo isto é verdade, mas é estatisticamente normal. E também, naturalmente, ninguém se lembra dos bons e pacíficos velhos tempos de há 50 ou 60 anos, quando - apenas para dar uns poucos exemplos italianos - uma senhora ferveu os seus vizinhos numa bacia de fazer sabão, outra esmagou as cabeças dos filhos do amante com um martelo e uma certa condessa Bellentani perturbou um jantar da alta sociedade quando matou o amante com um revólver.

Agora, enquanto é "quase" normal que uma mãe mate ocasionalmente um filho, é menos normal que tantos americanos e iraquianos fiquem feitos em pedaços todos os dias. No entanto, sabemos tudo sobre a criança assassinada, mas muito pouco sobre as mortes adultas.

O facto é que a imprensa de qualidade dedica as primeiras páginas a problemas políticos, à economia e à cultura; seguidas de outras páginas sobre as movimentações do mercado bolsista, classificados e as colunas de obituário que eram a leitura favorita das nossas avós.

Mas, à parte os casos verdadeiramente sensacionais, apenas umas poucas páginas interiores são dedicadas ao crime. Houve, sem dúvida, uma época em que as histórias de crimes eram tratadas de uma forma ainda mais superficial do que o são hoje em dia, de tal forma que os leitores sedentos de sangue têm de comprar revistas especializadas com nomes como Crime de Verdade, da mesma maneira que as coscuvilhices sobre personalidades da televisão costumavam ser relegadas para aquelas revistas ilustradas baratas que se encontravam nos cabeleireiros.

Hoje, contudo, depois de dar notícias importantes sobre guerras, massacres, ataques terroristas e quejandos e depois de algumas indiscrições prudentes sobre assuntos políticos correntes - mas sem assustar demasiado os espectadores -, os nossos programas noticiosos da televisão lançam-se em séries de matri-fratri-uxori-patri-infanticídios, assaltos, roubos à mão armada, tiroteios e - para que os espectadores não falhem nada - todos os dias parece que os céus se abriram sobre a nossa região e chove como nunca choveu antes, de tal forma que em comparação o dilúvio bíblico foi quase tão dramático como um cano de água roto.

E é aqui que achamos que há qualquer coisa por detrás disto, ou mesmo no centro disto. Dado que os directores do Canal Niagara não se querem comprometer com histórias económica e politicamente arriscadas, seguiram o caminho do Crime de Verdade. Uma boa sequência de cabeças decapitadas mantém o povo entretido e sem ideias perigosas na cabeça.

Exclusivo DN/The New York Times Syndicate
Umberto Eco
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para reflexão…

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