sábado, 30 de agosto de 2014

SINAIS DE FRAGILIDADE

As dúvidas que se vêem avolumando sobre as orientações traçadas pela Comissão Europeia, quando são divulgadas notícias de que a «Economia da zona euro reforça sinais de fragilidade» ou que a «Confiança dos empresários alemães afunda pelo quarto mês consecutivo», parecem começar a criar as primeiras clivagens no panorama político europeu. É assim que enquanto o «Ministro das Finanças austríaco demite-se por oposição a aumento de impostos» sobre os mais ricos, para os lados de Paris uma «Rebelião da esquerda francesa fragiliza Hollande e Valls», levando a que o primeiro-ministro Manuel «Valls saneia oposição interna e afunda-se com Hollande».

Com o fraco desempenho da economia francesa a pesar na opinião pública, a crise resolveu-se em poucas horas e o presidente François «Hollande refaz governo e coloca ex-banqueiro na Economia», no que parece um acentuar da viragem política em direcção a Berlim, confirmada pela afirmação de Valls de que a «UE precisa "mais do que nunca" de aliança Paris-Berlim»; porém, o novo gabinete terá ainda de sobreviver ao escrutínio dum parlamento onde abundam os críticos às políticas de austeridade.


Quando parecem acentuar-se as divergências entre defensores e críticos da austeridade eis que, na passada semana durante uma reunião em Washington, o presidente do BCE, Mario «Draghi defende menos austeridade na Zona Euro», posição que em certa medida secunda idênticos apelos de responsáveis do FMI, como a directora Christine Lagarde, que defende aumento de salários na Alemanha para impulsionar retoma na Europa.

As reacções não se fizeram esperar e enquanto «França e Itália apoiam discurso de Draghi. Alemanha desvaloriza» e pela voz do seu ministro das finanças chega mesmo a assegurar que Mario Draghi foi "mal interpretado"; até a inefável “Senhora Swap” achou por bem contribuir para o tema e aconselha cautela a interpretar Draghi.

É claro que a afirmação do presidente do BCE em nada altera a situação (permitindo mesmo a dúvida de saber se «Draghi pediu mesmo o fim da austeridade na zona euro?», conhecida que é a sua aproximação ao duo Merkel-Schauble e às teses monetaristas) que vive a Zona Euro, onde a imposição do modelo da “austeridade-expansionista”, por um directório enfeudado às teses monetaristas e neoliberais, continua a adiar a recuperação económica, a ponto de já se assegurar que «2014 é mais um ano perdido com três maiores economias em crise». A cegueira alemã (que alguns analistas explicam pelo trauma da recessão que assolou o país na década de 1930, ou como prefere Viriato Soromenho Marques no seu excelente livro «Portugal na queda da Europa», para quem a Alemanha, tolhida nos seus medos, manda mas não lidera), expressa na actual «…combinação europeia de políticas económicas está errada e os resultados começam a estar à vista. A ameaça de deflação, a mais grave das crises, reforça-se e começamos a assistir à formação de uma bolha financeira. Infelizmente para todos nós, a correcção das políticas parece impossível. Está a esbarrar com as diferenças de valores entre os países, um fosso que se vai cavando e pode acabar com a mais importante construção política do último século.» («A Armadilha moral do euro» de Helena Garrido in NEGÓCIOS).

Certo é que os dados económicos mais recentes mostram que a «Economia alemã recua 0,2% no 2.º trimestre», que o «Desemprego alemão sobe contra as previsões» (resultado que se tenta mascarar sob o argumento da responsabilização das sanções económicas russas) e que até já há quem, reconhecendo velhos sinais no sector imobiliário, alerte que «A Suécia pode ser o país que se segue a entrar em crise». Enquanto isto e contrariando o dogma ordoliberal (designação atribuída à escola alemã de pensamento económico neoliberal, que terá tido em Alexander Rustow o seu expoente máximo) da pureza dos mercados e do primado das exportações, eis que os dados mais recentes das economias ibéricas revelam que o «Consumo impulsiona PIB espanhol no segundo trimestre» enquanto em Portugal «Consumo das famílias salva metas orçamentais», confirmando à saciedade o erro fundamental das políticas de austeridades aplicadas sob a influência alemã numa Europa que continua sem se aproximar sequer da prometida retoma económica.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

RECTIFICANDO

No mesmo dia em que ficámos a saber que o «Governo aprova segundo orçamento rectificativo do ano», depois de semanas a ouvir a justificativa ladainha que acusava o Tribunal Constitucional e a reposição salarial por este imposta, eis que afinal se descobre que a «Despesa sem juros e salários subiu 618 milhões em vez de cair».

Esta conclusão revela dois pormenores nada displicentes:
  1. o governo do rigor e da austeridade é tão incapaz quanto os antecessores de reduzir a despesa pública;
  2. o empolgamento pela austeridade reduz-se à sua aplicação àqueles que pouco ou nada podem fazer para lhe escapar;
que me levam a concluir que a equipa liderada por Passos Coelho, onde pontifica a inefável “Senhora Swap”, não enferma apenas de incompetência técnica (como oportunamente procurei demonstrar no “post” « …ERROS CRASSOS» o OE 2014 está ferido dum erro técnico insanável) nem se caracteriza pela análise dogmática que tudo resume ao desgastado estribilho do “andámos a viver acima das nossas possibilidades”, antes pela actuação mistificadora e tanto ou mais despesista que as dos seus antecessores.


Enquanto a versão do governo assegura que o Orçamento «Rectificativo garante défice de 4% sem aumentar impostos», resta esperarmos até à sua apresentação, na próxima semana, para então conhecermos toda a extensão dos cortes que há semelhança dos anteriores voltarão a atingir “as gorduras” do Estado: NÓS!

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

MAIS FANATISMO E INTOLERÂNCIA

Enquanto a notícia do regresso aos bombardeamentos na Faixa de Gaza e ao espectáculo da morte diária da população palestiniana sem qualquer hipótese de fuga dum território cercado foi recebido em Washington com naturalidade, a divulgação do vídeo da decapitação dum jornalista norte-americano capturado na Síria mereceu a mais veemente condenação, com o presidente Obama a proferir declarações que o “Estado Islâmico não tem lugar no século XXI” e que “é um cancro que deve ser extraído”.

Ao contrário do que sugere administração Obama a barbárie subjacente aos dois não pode nem deve ser escamoteada. Envolva um ou centenas de vítimas a violência gratuita devia há muito encontrar-se erradicada, mas tal como uma doença que julgávamos extinta, também o fanatismo e a intolerância parecem regressados para nos atormentarem e usados para esconderem apenas uma realidade: no Médio-Oriente ou no Leste europeu o que se pretende é apenas o controlo das reservas de hidrocarbonetos ou das vias para o seu transporte.

Clama-se hoje a partir de Washington contra o ISIS (o movimento jihadista que visa a instalação dum califado muçulmano entre a Síria e o Iraque) enquanto se procura fazer esquecer o apoio financeiro e material a esse mesmo movimento quando serviu para tentar o derrube do regime sírio e para assegurar a deposição do ex-líder líbio, Muammar al-Kadhafi. Tal como aconteceu com o apoio fornecido a Bin Laden no combate à presença soviética no Afeganistão e no pretexto que os atentados do 11 de Setembro forneceram para justificar as invasões do mesmo Afeganistão e do Iraque, voltamos agora a assistir à mesma sucessão e tipo de eventos, pelo que não será de estranhar se dentro em pouco ocorrer nova movimentação militar na região.


Apesar de horrendo e condenável, o acto agora perpetrado pelo ISIS apresenta-se carregado dum simbolismo idêntico ao que ditou a escolha do alvo do 11 de Setembro e constitui, enquanto acto de propaganda, um marco importante que a reacção ocidental apenas ajuda a alimentar.

Responder ao fanatismo “takfir” (expressão que significa "aquele que renega a Deus" e que identifica uma interpretação mais radical do islamismo, segundo a qual é legítimo matar todos aqueles que recusem a conversão) dizendo do assassinato do jornalista que este morreu em martírio pela liberdade equivale a usar argumentos quase tão radicais e primários quanto os que se pretendem combater, para mais quando dentro da própria comunidade islâmica se fizeram ouvir vozes, como a do mufti egípcio Shawki Allam (ler aqui no Huffington Post) ou a do sheik saudita Abdul-Aziz al-Sheik (ler aqui no Yahoo), condenando aquele acto e classificando o ISIS como um perigo para o Islão e para os muçulmanos. A opção por uma resposta musculada – seja mediante o envio de forças militares para a região seja mediante o simples recurso a meios aéreos – será uma repetição da estratégia de fragmentação da zona, agravada com as administrações de Bush pai e Bush filho, e visando o controlo das reservas de hidrocarbonetos e uma resposta ao recente anúncio de que os «BRICS criam banco para rivalizar com FMI e Banco Mundial», colocando em risco o papel hegemónico do dólar norte-americano e fazendo perigar a continuação do seu uso exclusivo como meio de pagamento do petróleo e dos seus derivados.

O regresso militar à Mesopotâmia, implícito em declarações do Chefe de Estado-Maior das forças norte-americanas quando afirmou que «"É preciso combater o Estado Islâmico também na Síria"», a par com a continuação dos raides israelitas sobre a Faixa de Gaza abre todas as perspectivas para a manutenção da instabilidade numa região fulcral para as principais potências.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

CAPTURA DO QUOTIDIANO

Talvez ninguém esperasse que dez dias passados sobre um banal incidente (infelizmente a realidade norte-americana há muito nos habituou à rotina das mortes violentas, até às mais inexplicáveis, como a dum jovem de 16 anos e desarmado, que interpelado por perturbar o trânsito acaba mortalmente atingido por seis disparos) no subúrbio de Ferguson as populações locais continuassem a sair à rua reclamando justiça.

Múltiplas serão as razões para que, após as primeiras noites de motins, Ferguson tenha saltado para as primeiras páginas dos jornais acompanhando os habituais cabeçalhos de violência e pilhagens; uma serão as taxas judiciais que muitos residentes estão obrigados a pagar, a maioria relacionadas com pequenas infracções mas que depressa entram numa escalada preocupante, agora que o processo em curso de privatização da Justiça abriu à iniciativa privada os procedimentos de cobrança, outra e uma das principais, será o clima de desconfiança perante uma força policial maioritariamente branca, situação a que as autoridades federais do Missouri tentaram responder nomeando um natural do lugar e membro da comunidade para chefiar a polícia, o capitão Ronald Johnson. Esta decisão começou por ser bem recebida numa comunidade onde as tensões raciais permanecem sempre latentes, dando lugar a uma acalmia nos ânimos.


 Mas, pressionada a esclarecer as condições da morte do jovem Michael e a identificar o autor dos disparos, a polícia divulgou a informação de que o jovem seria suspeito de envolvimento num assalto, no que a comunidade entendeu como uma tentativa para denegrir o falecido e desculpabilizar o agente policial, originando novo recrudescimento da violência. Em reacção, o governador instaurou o recolher obrigatório e chamou a Guarda Nacional para auxiliar a polícia a conter os manifestantes.

Esta óbvia musculação dum aparelho policial que nos últimos tempos se tem visto “fortalecido” com veículos blindados de origem militar, além de não contribuir para o apaziguamento dos ânimos trouxe para a ordem do dia a muito importante questão do recurso a tácticas e equipamento (armamento e veículos) de evidente uso militar...


…que não tem escapado a comentadores, caricaturistas e, claro, às populações maioritariamente negras, mesmo quando são realizados esforços no sentido de disfarçar o indisfarçável e reconquistar a confiança perdida.


O processo de militarização das forças policiais norte-americanas não constituiu novidade, nem ocorre em resposta a crises pontuais como a que agora se vive nos arredores de St. Louis, antes integra uma opção bem definida em direcção a um estado militarizado; basta ver o armamento normalmente utilizado (incluindo o recurso a armas automáticas) a que acresce agora a nova tendência para dotar as forças policiais de viaturas do tipo MRAP (Mine-Resistant Ambush Protected, são viaturas blindadas para transporte de combatentes usadas pelo exército para resistirem à deflagração de engenhos explosivos improvisados e a ataques ou emboscadas, popularizada no Brasil sob o nome de Caveirão e que no caso português são as famigeradas Pandur, conhecidas na terminologia portuguesa por VBR - Viatura Blindada de Rodas) mais adequadas a cenários de guerra que à dissuasão de manifestantes.

A questão da crescente militarização das forças policiais não se resume ao território norte-americano nem é explicado pela simples apetência dos seus naturais pelo uso generalizado de armas (incluindo armas automáticas do tipo militar); a comprová-lo vejam-se as imagens próprias de qualquer reunião política internacional para detectarmos a presença generalizada de polícias fortemente armados, a distribuição estratégica de atiradores especiais (vulgo “snipers”) e o uso de helicópteros e viaturas blindadas, como se de um cenário de guerra se tratasse e numa evidente captura do quotidiano dos cidadãos que despreocupadamente julgam viver em regimes democráticos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

LÁGRIMAS PELOS ABUTRES

Embora antigo, o aforismo “cada cabeça, sua sentença”, conheceu nova dimensão com a chegada duma época onde o manancial informativo e opinativo já vulgarizou a ideia que para cada acontecimento existem, no mínimo, duas opiniões antagónicas. Quando bem fundamentadas e explicadas de forma clarificadora podem até servir para que cada leitor delas extraia a sua própria conclusão; pior é quando os polemistas se socorrem de cambiantes ou meras meias informações com o exclusivo objectivo de defenderem o seu ponto de vista. Aí a informação vira desinformação ou pura e simples manipulação dos mais incautos.

Vem este intróito a propósito de mais uma opinião sobre o diferendo que divide a Argentina e alguns dos seus credores, que fruto da interpretação dum juiz norte-americano suspendeu o pagamento de juros a todos. Segundo o ponto de vista do Prof. César das Neves (ver o artigo «Maléfica e os abutres») tudo se resume ao «…enredo habitual: abuso típico de ricaços americanos sobre pobres contribuintes argentinos».


Talvez na tentativa de simplificar a complexidade do evento, César das Neves recorre à mais recente ficção hollywoodesca (citando o argumento do filme Maleficent de Robert Stromberg, que consiste numa recriação modernizada do clássico da literatura infantil A Bela Adormecida, de Charles Perrault) que acrescenta de pormenores; é certo que refere correctamente que «…o tema do julgamento de 2014 são os títulos repudiados em 2001...» quando «…a Argentina impôs cortes de 65% aos credores no anterior incumprimento…» e vê agora o resultado da actuação de «…[f]undos especulativos, que tinham comprado a desconto os títulos a credores espavoridos…» que «…recorreram e o tribunal americano aplicou a letra do contrato. Se a Argentina paga a uns, tem de pagar a todos nas respectivas condições: o país só pode reembolsar os 35% aos credores que aceitaram o corte se entregar 100% aos fundos».

Ficou, porém, por referir o facto dos “fundos abutres” representarem cerca de 2% da dívida reestruturada e desta ter sido adquirida aos tais “credores espavoridos” por um vigésimo ou um décimo do seu valor e da douta sentença do meritíssimo Thomas Griesa não revelar o mínimo prurido em prejudicar a larga maioria dos credores (cerca de 82%) que aceitou os termos da reestruturação para garantir uma expectativa de chorudos proventos aos todo-poderosos fundos NML e AURELIUS.

Claro que na versão história contada às criancinhas, actualizada e modernizada ao gosto de César das Neves (que já mereceu uma réplica excelente e perfeitamente enquadrada no estilo fábula, no artigo «“Era uma vez um banqueiro muito bonzinho…”» que Manuel Loff assina no PUBLICO), tudo se resume a um embate entre vilões (é sempre útil vilanizar o adversário, tanto quanto é sempre uma louvável atitude cristã não poupar demasiado os usurários), esquecendo que a “vilã” Argentina não é a presidente Cristina Kirchner antes os mais de 40 milhões de cidadãos do país.

Contrastando com esta opinião, veio recentemente a público um artigo de Kenneth Rogoff (a versão traduzida, «Uma lágrima pela Argentina», pode ser lida no NEGÓCIOS) onde este defende uma nova abordagem para os mecanismos de reestruturação das dívidas soberanas porque considera que a referida decisão judicial «…favorece os credores intransigentes no caso das emissões de obrigações regidas pela legislação dos Estados Unidos» e ainda que «…as novas interpretações jurídicas que dificultam ainda mais as reestruturações e as futuras reprogramações da dívida não são um bom augúrio para a estabilidade financeira mundial», posição tanto mais interessante quanto Rogoff, co-autor com Carmen Reinhart do célebre estudo que concluiu que um endividamento público superior a 90% do PIB é prejudicial ao crescimento económico e que já foi denunciado pela sua inexactidão técnica (ver o “post«ACONTECE…»), está longe de poder ser integrado noutra corrente de pensamento económico que não a monetarista e neoliberal, a mesma que acolhe no seu seio o Prof. César das Neves.

É assim… na ânsia de sobrepor o interesse individual ao interesse geral e de querer justificar o tantas vezes injustificável (como seja a permanente opção pelo branqueamento das responsabilidades do sistema financeiro), há sempre quem esqueça que a dívida é apenas uma armadilha onde se procura capturar os incautos e até se prontifique a apoiar os “abutres”.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

ÉBOLA

Ao contrário do que escrevi em 2009 no “post” «PANDEMIA – MITO OU REALIDADE?» sobre a então muito falada epidemia da Gripe A, mais tarde confirmada nas críticas feitas à actuação da OMS (ver o “post” «AVOLUMAM-SE AS DÚVIDAS»), a situação sanitária que se atravessa na Africa Ocidental, onde grassa uma epidemia do vírus Ébola, justificará a decisão onde a «OMS declara surto de Ébola uma emergência internacional de saúde», tanto mais que segundo a mesma OMS este surto do «Ébola já matou mais de mil pessoas».

Embora as primeiras infecções conhecidas datem da década de 70 do século passado, quando atingiu o Congo, Gabão, Uganda e Sudão, continuam por desenvolver qualquer tipo de vacina ou tratamento específico. O vírus (que se pensa encontrar o seu hospedeiro na população de morcegos, pode ser transmitido a animais e pessoas, não sendo por isso estranho o facto de regularmente se repetirem este tipo de surtos) cujos sintomas iniciais são semelhantes aos da gripe (febre, dores de cabeça, fadiga, dores nas articulações e músculos) incluem vómitos, diarreia e anorexia e podem ser semelhantes aos da malária, dengue ou outras doenças tropicais, complicando uma detecção precoce.


A novidade é que a região agora mais atingida se situa na África Ocidental (Guiné Conacri, Serra Leoa, Libéria e ao que tudo indica espalhando-se para a Nigéria, que com os seus cerca de 175 milhões de habitantes é o mais populoso dos países africanos), onde encontrou condições de propagação idênticas à região da África Oriental onde era mais frequente: populações com reduzidas condições de saneamento e higiene. Alertas há algum tempo difundidos só agora começaram a conhecer eco na imprensa ocidental com as notícias de repatriamento de alguns ocidentais infectados, todos especialistas ligados ao tratamento da doença.

O surto actualmente em curso já motivou, além da reacção da OMS, notícias como a de que a «Cura para o Ébola pode estar nas folhas da planta do tabaco», embora o principal destaque talvez devesse ser feito aos constantes apelos de ONG’s (como os Médicos Sem Fronteiras) para o reforço dos meios de combate (humanos e materiais) duma infecção que apresenta um grau de infecciosidade equivalente à da gripe, mas inferior à do sarampo, e que alastra principalmente devido às baixas condições higieno-sanitárias de que dispõem as populações locais, aos seus fracos rendimentos e a práticas culturais e religiosas desadequadas para esta realidade; não se estranhe a associação do surto à situação de pobreza generalizada das regiões por onde grassa quando se constata que «“É difícil combater o ébola num país onde umas luvas custam mais do que se ganha num dia”».

À semelhança doutras epidemias, como o dengue, e quando se diz ser o «Ébola, um vírus que se alimenta da miséria» mais fácil se torna entender porque ao longo de décadas pouco, ou nada, se tem investido na prevenção e tratamento deste flagelo que além de assolar regiões pobres se propaga no coração dum continente onde continuam a primar cleptocracias completamente alheias a conceitos como o da protecção e bem-estar das populações.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

GAZA OU A REVISITAÇÃO DO MITO DO DAVID

Decorrido mais de um mês desde o início da mais recente investida israelita sobre a Faixa de Gaza e quando parece estabelecido mais um interregno proporcionador de condições para o retomar dum confronto cada vez mais longe do seu epílogo, será talvez a oportunidade de voltar à questão do conflito israelo-árabe e à versão modernizada do David contra Golias, onde o moderno David faz evidente figura de gigante todo-poderoso.


Esqueçamos a versão oficializada nos livros sagrados; aquilo que hoje vemos desenrolar-se diante dos nossos olhos, quando pela n-enésima vez o todo-poderoso exército israelita invade a Faixa de Gaza (enclave palestiniano onde vivem mais de 1,8 milhões de pessoas nuns estreitos 365 km2, ou seja quase 7 vezes a população da Ilha da Madeira em cerca de metade daquele espaço) dando início a mais um processo de destruição das parcas infraestruturas que existiam e as significativas baixas entre a população civil, tem muito pouco a ver com a sistemática invocação da necessidade de protecção.

Isto mesmo parece ressaltar das cada vez mais veementes condenações proferidas pela comunidade internacional, com especial destaque para a ONU (a instância internacional que com o beneplácito norte-americano, Israel vem desrespeitando à décadas) que desta vez e depois de repetidos bombardeamentos a escolas e outras instalações, a «ONU pede que Israel assuma responsabilidade por "crimes de guerra" em Gaza», acusação posteriormente suavizada com a generalização de que «Israel e Hamas estão a cometer crimes de guerra»; a condenação das duas partes isto tinha acontecido em 2008, durante a Operação “Chumbo Fundido”, mas não há registo de declaração como a proferida pelo secretário-geral da ONU que, possivelmente num momento de fúria mal contida, afirmou peremptoriamente: «É "crime", diz Ki-moon depois de Israel atingir a sétima escola em Gaza» .

Ao longo das semanas muitas foram as vozes que se fizeram ouvir em apelos à contenção e ao fim dos bombardeamentos, justificados na perspectiva israelita pelo rapto e posterior assassinato de 3 jovens israelitas, a par com o disparo de “rockets” artesanais a partir da Faixa de Gaza.

Raramente referido foi o facto daquele incidente ter ocorrido numa região da Cisjordânia, território palestiniano distinto da Faixa de Gaza e sob gestão doutra força política (desde a eleições de 2006 que a Cisjordânia é governada pela Fatah e a Faixa de Gaza pelo Hamas) e da sanha vingativa israelita ter recaído sobre a Faixa de Gaza, com um resultado que de momento se cifra em cerca de 1900 palestinianos mortos (maioritariamente civis não combatentes) e mais de 60 israelitas (quase exclusivamente militares), talvez por este território ser governado pelo Hamas (movimento islâmico próximo da Irmandade Muçulmana) ou pela razão, regularmente esquecida na imprensa ocidental, da existência de jazidas de gás natural na plataforma marítima frontal ao território (uma excepção foi este artigo de opinião de Maria João Tomás).

Este interesse (ao qual já me tinha referido em 2008, no “post” «A FUGA DE GAZA») a par do interesse estratégico na instalação dum “pipeline” submarino entre Ceyhan (Turquia) e Ashkelon (Israel), no Mediterrâneo, com ligação ao Mar Vermelho na localidade israelita de Eilat, infraestrutura que ligando ao oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan, contribuirá para reduzir a importância do Irão e do Iraque como fornecedores de hidrocarbonetos à Índia e à China (ver o “post” «A REALIDADE ALÉM DAQUILO QUE VEMOS», não foi seguramente esquecido em mais este ataque a Gaza; a cimentar esta suspeição surgiu agora a notícia que o «Governo acusa exército israelita de os querer demover de ocupar Gaza», no que configura a aproximação duma nova escalada no conflito israelo-palestiniano.

Outro dado que também contribui para a formulação de fracas expectativas de pacificação foi o aparente sucesso palestiniano com a estratégia de lançamento simultâneo de grande número de “rockets”, na tentativa de ultrapassar o sistema antimíssil “Iron Dome” de Israel, que deixou «O aeroporto de Telavive na mira dos rockets do Hamas» e originou uma decisão inédita quando várias «Companhias aéreas suspendem voos para Telavive»; depois duma primeira manobra da mais elementar contra-informação, quando foi noticiado que «Escudo antimísseis Cúpula de Ferro infiltrado pelo exército chinês», o “amigo americano” acabou por reconhecer a necessidade de actualizar o sistema e de Washington lá chegou a informação que a administração «Obama dá 168 milhões para escudo antimíssil» que deverá proteger Israel de futuros ataques.

Enquanto isto e quando Israel parece ter dado como concluído o processo de destruição dos túneis, afastada para já a hipótese de reocupação militar da Faixa de Gaza (julgada demasiado cara dos pontos de vista militar, diplomático e financeiro), com a permanência do bloqueio imposto ao território continua adiada qualquer hipotética normalização (especialmente quando do lado israelita surgem hipócritas declarações como a do primeiro-ministro «Netanyahu diz querer ajudar povo de Gaza contra "tirania do Hamas"») no quotidiano duma população que regularmente se vê dizimada por um vizinho poderoso que, nas palavras de Maria João Tomás. «…instigou várias vezes os palestinianos a revoltar-se, mas esquece-se de que, enquanto continuar a construir colonatos e a ameaçar a independência da Faixa de Gaza, estas gentes terão sempre uma dívida de gratidão para com o Hamas, mesmo que obriguem as suas filhas de 9 anos a casar com homens 40 anos mais velhos, e as ponham a desfilar pelas ruas com os seus velhos maridos, para que não haja dúvida de que é isto que espera a maioria das meninas da Faixa de Gaza. Os dirigentes do Hamas são também acusados de enriquecer com os donativos enviados para ajudar os palestinianos, deixando mais de 38% da população num estado de quase miséria e sem instrução. Apesar de tudo, a população sujeita-se a todas as suas exigências, porque eles são o garante da sua independência e da pouca ajuda social e económica que recebem» (in «A guerra em Gaza entre o Hamas e Israel»), que em última instância até explica porque é que o «Hamas impõe condições para trégua e ameaça voltar às armas».

Com uma comunidade internacional cada vez mais apática, uma Liga Árabe fraccionada pelo antagonismo entre sunitas e xiitas e uma Autoridade Palestiniana (entidade liderada pela Fatah e que gere uma Cisjordânia quase tão asfixiada como a Faixa de Gaza) ineficaz, o problema eterniza-se, os ódios acirram-se e os interesses que habitualmente lucram com os conflitos continuam a facturar com a miséria palestiniana.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

BES BOM-BES MAU

Depois de ter apresentado um volume recorde de prejuízos (3,57 mil milhões de euros), de ter visto a cotação em bolsa cair para valores históricos («BES fixa novo mínimo nos 10 cêntimos e já vale menos de 675 milhões») e quando era cada dez mais evidente que o «Mercado antecipa novos pedidos de protecção de falência no GES», a autoridade reguladora (CNVM) lá se decidiu pela suspensão da negociação daqueles títulos e o Banco de Portugal, depois de ter repetido até à exaustão que «“A situação de solvabilidade do BES é sólida”», lá acabou por anunciar o inevitável

Afastado o estigma da nacionalização mediante uma operação fantasma onde um «"Novo" BES recebe ajuda de 4,9 mil milhões de euros através do fundo de resolução» enquanto os accionistas e os activos tóxicos (leia-se os créditos ao GES) são separados para um “velho” BES que entrará em processo de falência. A “magia” financeira é realizada mediante recurso ao Fundo de Resolução (entidade participada por todos os bancos nacionais, que «vão fazer contribuição especial de 133 milhões para Fundo de Resolução») e reforçada com um financiamento público da ordem dos 4,4 mil milhões de euros, não sendo pois descabido afirmar que o «Fundo de Resolução é da banca mas vai usar dinheiro do Estado».

A solução da divisão entre “banco-bom” e “banco-mau” insere-se no modelo definido pela UE para enfrentar a crise financeira cipriota, mas na forma como foi anunciada por Carlos Costa deixa margem a justas e fundadas dúvidas. Se por um lado o isolamento dos activos tóxicos numa entidade da exclusiva responsabilidade dos accionistas do BES parece garantir que os prejuízos ficarão com quem avalizou a anterior equipa de gestão, por outro a pronta disponibilização de 4,4 mil milhões de euros de financiamento público pressagia dias cinzentos para a generalidade dos contribuintes, a menos que a tríade Carlos Costa (governador do Banco de Portugal, que deu a cara pela solução), Maria Luís Albuquerque (ministra das Finanças que teve de dar sua anuência à solução) e Vítor Bento (CEO do novo banco) consiga assegurar a venda do novo banco por um valor superior ao do crédito.

Dúvidas (e dívidas) são o que não tem faltado em todo este processo, quando continua longe de esclarecido porque foi permitido à família Espírito Santo continuar à frente da direcção do BES depois que foram conhecidas as primeiras irregularidades, porque se demorou tanto tempo a decidir a intervenção do Banco de Portugal, ou até se o apuramento das imparidades resultantes do cruzamento de empréstimos entre empresas do GES estará correcto e concluído. Igualmente por esclarecer e passível de óbvia suspeição de “inside trading” foi a meteórica passagem da Goldman Sachs pelo capital do BES, que levou o DINHEIRO VIVO a publicar que «Quem sobreviveu melhor ao naufrágio do BES? O Goldman Sachs», que poucos dias antes da suspensão da negociação das acções e da intervenção do Banco de Portugal vendeu qualquer coisa como 4 milhões de acções e que agora a notícia de que a «CMVM vai investigar negociação de acções do BES na sessão de sexta» mais parece uma operação de cosmética para disfarçar o indisfarçável.

Questão que também ficou esquecida no anúncio do Banco de Portugal são as condições de remuneração do empréstimo dos 4,4 mil milhões, única forma de sabermos se aquela taxa cobre ao menos o encargo que está a ser pago à “troika”, questão que seria respondida mais tarde pela ministra das Finanças quando afirmou que o «Estado cobra juros de 2,95% no empréstimo ao Novo Banco», valor que ficará, segundo a mesma fonte, 15 pontos base acima da taxa cobrada pela “troika, porque o risco é muito reduzido.

Argumento um pouco menos aleivoso que o invocado quando o «Banco de Portugal garante que contribuintes não perderão dinheiro no BES», que o mesmo é dizer que o “BES-bom” será vendido a prazo por um valor suficiente para a recuperação do financiamento; mas será? É que a menos de 48 horas do anúncio já o NEGÓCIOS se interroga (e bem) se o «Novo Banco vale 4,4 mil milhões de euros?» A pseudo-engenharia financeira montada pelo Banco de Portugal e pelo Ministério das Finanças apresenta falhas estruturais insanáveis que começam no primeiro momento da separação dos activos tóxicos (ninguém pode assegurar que estes foram integralmente transferidos para o “banco-mau”), continuam numa solução que inclui um elevadíssimo financiamento público e no pressuposto de que o seu reembolso será assegurado pela alienação do “banco-bom”. Para tranquilizar os espíritos mais inquisitivos (ou simplesmente mais informados), os responsáveis pela solução logo foram adiantando que a segurança dos contribuintes era total, pois se o valor de venda não chegar para o reembolso a diferença será assegurada pelos titulares do Fundo de Resolução (leia-se os bancos nacionais), que não dispondo de meios próprios para o efeito, recorrerão, como é óbvio, a quem terá que os resgatar para evitar o famigerado risco sistémico: o Estado.

Talvez por sobejo conhecimento de toda esta trapalhada e do medonho risco a que está a submeter o País, embalado no doce remanso dos seus congéneres europeus e mundiais que insistem em nada alterar na regulamentação dum sector financeiro que se revela cada vez mais o cerne de todos os problemas, o «Governo tenta passar pelos pingos da chuva no caso do BES» e começou por enviar para os holofotes da TV o governador do Banco de Portugal, figura de última linha na hierarquia da responsabilidade política, enquanto o primeiro-ministro permanece desaparecido para banhos nos algarves e o pusilâmine presidente da República se mantém mudo e quedo no seu cantinho.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

GRIEFAULT

Com a aproximação do dia 30 de Julho era esperada a notícia de que a «Argentina entrou em novo incumprimento», especialmente depois de conhecida a sentença onde um «Juiz americano proíbe Argentina de pagar dívida reestruturada».

Para quem não tenha acompanhado de perto o assunto, tudo começou quando um conjunto de fundos de risco (conhecidos como fundos abutre, por usarem recorrentemente a estratégia de adquirir dívida pública de Estados com graves problemas económicos, ou dívidas de empresas à beira da falência, na expectativa de conseguirem o reembolso pelo valor nominal), capitaneados pelo AURELIUS e o NML de Paul Singer, que comprara a preço de saldo dívida argentina vendida antes da reestruturação acordada em 2010, conseguiu que um tribunal norte-americano, presidido pelo juiz Thomas Griesa, proibisse o pagamento das obrigações reestruturadas, cujo vencimento ocorreu em 26 de Junho, sob o argumento que a Argentina tem que cumprir os termos iniciais do empréstimo.


Esta decisão, proferida no final de dez anos de litigância jurídica em benefício de 8% dos credores (pois é esse o montante da dívida não reestruturada) pelo Tribunal de Nova Iorque, ao abrigo do qual os contractos foram redigidos, impediu o pagamento a todos os restantes, incluindo os que foram denominados em euros e ienes.

A verdadeira dimensão desta decisão deverá ser avaliada com o conhecimento de que o governo argentino provisionara atempadamente a conta num banco nova-iorquino para a liquidação programada, mas que fracassadas as negociações impostas pelo tribunal a «Argentina falha acordo com fundos e entra em 'default'», situação que dificilmente servirá os interesses de credores e devedores, agravada ainda por uma decisão judicial que tornará mais difíceis futuras reestruturações (quem as aceitará sabendo que uma pequena minoria poderá inviabilizar todo o processo) ou fazer regressar cenários de sobreendividamento que pretenderam resolver.

Mais que esmiuçar aqui a estratégia de quem adquiriu títulos de dívida por valores inferiores a ¼ do seu valor e consegue agora ver aceite uma cláusula “pari passu” (expressão latina que significa "a par" e que em termos jurídicos significa igualdade de condições) que acaba por permitir a uma minoria de credores opor-se à maioria que aceitou a reestruturação, importa compreender que a negociação exigida pelo tribunal estava, desde o início, condenada ao insucesso; fosse pela defesa dos princípios que nortearam a reestruturação (a dívida argentina era demasiado elevada e impossível de pagar sem colocar em causa a economia nacional), fosse porque a popularidade deste conflito poderá proporcionar ganhos eleitorais nas eleições que se avizinham.

Esta situação de incumprimento forçado, já apelidada de “Griefault” (condensação do nome do juiz com a situação de “default”), merece atenção e acompanhamento para que dela se possam extrair as necessárias ilações, sendo que uma é desde já possível: não abdicar da soberania nacional num processo de reestruturação de dívida e, em especial não facilitar a litigância nos tribunais de origem dos credores.