quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

AS BOLSAS MUNDIAIS, OS “LULUS” E AS PIZZAS

Enquanto as primeiras notícias de hoje dão conta da recuperação das bolsas chinesas e tudo parece bem encaminhado para travar a onda de terror que ontem mesmo ameaçava invadir as economias ocidentais (leia-se as bolsas de valores), os investidores americanos podem respirar de alívio por mais algum tempo.

Para esta reduzidíssima franja da população mundial podem parecer absolutamente normais notícias como a que divulgava ontem o COURRIER INTERNATIONAL, segundo a qual os americanos gastaram em 2006 mais de 39 mil milhões de dólares com os seus animais domésticos, dos quais 750 milhões só em vestuário; o mesmo não dirão todos os outros...

A enormidade destes números ficará mais evidente se recordarmos que 2/3 dos 180 países cujo PIB em 2006 foi analisado pelo FMI se quedaram por valores inferiores aos 39 mil milhões de dólares.

Para quem ainda não ache estes números demasiado obscenos, basta recordar que no interior dos EUA cerca de 37 milhões (12,3 % da população norte-americana) vivem abaixo do limiar de pobreza, quase metade dos quais (cerca de 16 milhões) vivem em situação de extrema pobreza (rendimento inferior a 2.500 dólares/ano).

Mas o mais curioso é que o país mais poderoso do mundo não apresenta apenas este tipo de assimetrias. Na mesma oportunidade em que surgia a notícia referente ao florescente mercado da alta-costura para os animais de estimação, também era noticiado o aparecimento de um novo mercado nos EUA onde as transacções passaram a ser denominadas em… pesos mexicanos!

É verdade, enquanto a sua administração procura formas de conter a avalanche de emigrantes mexicanos, um empresário do sector da restauração (na vertente do “take away”) decidiu lançar uma nova vertente no seu negócio, passando a aceitar pagamentos em pesos mexicanos. Este tipo de prática (uso de moeda estrangeira em pagamentos domésticos) é corrente em muitas zonas fronteiriças, mas o insólito desta é que resultou do facto do proprietário das pizzarias se ter apercebido da oportunidade de negócio resultante do grande número de clientes que evidenciavam grandes dificuldades de conversação em inglês e de a ter acompanhado da contratação de empregados bilingues, pouco se importando sobre a situação de ilegalidade em que os seus clientes se possam encontrar no território americano.

Aliás, a fazer fé no New York Times a lista de negócios que se desenvolvem na América especificamente orientados para a minoria mexicana já inclui um banco que disponibiliza cartões de crédito aos emigrantes clandestinos.

Quererá isto significar algo parecido com o princípio de «se não os podes vencer junta a eles», ou pelo contrário esta aparente facilitismo acabará por ser explorado pelos que se opõem à abertura das fronteiras (e da economia) às populações de origem “chicana”, passando a constituir mais um argumento e uma artimanha no combate contra a emigração?

domingo, 25 de fevereiro de 2007

AINDA HAVERÁ ESPAÇO PARA O DIÁLOGO?

Deixando de lado o folclore político nacional, que nos últimos dias conheceu algumas novidades como a auto-demissão de Alberto João Jardim e os sucessivos e aparentemente infindáveis “escândalos” na autarquia de Lisboa, uma das notícias de maior destaque nos últimos dias foi a divulgação dos planos militares para um ataque americano ao Irão.

Conquanto não constituísse grande novidade para muita gente, ainda assim houve quem se sentisse na necessidade de “explicar” a situação e sempre fosse avançando banalidades do género das divulgadas numa entrevista de Miguel Monjardino - professor no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica - ao DN, segundo o qual «…um país como os EUA tem de ter planos de contingência para este tipo de eventualidade. Não é, todavia, por os planos existirem que o ataque ocorrerá» e «…a divulgação da existência dos planos é uma arma de pressão política, numa altura em que as negociações vão entrar numa fase complicada, com o relatório da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), que, tudo indica, será bastante negativo para o Irão»

Convenientemente, este especialista em questões internacionais, esqueceu-se de referir a concertada movimentação de forças militares que há longos meses os EUA e os seus aliados da NATO vêm realizando em torno do Irão. Desde a colocação de tropas no terreno, no Afeganistão e no Iraque, até à deslocação de uma esquadra para o Mediterrâneo Oriental (ao abrigo de um mandato da ONU e a pretexto dos acordos de paz que se sucederam à invasão israelita do Líbano no passado verão) e de outra força naval para o Golfo Pérsico que tudo indicia estar em marcha um plano deliberado para o assalto àquele território.

Não excluindo liminarmente a hipótese de toda esta movimentação militar não representar mais que uma manobra no sentido de pressionar o Irão a negociar o seu programa de desenvolvimento da energia nuclear (algo de difícil compreensão uma vez que nenhuma lei internacional impede um país de desenvolver um programa nuclear, apenas o desenvolvimento de armas nucleares), nem por isso deixam de ser crescentemente preocupantes outros evidentes sinais de aumento da tensão na região (como se após as invasões do Afeganistão e do Iraque aquela tensão alguma vez tivesse sido reduzida), entre os quais são de destacar o endurecimento da “linguagem” utilizada pelos EUA e por Israel relativamente ao programa nuclear iraniano.

A deslocação de mais tropas ocidentais para o Médio Oriente, o crescente isolamento das teses neoconservadoras mais belicistas, o discurso de Vladimir Putin na conferência de Munique (que apontou friamente o dedo à política belicista norte-americana, acusando-a de responsável pelo aumento da insegurança global e pela natural reacção de uma corrida armamentista), a recusa pela administração de George W Bush em pôr fim ao boicote financeiro ao novo governo de unidade palestiniana (assim mantendo o seu aval à política israelita de permanente confrontação com a Autoridade Palestiniana) e as recentes notícias de um acordo com a Coreia do Norte para que esta interrompa o seu programa de armamento nuclear, constituem um conjunto de sinais contraditórios que dificilmente conduzirão o processo iraniano a outro final que não a acção militar.

Ao contrário do que possa parecer o acordo recentemente alcançado com a Coreia do Norte, não prenuncia um processo idêntico com o Irão, na medida em que aquele terá resultado mais da influência chinesa e do reconhecimento “de facto” das capacidades nucleares coreanas que da adopção do princípio negocial como forma de resolução de conflitos.

Pior, a aparente resolução da crise nuclear norte coreana, poderá resultar numa concentração de esforços na tentativa de resolução da crise iraniana. Ora no caso desta, são conhecidas as divergências entre americanos, europeus, russos e chineses quanto à solução a adoptar, cenário em que a tentação para o uso da força será muito maior.

A Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA), num relatório divulgado há dois dias pelo seu director-geral Mohamed El Baradei, acusa o Irão de prosseguir o seu programa nuclear e, em particular, as actividades de enriquecimento de urânio, em violação com a decisão da ONU, afirma a falta de cooperação das autoridades iranianas mas continua sem comprovar a aplicação militar do programa. O próximo passo será a sua análise pelo Conselho de Segurança da ONU e um novo processo de negociações para a elaboração de nova resolução.

Para concluir (e agravar ainda mais este cenário), importa não esquecer que além dos EUA existe um outro país particularmente desejoso de recorrer ao uso da força para resolver a questão. À semelhança do que já ocorreu em Junho de 1981, quando Israel bombardeou e destruiu um reactor nuclear iraquiano, poderá o governo israelita voltar a tentar nova manobra de antecipação (quiçá de provocação, com o beneplácito americano) que sem dúvida abrirá uma nova espiral de violência na região e fornecerá acréscimo de argumentos aos movimentos radicais islâmicos. Evidentes sinais disto mesmo é a notícia ontem divulgada pelo TELEGRAPH de que o governo israelita terá solicitado à administração de George W Bush a criação de um corredor aéreo sobre o Iraque para bombardear o Irão.

Os próximos dias serão determinantes para avaliarmos se prevalecerão, ou não, as teses mais belicistas, ou se pelo contrário a comunidade internacional e o Irão conseguirão revelar capacidade para aproveitar a próxima ronda de negociações, dado que o momento parece particularmente favorável (a par com o já referido acordo com a Coreia do Norte notam-se alguns sinais de isolamento da corrente iraniana mais extremista, personificada pelo presidente Ahmadinejad) à concertação; assim o queira (ou a tal seja forçada) a administração de George W Bush.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

MAIOR QUE O PENSAMENTO

23 de Fevereiro de 1987 – 23 de Fevereiro de 2007

Obrigado Zeca por carregares na voz (e na música) a revolta e os anseios de um povo!

Porque há quem diga que é necessário um artista para bem entender (e apresentar) outro, aqui deixo um texto sobre Zeca Afonso, pela pena de um velho “narrador-alferes” que diz ter levado o Zeca para a sua “África” e para “Nanbuangongo”; que eles me perdoem o desaforo a que me conduziu a minha pena (e a falta de arte), natural a quem a “África” se ficou pela região da Madeira e o “Nanbuangongo” se reduziu a meia dúzia de “calhoadas” para o vazio na Ponta de S. Lourenço…

«Só me calham Dukes

Privei pouquíssimo com o Zeca, não fiz parte dos seus amigos mais chegados, a última vez que estivemos juntos foi em casa dele e havia o sentimento pesado da morte que entrava já pela varanda, bulindo com os cortinados.

Estas efemérides são muito chatas porque, não tendo nós o dom da ressurreição, caímos não obstante num discurso tão próximo do evangélico que soa a falso. Vou tentar fugir-lhe.

A primeira vez que ouvi falar do Zeca já se dizia assim mesmo, Zeca, e não José Afonso. Cantava esplendorosamente o reportório do fado de Coimbra. Eu costumava não me intrometer nessas conversas tribais em que outros eram aparentemente exímios e tiravam todo o prazer da evocação dos grandes tenores e barítonos da escola local. Havia mesmo quem coleccionasse velhos discos de gramofone comprados a preços altos. A mim tanto se me dava: estava a tirocinar para utente nocturno do programa de jazz da Voz da América, vício que convinha não revelar aos então companheiros de esquerda, por sinal hoje bandeados na sua quase totalidade para a comarca de onde vem papel, papel a sério, sendo que vários deles até deputam, ó meu Deus!

Bom, não importa, eu era capaz de gostar do Zeca e do Duke Ellington, à vez ou ao mesmo tempo. Um solo a introduzir o Perdido parecia-me tão rico e tão cheio de música como qualquer canção da Beira Baixa ou dos Açores arregimentada pelo fado da cidade. O que eu não fazia era correr a foguetes para um sarau da Queima das Fitas, e escusassem de me lembrar as serenatas ditas monumentais na Sé Velha porque a essa hora onde eu já ia.

Ao Zeca habituei-me. Foi de resto fácil: andava no Orfeon Académico e ele tinha por hábito juntar-se ao grupo nas excursões, actuando em fim de festa. Era simplesmente o melhor. A voz mais bonita, a interpretação mais inteligente. Aí eu calava-me muito bem calado, cedendo ao instante mágico. Mas nunca falámos disso. Para quê, se eu devia parecer-lhe o que realmente parecia à vista desarmada, um pernóstico sem cura.

Também não assisti à guerrilha da balada em Coimbra, pelo motivo bem mais prosaico de uns anos de tropa com que a Sagrada Família me entreteve, mas na hora de fazer as malas escolhi dois discos de 45 r.p.m. do Zeca para irem estagiar comigo em Nambuangongo e Zala, de onde voltaram tingidos de um castanho avermelhado que era a vera cor da guerra. Foram muito ouvidos nos dois aquartelamentos, até pelos srs. oficiais de carreira, que não eram propriamente surdos e agradeciam uma musiquinha de fundo para empurrar o quinto ou sexto brande à noite, pouco antes do chichi-cama.

E pronto, acabaram-se os tiros, voltámos todos ou quase, o Zeca também tinha ido veranear a África (Moçambique, no seu caso), vieram uns versos, veio a música dele, ele às tantas foi para Setúbal e eu remanesci em Lisboa. Em vinte anos não nos teremos encontrado duas vezes vinte vezes. Mas tive ocasião de escrever sobre os discos dele, ou somente sobre ele, entrevistei-o em Caldas da Rainha, lá fui uma tarde a Azeitão com o Viriato Teles - a cena dos cortinados - e depois foi o fim.

Recordam-me duas histórias. Uma em 1960, em Paris, quando a meu pedido ele entrou numa livraria toda pinoca para requisitar gratuitamente a antologia do Maiakovski traduzida pela Triolet, que eu não tinha massas para comprar. Foi tudo rápido e brilhante e nem o Houdini teria feito aquele passe que o Zeca fez. Só faltaram as palmas.

A outra é o recital de despedida no Coliseu, insuportavelmente belo. Ele sobe ao palco, ajeita os óculos, baralha-se com os papéis, tenta descobrir ao longe - mas não é possível, as luzes cegam-no - uma cara conhecida com quem dividir a emoção do momento. A minha servia, mas o Zeca está longe e não me topa.

Digo-lhe adeus com a mão. Fernando Assis Pacheco» (in www.aja.pt)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

PORTUGUESES ENTRE OS MAIS POBRES DA UNIÃO EUROPEIA

Foi com este título que o PUBLICO hoje noticiou os resultados do último estudo apresentado pelo EUROSTAT sobre a distribuição da riqueza entre os países membros e do qual conclui que «…20 por cento dos portugueses viviam em 2004 abaixo do limiar de pobreza - fixado em 60 por cento do rendimento médio nacional depois de incluídas as ajudas sociais - contra uma média comunitária de 16 por cento.

Entre os Vinte e Sete países da União Europeia (UE), apenas a Polónia e a Lituânia estavam em pior situação, com 21 por cento de pobres. Estes são, no entanto, países com níveis de riqueza particularmente baixos: o produto interno bruto (PIB) por habitante da Polónia ascendia no mesmo ano a 50,7 por cento da média comunitária e o da Lituânia a 51,1 por cento. Em Portugal, o PIB por habitante representava na mesma altura, 74,8 por cento da UE

Concretamente a Nota de Imprensa publicada pelo EUROSTAT reza assim:

«O PIB por habitante em 2004 variou de 24% da média EU27 no Nordeste da Roménia até 303%, na região Londres Centro.

Uma em cada 6 regiões tem um rendimento superior a 125% da média EU27…

As três regiões líderes na classificação regional do PIB por habitante foram Londres Centro, no Reino Unido (com 303% acima da média), o Luxemburgo (251%) e Bruxelas na Bélgica (248%). Na distribuição por países das 46 regiões que excederam os 125% a Alemanha e o Reino Unido apresentam 8, a Itália 7, a Holanda 5, a Áustria 4, a Bélgica e a Espanha 3, a Finlândia 2 e a República Checa, a Irlanda, a França, a Eslováquia, a Suécia e o Luxemburgo 1 cada.

...e uma em cada 4 tem um rendimento inferior a 75% da média.

As 15 últimas regiões da classificação estão todas na Bulgária, Polónia e Roménia, com o pior resultado na região Nordeste da Roménia (24% da média), seguida por três regiões búlgaras, todas com 26%. Entre as 70 regiões abaixo do nível dos 75%, 15 localizam-se na Polónia, 8 na Grécia e na Roménia, 7 na República Checa, 6 na Bulgária e na Hungria, 4 em França (todos nos departamentos ultramarinos), Itália e Portugal, 3 na Eslováquia e 1 em Espanha, na Estónia, na Letónia, na Lituânia e em Malta» (tradução livre).

Como com o mal dos outros podemos nós bem, constata-se em termos práticos, pelos dados apresentados (que aqui resumo na parte respeitante ao nosso país),

que no global nos encontramos abaixo do limiar dos 75% da média e que a região da Madeira apresenta um rendimento em termos de paridade de poder de compra (PPC) que em termos nacionais apenas é ultrapassado pela região de Lisboa e Vale do Tejo.

Pelos vistos parece que os nossos governantes persistem em atirar-nos poeira para os olhos: nem estamos tão bem como apregoa o governo de José Sócrates, nem Alberto João Jardim tem a mínima razão para reclamar mais dinheiro ao orçamento do estado (ou seja ao bolso de todos nós) para continuar a esbanjar em “obras de regime” e na criação de postos de trabalho que de quatro em quatro anos se convertam nos votos que o têm perpetuado no poder.

NOTÍCIAS DO CARNAVAL DO JARDIM

O chefe do governo regional da madeira decidiu demitir-se em protesto contra a nova lei das finanças regionais. Segundo o DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA, Alberto João Jardim proferiu ontem uma «…declaração de oito páginas, lida em pouco mais de dez minutos e sem direito a perguntas…» para informar os madeirenses, o país e o mundo da sua decisão.

Sem dinheiro fresco, porque o novo quadro legal reduz as verbas a atribuir à Região da Madeira, numa época em que também os fundos comunitários da União Europeia sofrerão um corte em virtude do rendimento da região já ter ultrapassado a média comunitária, recusa-se a continuar a governar a ilha; mas na mesma oportunidade em que fundamentou e tornou pública esta decisão, anunciou que se vai recandidatar nas próximas eleições.

Então em que ficamos, o dinheiro chega ou não?

Em plena época carnavalesca o que é que se podia esperar do "bobo-mor", que entre insultos disparados à esquerda e à direita sempre foi deixando escapar que seria de esperar maior solidariedade (leia-se mais milhões para esbanjar) do governo central, neste momento de aperto (redução dos fundos comunitários) que se aproxima?

Na ausência de melhor cartaz turístico para a ilha porque não prolongar o Carnaval até lá para Junho?

Mas se o que o está em causa são os cortes orçamentais decididos pelo governo de José Sócrates, Alberto João não está a depauperar ainda mais os fundos da região para financiar um acto eleitoral de que apenas ele necessita?

As respostas a estas questões deveriam ser dadas pelos eleitores madeirenses no próximo sufrágio, porém todos bem conhecemos a forma como tem funcionado o “carnaval eleitoral madeirense” e, se preciso for, lá voltaremos o ver o inefável Alberto João montado num elefante, ou noutro qualquer animal exótico…

Seguro é que, como hoje escreveu o
DN no seu editorial, tudo o que realmente preocupa Alberto João Jardim é garantir «…um sistema em que o dinheiro de Lisboa é fundamental para manter um sistema fechado, em que o poder é unipessoal e toda a vida de toda a gente depende, em qualquer medida, do Estado».

domingo, 18 de fevereiro de 2007

O FUTURO DA FIGURA DO REFERENDO

Têm sido férteis os últimos dias na apresentação de “trabalhos” e opiniões sobre o sistema eleitoral português, o qual define o princípio do sufrágio universal para todos os cidadãos maiores de 18 anos (salvas as situações de incapacidade previstas na lei), mediante o seu exercício pessoal, directo e secreto, variando o modo de escrutínio em função da eleição (maioritário a duas voltas para a Presidência da República e representação proporcional mediante a aplicação do método de Hondt).

Tudo isto a propósito do resultado do referendo sobre o aborto e da polémica em torno da abstenção. Não havendo dúvidas na tendência para o seu aumento, conforme se comprova no gráfico seguinte:

resta fazer um esforço para a entender e a combater de forma eficaz.

Longe vão os tempos de valores de abstenção eleitoral inferiores a 10% – tal apenas ocorreu uma vez, nas eleições legislativaS de Abril de 1975 – mas a persistência de valores próximos dos 50% (a média da última década situa-se nos 47,59%) não podem deixar de ser alvo de muitas questões.

Quando se constata que a média da abstenção em todos os actos eleitorais realizados depois de 1974 é de 35,78% e que apresenta fortes variações consoante o tipo de eleição:

Assembleia da República……………..26,13%
Presidente da República……………...30,89%
Autarquias…………………………….......36,03%
Parlamento Europeu…………………....52,48%
Referendos…………………………….......58,79%

como explicar que a abstenção seja maior nas eleições autárquicas que nas nacionais (parlamento e presidente), tanto mais que o que está em causa é a escolha de quem irá dirigir os destinos da comunidade mais próxima de cada eleitor?
Da mesma forma, como entender o divórcio com um acto eleitoral com as características do referendo – aquele onde em princípio é mais determinante a opção individual (tratar-se-ão de grandes questões nacionais cuja solução não se esgotará no cenário político) – onde, graças à tal regra dos 50% de participação para vincular a aplicação obrigatória da matéria referendada, a participação é mais valorizada.

Se a desculpa da desactualização dos cadernos eleitorais é tecnicamente difícil de entender no início do século XXI, mais ainda o será num país que tem revelado grande capacidade de utilização e desenvolvimento de meios informáticos (veja-se a elevada taxa de adesão aos meios automáticos de pagamento, vulgo Multibanco, e ao desenvolvimento de um sistema informático para a cobrança de portagens nas auto-estradas).

A opinião que Villaverde Cabral expressou há dias ao DN, de que não «…vão realizar-se muitos referendos em Portugal. Mesmo os referendos locais tenderão a tornar-se cada vez mais raros» porque a «elite política portuguesa tem um medo danado do referendo» é no fundo a confirmação da importância que este tipo de instituto democrático tem.

Talvez por colocar de forma directa e menos evasiva a resposta a questões concretas, talvez por normalmente colocar em grandes dificuldades os aparelhos partidários o seu futuro é tanto mais incerto que outras grandes decisões já foram tomadas sem o seu contributo. Entre estas destaquem-se pela sua importância para o futuro do país questões como o abandono do serviço militar obrigatório e as decisões de grandes investimentos como o novo aeroporto da Ota e o TGV.

Se os portugueses foram chamados a opinar directamente sobre uma questão importante mas de natureza fundamentalmente pessoal como a do aborto, porque não chamar-nos também a dizer SIM ou NÃO à Ota e ao TGV?

Se um Estado em dificuldades de equilíbrio financeiro pode despender 10 milhões de euros para o referendo sobre o aborto, porque não há-de chamar os mesmos eleitores a pronunciarem-se sobre investimentos superiores a 10 mil milhões de euros?

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

COISAS ANTIGAS

As notícias do início do julgamento dos implicados no atentado de Madrid (13 de Março de 2004) e da aprovação pelo Parlamento Europeu do relatório sobre os voos da CIA, trouxeram-me à memória “coisas” mais antigas.

Enquanto o DN chamava hoje para o seu editorial a hipocrisia revelada na versão final do relatório da comissão de investigação (nomeadamente através do branqueamento da actuação do actual governo português, expresso na arrogante recusa de colaboração com as investigações, e na desculpabilização de proeminentes figuras nacionais da época, casos do ex-primeiro-ministro e actual presidente da Comissão Europeia Durão Barroso e do ex-ministro da defesa Paulo Portas), denunciava a actuação de algumas forças policiais europeias que procederam ao interrogatório de prisioneiros em Guantánamo, assim violando um sem número de leis nacionais e internacionais (muitos daqueles prisioneiros continuam hoje sem conhecer os crimes de que são acusados) e colaborando activamente num dos maiores atentados ao direito e às liberdades individuais dos últimos tempos.

A propósito dos métodos de actuação das pretensas forças da ordem e do “vale tudo” que impera e ao abrigo do qual as “democracias” ocidentais pretendem desenvolver a luta contra o “terrorismo” vejam-se as notícias que de quando em quando surgem em alguns meios de comunicação sobre o “tratamento” infligido pelos americanos aos alegados “talibans” detidos em Guantánamo.

Uma das últimas de que guardo memória é relativamente recente e foi noticiada no jornal EL PAIS. Mesmo descontando algum aparato “jornalístico” quem pode negar o “murro no estômago” da democracia que significa identificar os presos com pulseiras plásticas com a indicação «ANIMAL NUMBER ....».

Não estando em causa qualquer desculpabilização de actos como os atentados em Nova York, Madrid ou Londres, será com respostas desta natureza que as “democracias” ocidentais se vão distinguir dos comportamentos “islamo-fascistas” dos movimentos islâmicos mais radicais?

Será pela diabolização das tendências islâmicas mais radicais e mediante uma resposta cada vez mais musculada (e carregada de conceitos e práticas racistas e animalescas) que vamos conseguir algum dia eliminar aquele tipo de atentados?

É óbvio que a justiça espanhola irá funcionar e emitirá penas de condenação aos autores dos atentados, mas além disso que mais irá o Estado Espanhol fazer para obviar a sua repetição?
Estar-se-á a gizar algum plano de actuação para contribuir efectivamente para a melhoria das condições de vida dos milhares de imigrantes islâmicos que trabalham naquele país?

Quando será conhecida e efectivamente aplicada uma política comunitária para melhorar as condições de vida das populações subsarianas que hoje afluem às fronteiras da Comunidade?

Se ninguém nega que o “terrorismo” é um fenómeno de natureza violenta, para quando uma efectiva tentativa de erradicação das raízes da violência? Quem, de boa fé, espera que milhões se mantenham dispostos a viver pacíficamente numa situação de miséria nas fronteiras da abundância?

Na ausência de respostas a estas questões continuaremos à espera de nova vaga de atentados, ou será que esta inércia é intencional e os seus promotores apenas aguardam novos pretextos para continuar uma política de ocupação militar e de apropriação de riquezas naturais?

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

DESPENALIZAÇÃO DA IVG – ECOS FINAIS

Depois de ler e reler o artigo de opinião do Professor César das Neves hoje publicado no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, ficou-me uma enorme curiosidade sobre como seria o artigo que preparou em caso de vitória do NÃO.
Acreditem ou não, estas questões por vezes bizantinas sempre me fascinaram!

Por exemplo, como seria hoje o nosso quotidiano (o da monotonia do trabalho, da dureza concreta e das dificuldades quotidianas a que César das Neves se refere) SE os cruzados não tivessem auxiliado o nosso primeiro rei a conquistar Lisboa aos árabes, ou SE os ingleses não tivessem contribuído para a derrota castelhana em Aljubarrota?

Estas questões são para mim tão fascinantes quanto tentar compreender a incapacidade que outros revelam em entender a realidade que os rodeia.
Por exemplo, a avaliar pelo conteúdo deste artigo quantas vezes ainda vão ser necessárias explicar a Luís Delgado que o caracter vinculativo da figura do referendo não invalida que o Parlamento volte a debater a questão da despenalização do aborto. Tal apenas aconteceria no caso de uma vitória do NÃO, acompanhada de uma afluência às urnas superior a 50%; na ausência desta última condição NÃO EXISTE QUALQUER OBRIGATORIEDADE DE CUMPRIR O RESULTADO DO REFERENDO, nem o seu inverso.

Quando será que aquele jornalista (pelo menos é assim que o próprio se intitula) entenderá que os resultados eleitorais (como muitas outras coisas do nosso quotidiano) não podem ser “manobrados” ao belo prazer de alguns e que começar desde já a apelar à intervenção de Cavaco Silva (seguramente muito pouco interessado em desperdiçar a oportunidade de uma reeleição) e do Tribunal Constitucional pode muito bem vir a revelar-se um erro maior que o de ter confiado que bastaria o apoio das estruturas da Igreja Católica para garantir a manutenção da proibição do aborto.

A propósito, não foram os próprios opositores da legalização que durante a campanha se manifestaram contra a manutenção de uma prática penalizadora para as mulheres?

Então, em que ficamos?

Mesmo compreendendo a frustração que sente é preciso ter muito cuidado com as declarações que se produz, especialmente quando tudo o que se diz consiste apenas em lançar mais achas para a fogueira, prática tanto mais perigosa quanto não seria a primeira vez que o fogo consumiria a sua própria origem.

DESPENALIZAÇÃO DA IVG – OS RESULTADOS

Encerradas as assembleias eleitorais e contados os votos, aconteceu o previsto: com uma abstenção da ordem dos 56% os resultados deixaram de ter carácter vinculativo.

Os partidários do SIM procuram fazer valer o argumento de que a lei deve ser alterada enquanto os do NÃO se mostram divididos; os mais moderados apelam a uma revisão equilibrada da lei e os mais radicais esperam que, há semelhança do ocorrido em 1998, nada venha a ser alterado (entre estes já se ouviu mesmo apelar a um terceiro referendo, uma espécie de “negra").

Embora dependente da decisão do Parlamento, a avaliar pelas declarações de José Sócrates tudo indica que a actual lei poderá vir a ser alterada (confirmando que a o referendo era de todo em todo desnecessário), pelo que os defensores do NÃO já começaram uma nova frente de batalha – a introdução de normativos que dificultem a concretização do acesso livre ao aborto. Podem permanecer tranquilas as consciências mais conservadoras, se tudo correr bem, poucas serão as mulheres que após a alteração legal lograrão aceder ao SNS para concretizar a interrupção da gravidez dentro do prazo legal estabelecido (10 semanas).

Para a história ficará a nítida alteração da opinião pública registada entre os dois referendos

merecendo particular destaque o facto do SIM ter vencido nos distritos de Leiria e Castelo Branco (empurrando as fronteiras do NÃO mais para Norte) e no do Porto.


Mais importante que destacar a vitória do SIM parece-me ser a redução de quase 12 pontos percentuais registada pela abstenção, facto que poderá vir a revelar-se determinante para o futuro do referendo em Portugal.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

NOVAS COINCIDÊNCIAS NA PALESTINA

Ainda não tinha acabado de ser alcançado o acordo entre a Fatah e o Hamas para o cessar das hostilidades abertas entre as duas organizações palestinianas e a formação de um governo palestiniano de unidade nacional e já novo foco de conflito se erguia na região.

Enquanto sob os auspícios da Arábia Saudita em Meca e pareciam dar-se alguns passos para a normalização da região, após um período em que os confrontos entre militantes do Hamas (partido islâmico vencedor das eleições palestinianas de Janeiro de 2006) e da Fatah (organização histórica da luta pela independência palestiniana, actualmente liderada por Mahmoud Abbas, o Presidente da Autoridade Palestiniana), provocaram alguns mortos, eis que a decisão do governo israelita de proceder a obras na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, volta a fazer aumentar a tensão.

Garantindo um “timing” perfeito, no próprio dia 8 de Fevereiro, a par com as imagens dos líderes do Hamas e da Fatah, era noticiada a posição americana e israelita de grande reserva perante a viabilidade da solução de compromisso palestiniana e o levantamento das sanções impostas ao governo do Hamas. Recorde-se que após a pressão norte-americana para a criação de uma segunda fonte de poder nos territórios palestinianos (estratégia abertamente apoiada, se é que não foi inspirada, por Israel para reduzir a influência de Yasser Arafat, então líder da Fatah e do governo palestiniano) foi criada a figura de presidente da Autoridade Palestiniana e realizaram-se sucessivos actos eleitorais, no último dos quais resultou uma clamorosa vitória do Hamas; perante este resultado e sob a alegação de que aquele era um grupo terrorista (Israel conseguiu dos EUA a inclusão do nome do Hamas na lista negra do terrorismo após o 11 de Setembro de 2001) os EUA e a UE suspenderam o auxílio financeiro à Autoridade Palestiniana, acto de sanção económica em que foram prontamente acompanhados por Israel, que decidiu suspender a regular entrega dos direitos alfandegários que cobra nas fronteiras palestinianas.

Sobre o acordo interpalestiniano que nos seus pontos principais define que Ismael Haniyeh, do Hamas, continuará com as funções de primeiro-ministro; que o Hamas ficará com 9 ministros, a Fatah com 6 e os restantes 4 serão distribuídos por outros partidos; que as pastas do interior, finanças e negócios estrangeiros serão ocupadas por independentes e que o Hamas matem a sua posição de não reconhecer explicitamente a existência do Estado de Israel, estanho este último ponto do acordo porquanto tem sido o principal argumento para a recusa do governo israelita em dialogar com o actual governo palestiniano (chefiado por Haniyeh e integralmente constituído pelo Hamas), tanto mais que em meados do mês passado Kahled Meshaal, o líder do Hamas no exílio, declarou numa entrevista à Reuters, citada pelo PUBLICO, que «…a existência de Israel é uma “matéria de facto”, que “não coloca problemas” ao movimento islamista. “O problema é que o Estado palestiniano não existe. A realidade é que Israel existe em território palestiniano”» e que «…o reconhecimento só surgirá quando for criado o Estado palestiniano».

Pouco mais de 72 horas volvidas sobre o anúncio do acordo já estalou outro foco de conflito; tal como sucedeu em 2000 após uma visita de Ariel Sharon à Esplanada da Mesquita e que foi a causa próxima da II Intifada, eis que agora o governo de Israel decidiu iniciar obras para a construção de um novo acesso à área da Mesquita de Al-Aqsa.

Embora as opiniões se dividam quanto à necessidade de tais obras, com os judeus a considerarem-nas necessárias e os palestinianos a julgarem-nas como mais uma provocação e uma forma de minar (literalmente) a estrutura da Mesquita de Al-Aqsa, o que é certo é que a própria UNESCO, numa nota de imprensa que difundiu salienta a necessidade da obra, cujos planos diz desconhecer, respeitar o valor histórico de um local que se encontra classificado como Património Mundial.

Mesmo não estando em causa um comportamento por parte das autoridades israelitas idêntico ao que levou à destruição dos Budas de Bamiyan pelos taliban em finais do século XX, não se pode deixar de questionar a coincidência da criação de mais este foco de atrito num momento em que parecem em vias de resolução algumas das condicionantes apresentadas por Israel para a suspensão do processo de diálogo com os palestinianos.

Se tudo isto não parece obedecer ao um plano há muito gizado para manter um permanente nível de confronto entre israelitas e palestinianos, então o Mundo está mesmo cheio de coincidências…

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

DESPENALIZAÇÃO DA IVG – A HORA DE VOTAR

Quando pouco tempo falta para o encerramento do período de campanha para o referendo sobre o aborto e ao longo dos últimos dias defensores e críticos da respectiva despenalização se têm desdobrado na divulgação dos seus pontos de vista, será chegado o momento de reflectir um pouco além da questão a escrutinar.

Tal como o fiz no início oficial da campanha, mantenho hoje as mesmas dúvidas quanto à lógica que presidiu à convocação deste referendo (em face do cenário inconclusivo da primeira consulta, para quê repeti-la) e as declarações com que nos últimos dias alguns defensores do NÃO vierem baralhar ainda mais a situação (afinal parece que toda a gente concorda quanto à necessidade de alterar a legislação), além de não me terem tranquilizado quanto ao resultado, levam-me a reforçar a probabilidade de existência de um objectivo não declarado.

Quando as sondagens continuam a dar vantagem ao SIM, mas se revelam incapazes de traduzir o fenómeno da abstenção (tal como aconteceu em 1998), quando surgem nos meios de comunicação notícias sobre o elevado número de “eleitores” que nem recenseados se encontram, principalmente entre as camadas mais jovens, tudo indicia uma forte probabilidade de mais um referendo não vinculativo.

A confirmar-se um cenário desta natureza, tornar-se-á ainda mais pertinente perguntar a quem serve tal resultado.

Não sendo aos eleitores que votarem, nem tão pouco aos que o não fizerem, restará concluir que os beneficiados serão, além daqueles a quem tocará parte dos 10 milhões de euros orçamentados para o acto, os que demitindo-se do seu papel legislativo optaram por viabilizar a solução do referendo.

Podendo ter havido os que o fizeram por entenderem que desta forma estariam a dar à sociedade uma hipótese de exercício de vontade, a maioria fê-lo por mero carreirismo político, votando de acordo com a vontade dos líderes das estruturas partidárias com representação parlamentar. Agora, perante este quadro de irresponsabilidade e demissionismo político-parlamentar espera-se (e apela-se) ao voto no próximo domingo.

Em face do desastroso que será nunca mais voltarmos a ver convocado um referendo entre nós (caso mais que provável face à cada vez maior abstenção), qualquer que seja a nossa convicção face à consulta sobre o aborto, deveremos marcar presença neste acto mesmo cientes que tudo terá sido organizado para confirmar a sua inutilidade.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

NOVO LÁPIS AZUL

Ao ler/ouvir as notícias de hoje, no DIÁRIO DIGITAL e na TSF sobre as decisões ontem tomadas pelo Conselho Superior da Magistratura, de:

- instaurar um processo disciplinar contra o juiz-desembargador Rui Rangel e
- suspender preventivamente o juiz Hélder Fráguas, acusado da autoria de um “blog” que contém linguagem obscena e imprópria;

voltou-me à memória um artigo que li sobre a intenção do Congresso norte-americano exigir o registo de todos os “bloggers” à semelhança do que já acontece com os lobistas.

Se neste caso parece por demais evidente o reconhecimento da influência que o universo dos ”bloggers” começa a ter na sociedade norte-americana, por outro afigura-se como uma medida de evidente desespero perante a impossibilidade de “controlar” aquele manancial de informação e crítica.

Pelos vistos, cá como lá, as entidades visadas pelas críticas (sejam elas difundidas nos meios de comunicação habituais, sejam pela “net”) revelam o mesmo tipo de reacção - limitar a liberdade de expressão.


O texto do juiz Rui Rangel, que pode ser lido aqui, reflecte uma opinião sobre um caso de justiça particularmente mediático, não me parece que ultrapasse limites de natureza deontológica nem que possa ser considerado sequer ofensivo; a menos que na douta opinião do Conselho Superior de Magistratura entre nós seja proibido afirmar que “o rei vai nu…”

Ao que noticia a TSF a decisão daquele Conselho não terá sido pacífica, uma vez que um dos seus membros, Laborinho Lúcio, alegando que também ele proferira comentários sobre o mesmo caso, solicitou que lhe fosse instaurado idêntico processo. Declarações de idêntico conteúdo têm vindo a ser feitas ao longo do dia por outros magistrados, dos quais destaco o juiz-desembargador Eurico Reis.

Mas se a opinião de Rui Rangel parece ter ferido a excessiva sensibilidade do Conselho Superior da Magistratura, que dizer dos termos em que foi anunciada a suspensão do juiz Hélder Fráguas?

Talvez a generalidade dos leitores nacionais de jornais e dos espectadores nacionais de televisão aceite como boa a afirmação daquele Conselho de que ele é o autor de um “blog” que contém linguagem considerada obscena e imprópria. Porém, aqueles que queiram dar-se ao incómodo de confirmar essa informação, verificarão que o nome de Hélder Fráguas apenas aparece associado ao AQUI E AGORA e, caso queiram repetir os procedimentos que o APDEITES muito bem descreve no seu texto JUIZ EM CAUSA IMPRÓPRIA, facilmente constatarão que a linguagem nele apresentada se situa muito longe dos termos em que foi classificada.

Se como diz o povo que «não há fumo sem fogo» importa que o Conselho Superior de Magistratura esclareça a opinião pública sobre o “blog” em causa e que, como muito bem pretendeu Laborinho Lúcio, outros processos disciplinares sejam instaurados a outros juízes.

Até lá, para uns permanecerá a dúvida sobre a “justiça” destas decisões, enquanto para outros parecerá óbvia a existência de uma compulsiva vontade de cercear um já muito débil hábito de opinar; de qualquer das formas quem seguramente saiu a perder (e muito) foi a Justiça.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2007

DESPENALIZAÇÃO DA IVG – O LIVRE ARBÍTRIO

Neste último “post” sobre o tema IVG, retomo a questão com que terminei o anterior: porque não deixar à consciência de cada um a resposta à situação?

Será apenas sintoma de final de campanha continuarmos a assistir ao desfile de defensores da moral pública, que insistem em misturar argumentos de natureza religiosa com outros de natureza científica (mesmo quando carecem de aceitação da generalidade da comunidade médica, como é o caso do célebre “bater do coração”), além do recurso a argumentos de natureza económica?

É que se respeito e consigo entender quem defenda o princípio de que a gravidez não deve ser interrompida (seja invocando razões de natureza religiosa ou moral) e tem este princípio para seu uso pessoal, tenho extrema dificuldade em assistir a uma argumentação muito desfasada de uma realidade nacional onde impera a baixa qualidade de vida da maioria da população, onde as carências de ordem material, de saúde e de bem-estar estão à vista de todos (os que as queiram ver) e pior ainda assistir silenciosamente ao desfiar de argumentos que deveriam ter feito corar de vergonha os seus autores.

Neste capítulo merecem particular destaque os considerandos apresentados por César das Neves numa conferência de imprensa patrocinada pelos defensores do NÃO, durante a qual aquele reputado professor de economia e ex-conselheiro económico de primeiros-ministros, proferiu afirmações como a de que em países onde se aprovou a liberalização do aborto (Europa, Estados Unidos e Canadá) esta conduziu a um aumento generalizado do número de abortos com taxas de crescimento a triplicarem anualmente. Eu sei que o insigne professor estava a falar para uma plateia “popular”, mas de uma figura como seu estatuto exige-se um mínimo de responsabilidade (em especial quando se abordam matérias mais controversas) e que nunca esqueça que nem todos os receptores da informação estarão dispostos a aceitar a manutenção do primado do “magister dixit”; então o ilustre professor comete o erro básico (que seguramente nunca perdoará aos seus alunos) de misturar informação estatística com estimativas para calcular taxas de crescimento e que, para cúmulo, apresenta como dados irrefutáveis?

Se o aborto é algo que merecerá sempre a condenação moral do professor César das Neves, que dizer de práticas desta natureza?

E do recurso a outros sofismas económicos do tipo, quanto irá custar ao SNS a prática legalizada do aborto? Respondendo a esta questão já houve especialistas que avançaram com estimativas de 20 ou 30 de milhões de euros (notícia no PUBLICO), valores que sendo discutíveis na sua dimensão absoluta, são-no ainda mais por não contemplarem a poupança alcançada na minimização das intervenções originadas na prática de abortos clandestinos que, fruto do seu elevado risco, acabam nas urgências dos nossos hospitais (segundo dados da Direcção-Geral de Saúde, em 2004, foram mais de 11 mil)!

Porque é que ainda se ouve quem afirme que não querendo ver as mulheres condenadas pela prática de aborto, não pode de modo algum aceitar que este seja realizado a pedido da mulher?
Se a questão já não é o aborto em si mas o facto deste ser solicitado pela mulher (então por quem é que havia de ser), de pouco valerão argumentos como o de César das Neves in “O verdadeiro combate pela liberdade” – DIÁRIO DE NOTÍCIAS, segundo o qual «...cada um tem liberdade de pensar o que quiser sobre o início da vida humana. Mas quando se fala da destruição dessa vida então essa, como todas as liberdades, tem de ser regulada e protegida

O que este conhecido “opinion maker” diz é que cada um tem a liberdade de pensar o que quiser sobre o início da vida humana, desde que como ele, pense que aquela se inicia no acto da fecundação.

Confirmando que invariavelmente este tipo de argumentos resulta de conceitos que radicam mais do proselitismo que do racionalismo, César das Neves conclui que para os defensores do SIM a grande questão não pode ser senão a liberdade sexual.

É óbvio que para quem se veja permanentemente cercado de “feministas” e “praticantes do amor livre” (abrenuncio... Jesus credo!) a questão da despenalização do aborto será algo equivalente ao fim do Mundo; mas será que para o professor César das Neves não haverá ainda uma outra inconfessável razão?

Não receará ele, mais que tudo o resto, que a aceitação do primado do livre arbítrio (entendendo-se este como a capacidade de cada ser humano determinar livremente o seu futuro e o da sua descendência) possa contribuir para a organização de uma sociedade mais justa, equilibrada e com critérios mais equitativos de distribuição da riqueza?

Talvez em última instância o que defensores de argumentos deste tipo contra a despenalização do aborto receiam, é o aumento do número de pessoas que tomem decisões pela sua própria cabeça. É que pouco será mais adverso aos conceitos do neoliberalismo económico (corrente onde se integra o professor César das Neves) que a existência de grandes massas de cidadãos questionando a adequabilidade e a inevitabilidade de políticas que apenas contribuem para o enriquecimento de uma minoria.

Porque a questão da despenalização do aborto pode ser bem mais vasta que o que aparenta a dureza da vida do dia-a-dia é que apoiar uma alteração legal que possibilite a opção pela interrupção de uma gravidez não desejada é fundamental, não como sinal de um qualquer modernismo bacoco e importado (como também pretendem alguns dos defensores do NÃO), mas como real manifestação do direito ao exercício de uma liberdade individual consciente e que não interfere com a liberdade dos outros.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

MERO ERRO DE INFORMAÇÃO?

Continua sem passar um dia em que a violência no Iraque não seja notícia. Umas vezes pelos atentados suicidas, quase sempre atribuídos pelo governo iraquiano aos terroristas “saddamistas”, outras para dar conta de importantes vitórias do exército iraquiano (os meios de comunicação ocidental referem cada vez a intervenção do exército americano como forma de apoio ao exército iraquiano) sobre os terroristas.

Disto mesmo foi exemplo as notícias que no início da semana deram conta de morte de 250 militantes e a captura de mais de meia centena de outros membros de uma força rebelde, até então desconhecida e designada por Exército do Paraíso. Os combates tiveram lugar próximo de Najaf, no dia 28 de Janeiro quando se encontravam no auge as festividades xiitas da Ashura[1].

Fontes locais, citadas pela
BBC, referiram que os rebeldes se encontravam bem armados e até dispunham de armamento anti-aéreo (um helicóptero americano foi abatido e os seus dois tripulantes mortos), mas as baixas registadas pelas forças governamentais resumiram-se a 3 mortos e uma vintena de feridos.

Aparte a referência a uma nova força armada, tudo não teria passado de mais episódio de violência no Iraque, não fosse três dias depois uma notícia no THE INDEPENDENT, vir levantar algumas sérias dúvidas sobre o que realmente ocorrera.

De acordo com outras fontes iraquianas e alguma imprensa em língua árabe, que contradizem abertamente a versão oficial, o que realmente terá ocorrido num posto de controlo montado pelo exército iraquiano foi o resultado de um desentendimento com um grupo de duas centenas de peregrinos da tribo Hawatim que pretendiam dirigir-se a Najaf. Contrariando as ordens terão tentado prosseguir viagem com uma viatura (algo que no actual estado da situação no Iraque é quase anunciar um atentado) em virtude do chefe do clã não poder caminhar. A reacção dos soldados iraquianos e o facto de toda a gente andar armada no território terá originado uma troca de tiros rapidamente seguida de um pedido de auxílio por parte dos soldados.

Prontamente atendido o pedido de socorro, os helicópteros americanos enviados para o local dizimaram os pretensos rebeldes, aos quais se tinham juntado membros da tribo local, Khaza'il.

Em jeito de comentário a mais esta acção militar de muito difícil explicação, o
DIÁRIO DE NOTÍCIAS questiona se tudo não terá passado de um Waco no Iraque[2], enquanto o jornal inglês que avança a informação que as duas tribos envolvidas (os Hawatim e os Khaza’il) são conhecidos opositores do partido Dawa e do Conselho Supremo para a Revolução Islâmica no Iraque, organizações que controlam a região de Najaf e constituem o núcleo central do actual governo de Bagdad, o que além de ajudar a explicar o próprio desenrolar dos acontecimentos revelará ainda a “utilidade” prática do massacre.
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[1] Designação das celebrações que recordam a morte de Hussein, neto de Maomé, numa batalha que teve lugar em Kerbala.
[2] Referência ao massacre ocorrido em 1993, na localidade de Waco, no estado do Texas, que vitimou 74 membros da seita dos Davidianos, na sequência de um incêndio que destruiu as instalações onde se encontravam sitiados há vários dias pela polícia americana.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

DESPENALIZAÇÃO DA IVG – BREVE RESENHA

Se no post anterior deixei algumas questões em torno da necessidade de nova consulta popular sobre a interrupção voluntária da gravidez, a regular apresentação de argumentos a favor e contra leva-me a formular outro tipo de questões.

Por uma questão de mera estruturação mental organizemos as questões segundo a sua natureza:

- teológica;

- moral e ética;

- legal;

- científica;

- prática.

No primeiro grupo encontram-se as de resposta mais fácil mas também mais primária, porque de uma forma geral para as grandes religiões o aborto é uma prática condenável; no seu particularismo cada uma pretende preservar o dom da vida e o primado da vontade superior que tudo comanda (curiosamente nenhuma atribui importância à vontade da mulher, em caso algum comparável a uma manifestação de um desígnio superior). No caso português, país onde as estruturas religiosas ainda mantém um peso assinalável, é particularmente curioso o facto de começarem a surgir em público algumas vozes menos radicais (ou mais abertas à sociedade laica), sendo o cada vez menos evidente uso e abuso dos cânones religiosos, como fonte de argumentação para o debate, sintoma disso mesmo.

Mais curioso ainda é o crescente movimento entre os simpatizantes do NÃO (hoje noticiado pelo DIÁRIO DE NOTÍCIAS) que começa a defender a necessidade de não condenar as mulheres que recorram ao aborto, propondo-se mesmo, ironia das ironias, avançar em caso de vitória do NÃO com propostas legislativas naquele sentido.

A bem do próprio debate (e muita gente há que já terá feito a sua opção mesmo sem revelar grandes convicções) as questões de natureza moral e ética são incontornáveis; podem é ser abordadas em perspectivas diferentes consoante se apoie ou condene o recurso ao aborto.
Já no capítulo legal não existem dúvidas; hoje (e até que o actual quadro legal seja revisto) a prática do aborto em Portugal é crime e o argumento tantas vezes esgrimido pelos defensores do NÃO de que não existem, em Portugal, mulheres encarceradas por essa prática é falacioso e perigoso. Primeiro por remeter para a benevolência de quem aplica a lei e depois porque a qualquer momento a situação se pode inverter. Eticamente mais correcta é a posição defendida por alguns juristas e juízes que apoiam a alteração da lei baseando-se na evidência de que a sociedade já não penaliza a interrupção da gravidez.
O ponto de vista que ainda suscitará maiores controvérsias será o científico, seja porque a ele grandemente recorre os defensores do NÃO (os movimentos do feto, o bater do coração, etc., etc.) seja porque os sucessivos avanços da medicina, nomeadamente na forma como tornaram tão evidente a vida intra-uterina, contribuem para reforçar os argumentos dos defensores do NÃO. Conquanto possa parecer resolvida a questão do “início da vida” e tudo indica que este seja o grande argumento dos opositores à legalização do aborto, nem por isso deixam de se verificar outras questões igualmente relevantes neste capítulo.

Como exemplo disso aqui volto a repetir o teor do parecer da Comissão Britânica de Bioética que não hesita em defender que aos nados com menos de 22 semanas de gestação não sejam aplicados cuidados médicos face à muito reduzida taxa de sucesso (apenas 1% dos casos) e a recomendar a leitura desta notícia do PUBLICO, que além de esclarecedora permite ainda a comparação da argumentação, algo tanto mais importante quanto também existem defensores do SIM entre os membros da classe médica e nem tudo o que se tem ouvido consiste em informação cientificamente rigorosa. Assim, aquela recomendação da Comissão Britânica de Bioética pode muito bem ser entendida como a definição de um limiar de vida autónoma para o feto e estabelecer uma referência temporal até à qual será aceitável uma interrupção da gravidez.

Mas no fundo, a verdadeira área de debate de uma questão tão sensível como o aborto terá sempre que ser a sua natureza prática.

Que actualmente ninguém, minimamente informado e esclarecido, possa aceitar o recurso ao aborto como forma regular de prática anticoncepcional, não creio que mereça qualquer discussão. Aceitando esta premissa cairá por terra o grande argumento de defesa da vida por que se batem os apologistas do NÃO (se levarem ao extremo as suas teses acabarão, como a Igreja Católica, por também condenar o uso de qualquer método de prevenção da gravidez) restando-lhes aceitar que a sua recusa é a condenação de uma solução extrema e não a de uma prática regular.

Assente este princípio e o de que nenhuma mulher recorre à prática do aborto de ânimo leve, estaremos em condições de colocar a matéria do referendo no mais correcto e equilibrado dos campos: TRATA-SE DE UMA MATÉRIA DO FORO ÍNTIMO DE CADA PESSOA (ou casal, se preferirem).

Assim sendo, porque não deixar à consciência de cada um a resposta à situação?