Poucos
duvidarão que vivemos tempos de mudança (e de mudança conturbada) e que
historicamente estes tempos são particularmente fecundos. Assim foi com os
grandes saltos que a Humanidade foi dando ao longo do tempo e embora uns se
tenham revelado mais tranquilos que outros, é inegável que muitas das grandes
mudanças implicaram o seu quinhão de sacrifícios (e de sacrificados) e que em
todas elas terá havido quem tenha procurado explicar o inevitável aos
sacrificados.
Foi assim que
na sociedade ocidental se enraizaram estruturas aparentemente conciliatórias que
beneficiando sempre da proximidade dos poderosos lá foram prometendo o céu aos mais
sacrificados. Do mesmo modo, desde a difusão da imprensa têm abundado os escribas
que privilegiam o apaziguamento à informação dos leitores. Isso mesmo sucede,
como o faz César das Neves, quando se procura reduzir a complexa e muito
delicada situação da Zona Euro aos meros «Equívocos
de uma palavra» - Austeridade.
O autor baseia a sua argumentação no pressuposto que a austeridade é
resultante da cumulação de défices e de endividamento, que foram consequência
de má governação e que a austeridade oferecida pela ajuda externa é mais suave
e mitigada que a que resultaria dum súbito ajustamento do total das despesas,
incluindo os juros, ao total das receitas.
O que parece um raciocínio
inabalável conduzindo à inevitável conclusão, bem ao gosto friedmaniano, de que não há almoços grátis – leia-se: perdão da
dívida – é tão susceptível de crítica como qualquer outra opinião. Como, por
exemplo, quando revela que padece do mesmo tipo de simplismo que atribui aos
críticos da austeridade ao afirmar que estes esquecem que já antes da crise não
existia crescimento ou este foi insuficiente para evitar o endividamento
explosivo, ele, por sua vez, esquece de referir que a adopção generalizada das
teses monetaristas e do princípio do “trickle-down
economics”, em benefício das grandes empresas e dos grupos de maiores
rendimentos, conduziu à erosão das receitas públicas e daí ao agravamento dos
défices. Não foram apenas os políticos «…capturados
por interesses, próprios ou alheios, concedendo benesses acima daquilo que o
país podia pagar…» que agravaram as dívidas; foram, isso sim, os políticos
que, capturados pelos interesses subjacentes às teses monetaristas, levaram à
redução da carga fiscal sobre os que mais e melhor podiam pagar, que estiveram
na origem do problema.
Mas este não é o único equívoco de
César das Neves. O segundo, em nada inferior ao primeiro, é o de ora colocar em
pé de igualdade os interesses de devedores e credores, ora sobrevalorizar os
direitos dos credores – o princípio da sacrossantidade dos juros e do capital –
enquanto faz tábua rasa do elementar dever da avaliação e acautelamento dos
investimentos. Por outras palavras, enquanto aos devedores cumpre a
obrigatoriedade de respeitar as obrigações assumidas em seu nome, os credores (agentes
económicos invariavelmente melhor informados) estão isentos da mínima
responsabilidade.
É óbvio que ao longo da argumentação
não deixa de apresentar pontos de vista dignos de nota, como seja a referência
ao interesse dos contribuintes em controlar os desmandos praticados em seu nome
pelos governantes, embora não o faça no sentido do apelo ou do apoio a um
processo de auditoria cidadã das dívidas, antes, e tão só, por admitir, sem
rebuço ou contrição, que são aqueles contribuintes quem suporta os custos das
más políticas.
Por estas
razões e pelos resultados práticos da aplicação das teorias ordoliberais, é
que, ao contrário do que pretende César das Neves, os equívocos não residem
numa palavra e é aconselhável que ao invés da recomendação, de contornos
absolutamente monásticos, para «…um uso mais austero da palavra austeridade…» nos
preocupássemos com os habilmente tecidos equívocos de muitas palavras…
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