Coincidindo o
derrube militar do presidente egípcio, Mohamed Morsi, com o início do Ramadão
(período durante o qual os fiéis muçulmanos observam o jejum ritual) passou-se
do cenário de manifestações diárias contra o governo deposto para um mais
contido de vigília de protesto lançado pela Irmandade Muçulmana, formação
política a que pertence o ex-presidente.
É claro que já
houve confrontos entre partidários da Irmandade e a polícia, algo tanto mais
inevitável quanto a situação política egípcia continua conturbada e com
contornos particularmente nebulosos. Embora o golpe militar dirigido pelo general
Al Sisi tenha aparentemente delegado o exercício do poder político no
presidente do Supremo Tribunal, Adly Mansour, continua por concretizar a
formação do novo governo, iniciativa que foi confiada a Hazem Al Beblawi, fundador
do Partido Social Democrata egípcio e ex-ministro das finanças com profundas
ligações ao sector financeiro (o que no jargão ocidental se poderia apelidar
dum tecnocrata).
A rapidez com
que o exército interveio na crise aberta pela contestação a um presidente
eleito mas julgado por largos sectores da opinião pública egípcia como
demasiado autoritário e pró-islâmico, além de revelador do peso que a estrutura
ainda mantém no panorama político, pode ser objecto duma interpretação diversa
da que a imprensa ocidental prontamente lhe atribuiu, tanto mais que que são já
evidentes as divisões entre as forças políticas no processo de formação do novo
governo, anunciando-se mesmo que a «Oposição
laica do Egipto rejeita plano do Presidente interino», enquanto a «Irmandade
rejeita agenda eleitoral de Exército».
A intervenção
militar e a deposição de Morsi está já a produzir algumas ondas de choque nos
países vizinhos e em especial num enfraquecimento da influência regional da
Irmandade (organização que dispõe de ramificações nos países árabes e nas
regiões do Maghreb e do Sahel), fenómeno que se faz sentir nos últimos tempos e
que poderá até estar relacionado com a recente notícia de que o «Emir
do Qatar abdica a favor do filho», ou não fosse este estado árabe o
principal financiador da Irmandade.
Numa região
onde a tradição de influência e de preponderância dos aparelhos militares é um
dado histórico e num país onde, na sequência dos Acordos de Camp David (patrocinado
por Jimmy Carter, presidente norte-americano, pôs termo ao conflito entre
Israel e o Egipto e foi assinado em 1978 pelo primeiro-ministro israelita
Menachem Begin e pelo presidente egípcio Anwar Al Sadat), a dependência da
estrutura militar face à sua congénere norte-americana é amplamente conhecida,
tudo contribui para que o golpe ganhe rapidamente contornos dum regresso ao
passado, pondo em sérias dúvidas o desenvolvimento dum processo de normalização
democrática que poderia ter outra expressão caso a substituição de Mohamed
Morsi tivesse resultado de mecanismos democráticos.
Uma possível
aquiescência da administração norte-americana ao golpe de Al Sisi foi
contemplada desde o início – traduzida em notícias como a que os «EUA mantêm planos para entregar F-16 ao Egipto»
que a informação que os «Estados
Unidos vão reavaliar ajuda militar ao Egipto» não
contraria, pois este é um
mecanismo habitual na sequência de qualquer golpe de estado –,
parece confirmar e reforçar a necessidade de observar a situação egípcia sob
uma perspectiva bem menos entusiástica. É que ao contrário do movimento de
contestação a Moahmed Morsi, perfeitamente aceitável no quadro democrático em
que decorreu a sua eleição, a intervenção militar parece bem pouco sustentável
e passível até de ser comparada à rejeição ocidental à eleição do movimento
palestiniano Hamas (próximo da Irmandade Muçulmana).
Ao que tudo
indica – e ao contrário do que habitualmente se lê nos jornais –, agora no
Egipto, como em 2006 na Palestina, o Ocidente volta a não hesitar em preterir a
democracia e o seu exercício a outros interesses pouco confessáveis.
Sem comentários:
Enviar um comentário