Confirmado que
está o anúncio de que «Espanha pediu
100 mil milhões» e pese embora o governo espanhol persista na estratégia de
negar que o pedido – apresentado como indispensável para a recapitalização da
exaurida banca espanhola e garantido pelo Estado – representa um resgate à
economia espanhola, será de aguardar para conhecermos o próximo (o sexto,
porque «Chipre
é o próximo na lista: resgate chega até ao final do mês») estado-membro da
UE a “deslizar” para uma situação de dependência financeira.
Enquanto isso,
a evidência da origem no sistema financeiro da “necessidade” espanhola – tal
como antes acontecera com a Islândia, a Irlanda e em maior ou menor grau com
Portugal – reforça a ideia tantas vezes defendida da necessidade de reavaliação
da origem do crescimento das dívidas públicas.
No sentido de
contribuir para o debate aqui deixo a tradução dum artigo publicado pelo LE MONDE
DIPLOMATIQUE, onde Jean Gadrey, professor da Universidade de Lille e membro
do conselho científico da ATTAC (Associação pela Tributação das Transacções financeiras
para Ajuda aos Cidadãos), deixa uma reflexão sobre a dívida francesa facilmente
extrapolada para as congéneres europeias:
«França:
Dívida, que dívida?
por
Jean Gadrey – Economista
Na
Grécia, as novas eleições legislativas marcadas para 17 de Junho disputar-se-ão
sobre a questão da renegociação da dívida. Os contribuintes continuam a
recusar-se a “colocar dinheiro num poço sem fundo”, disse Alexis Tsipras, o
líder do partido de esquerda, Syriza. Em França, uma campanha de base também
exige auditoria cidadã da dívida pública.
Um
cheiro de primavera de 2005? Na época, o Presidente da República, Jacques
Chirac, tinha submetido a referendo o Tratado Constitucional Europeu (TCE). Os
meios de comunicação foram unânimes: era necessário aprovar o texto. A campanha
caracterizou-se, no entanto, por uma mobilização sem precedentes. Associações,
organizações políticas e sindicais empenharam-se a deslindar, explicar e
discutir um documento muito pouco convidativo. Contra o conselho dos especialistas
institucionais, quase 55% dos franceses decidiram rejeitar a Constituição da
UE.
Sete
anos mais tarde, não está em questão nenhum tratado europeu, mas o coro dos
editorialistas ressoa novamente: o peso da dívida requer que as pessoas apertem
os cintos. E, embora desta vez nenhum referendo tenha sido agendado para
perguntar aos franceses a sua opinião sobre o assunto, uma campanha foi a
aposta delicada para impor no debate público uma questão que a imprensa está
empenhada em silenciar: devemos pagar a totalidade da dívida francesa?
Desde
o Verão de 2011, o apelo nacional “Por uma auditoria cidadã da dívida pública”,
que reúne vinte e nove associações, organizações não-governamentais (ONGs) e
sindicatos, e com o apoio de vários políticos (1), foi assinado por cerca de 60
mil pessoas (2). Mais de cento e vinte comités de cidadãos de auditoria (CAC)
oferecendo-se para “substituir as agências de rating” foram criados desde o
Outono de 2011. Como explicar semelhante empenho?
Um
dos organizadores desta campanha, o filósofo Patrick Viveret, lembra que a
palavra “desejo” – aqui empregue no sentido de, se envolver na mobilização –
provém de “desejar”: “A sideração tem como característica que mesmo as vítimas
achem que não é possível fazer o contrário. Sideração é, economicamente, o que
poderia ser chamado de pensamento TINA [“There Is No Alternative”] de Margaret
Thatcher: um Estado em que apenas se diz: “Sim, é catastrófico” e “Não, você
não pode fazer o contrário” (3)». O que equivale a um “bloqueio da imaginação”,
da indignação e da crítica.
No
entanto, dentro dos comités de auditoria cidadã, as coisas libertam-se quando
os participantes extraem certas conclusões, que geralmente os deixam
incrédulos:
-
Como? Os gastos do Estado francês em percentagem do total da riqueza produzida,
não progrediram ao lingo de vinte anos? Até têm uma ligeira queda de 24% do
produto interno bruto (PIB) em meados dos anos 1980 para 22% em meados dos anos
2000? De certeza?
-
Você diz que a receita do Estado por sua vez, perdeu quatro pontos percentuais
do PIB de 22% para 18% ao longo deste período? “Eles” optaram por privar o
Estado de receitas?
-
As reduções fiscais decididas na última década representam uma queda real de
100 mil milhões de euros por ano?
-
Muitas das grandes economias, como os EUA e o Reino Unido, têm um banco central
que empresta directamente ao Estado a taxas próximas de zero, e nós não?
-
Se o Banco Central Europeu (BCE) tivesse aceitado emprestar dinheiro
directamente aos países da zona do euro como faz para os bancos, ou seja, 1%,
ninguém seria agora confrontado com uma dívida classificada como “insuportável”
Isso é verdade?
-
Nós poderíamos recusar a pagar uma dívida nos termos em que foi contratada? Mas
isso já foi feito?
Para
essas perguntas, adquiridas ao longo dos encontros, as respostas (4) – sempre
positivas – circulam na Net. De assunto frustrante ou inatingível, a questão da
dívida pública passou a “desejável” entre aqueles que começaram a conhecer o
tema, como fizeram com a reforma das pensões em 2010, ou o Tratado
Constitucional europeu proposto em 2005. Ela floresceu não apenas em livros,
textos e apresentações, mas, acima de tudo como os inúmeros sinais de
propriedade colectiva genuína: desde caricaturas (uma descreve uma “mamã BCE”
forçada a alimentar uma criança obesa cujo bibe diz “Banco”), a questionários (“Os
detentores de dívida são: 1-Bancos; 2-Seguradoras; 3-Xeques do Petróleo; 4-Nós
não sabemos...”. [5]); a cartazes manipulados de filmes; a trechos teatrais; a
vídeos divulgados na Net (dívida, é bom [6]!), etc.
Existe
um centro, mas como nó duma rede que organiza comícios nacionais e contactos
internacionais, e redistribui as análises. Estas retratam “países ricos
altamente endividados” sujeitos ao mesmo tipo de ditadura política e financeira
que os países pobres muito endividados (PPME) em 1990. Alguns, como os líderes
do Comité para a Abolição da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), revelaram então
como a dívida tinha surgido, a partir de 1979, de decisões unilaterais dos
Estados Unidos, tendo-se tornado no principal meio de subjugação neocolonial do
hemisfério sul. A dificuldade é agora mínima para convencer que a mesma
dinâmica está em acção no sul... da Europa, e que o contágio pode afectar todos
os outros países, incluindo a Alemanha, através dos seus bancos enfraquecidos.
A
democracia reivindicada por esses grupos, bem como o pluralismo, levou a
colocar todos no mesmo nível. Surgem controvérsias, tanto entre os
especialistas dessas redes (Os Economistas Aterrados, a ATTAC, a Fundação
Copérnico, o CADTM, os partidários da anti-globalização...) como nos debates
locais. A atenção principal incidiu, no primeiro trimestre de 2012, no papel
dos juros acumulados no crescimento da dívida pública. Para alguns, é a
principal explicação: os juros pagos pelo Estado francês entre 1980 e 2009
ascenderam a 1.340 milhões de euros em 2009, representando 90% do stock da dívida em 2009 (1,5 biliões).
Para outros, a questão seria secundária, pelo menos em França. A operação de
acumulação a longo prazo seria inútil, porque ninguém afirma que, dada a
inflação e o crescimento, seja justo o empréstimo sistemático à taxa zero.
Segundo estes o excesso de dívida resultaria principalmente dos benefícios
fiscais concedidos aos mais ricos, das desigualdades, e dos resgates aos bancos.
Outros
debates surgem, como seja o da particular necessidade da dívida pública: deve um
Estado endividar-se continuamente? Ou, dito de outra forma, não haverá uma
parte dos gastos públicos (potencialmente financiada pela dívida) que pode ser
estimada como socialmente e ecologicamente inútil ou prejudicial, impulsionada
por lobbies de empresas e pela
concorrência destrutiva entre países ou regiões (7)?
Mas
os colectivos locais percebem muito bem que os diferentes pontos de vista são
complementares e não opostos. Não importam os detalhes da análise, as propostas
têm consenso para remover aos mercados o monopólio do financiamento dos
Estados, regressando a taxas de juros muito baixas. E todos salientam a
necessidade de forte redução das desigualdades e uma reforma tributária
radical, “a la Roosevelt”.
Sempre
mais pragmáticos do que teóricos, os debates locais sustentam uma hipótese
bastante keynesiana de que parte da dívida pública francesa é, provavelmente,
legítima, sujeita a inventário. Mas apenas uma parte: em França e no exterior
(Bélgica, Alemanha, em vários países do sul da Europa), os grupos acreditam que
a ideia de ilegitimidade é baseada em três argumentos, cada um suficiente para
justificar o uso actual deste termo: “Quem discorda com a legislação comum, a
equidade, no plano de moral, intelectual ou material”.
O
primeiro argumento é a injustiça das decisões que aumentaram a dívida: a
fiscalidade de classe, os nichos para os ricos, a crescente desigualdade... O
segundo refere-se às escolhas que não se enquadram com o interesse geral:
confiar as dívidas públicas aos mercados, isto é aos especuladores. A terceira
destaca as decisões tomadas nas “costas” das populações: assente nas suas
costas, cobrando a crise sobre aqueles que não desempenharam qualquer papel no
seu início; assente nas suas costas devido ao défice democrático e ao
estrangulamento da oligarquia neoliberal sobre a informação.
______________
Notas
(1) Da Europe Ecologie-Les Verts
(EE-LV) ao Novo Partido Anti-capitalista (NPA), passando pelo Partido Comunista
(PC) ou o Partido para a diminuição.
(3) “Construire une
résiliAnce. De la sidération au désir”, a décima terceira sessão do
University Club of Budapest, 19 de Setembro de 2011.
(4) Na Primavera
de 2011, o livro da ATTAC “Le Piège de la dette publique (Les liens qui libèrent) ”, abordava
algumas destas questões.
(5) Todas as respostas estão correctas,
excepto a 3.
(7) Ver “Os Estados têm de se
endividar?”, 26 de Setembro de 2011, http://alternatives-economiques.fr/»
Vista na
perspectiva sugerida propõe Gadrey, a questão da dívida pública ganha outros
contornos e, uma vez que o verdadeiro problema não é a dívida mas sim a via
pela qual ela tem sido originada e financiada, notícias como a de que afinal o
«Resgate
a Espanha não aclama mercados» passam a fazer um sentido que os defensores
da “austeridade expansionista” insistem em negar.
2012-06-13
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