quinta-feira, 17 de maio de 2012

DE VÍTIMA A ALGOZ


Salvo uma ou outra notícia dando conta do fim duma greve de fome realizada por prisioneiros palestinianos detidos em prisões israelitas, pouco ou nada se soube sobre aquele acontecimento, as razões que o terão motivado ou até sobre a sua maior ou menor justificação.
Tal como em tantas outras situações, o que acontece no interior das fronteiras de Israel e que duma forma ou doutra possa melindrar a imagem pré-fabricada daquele Estado é invariavelmente omitido ou, se impossível de esconder, tratado com o cuidado e a delicadeza indispensáveis ao manuseio dos mais frágeis e delicados dos materiais.


Na tentativa de colmatar aquela falha de informação aqui deixo a minha tradução dum excelente texto de Alain Gresh[1] publicado na página on line do LE MONDE DIPLOMATIQUE, que sem esgotar o tema apresenta (do meu ponto de vista) a grande virtualidade de oferecer uma visão não panfletária mas diversa da que habitualmente os meios de informação ocidental disponibilizam:
Palestina, estes ignorados prisioneiros em greve de fome

por Alain Gresh 

Imagine por um momento dois mil prisioneiros políticos na China envolvidos numa greve de fome durante várias semanas, ou outros dois mil, mobilizados num movimento similar na Rússia. Há pouca dúvida de que a TV e a Rádio, por isso, sempre pronta para noticiar sobre as violações dos direitos humanos em países distantes, abririam com essa notícia os seus boletins informativos, indignar-se-iam com esta violação de direitos básicos, interpelariam as nossas autoridades para uma resposta e apelariam mesmo à sua intervenção para impor sanções a Pequim ou Moscovo. 

Existem realmente dois mil prisioneiros políticos estão em greve de fome, mas na Palestina. E a informação e não parece interessar muita gente. Mas nós sabemos há muito tempo que os palestinos, os árabes, os muçulmanos não são realmente seres humanos como todos os outros. 

Vamos primeiro aos factos, relatados pelo correspondente do Le Monde («Le mouvement de grève de la faim des prisonniers palestiniens en Israël s’étendrait à 2.000 détenus», Lemonde.fr, 6 Mai)

«Israel está a ter dificuldade crescente em controlar o movimento da greve de fome de prisioneiros palestinianos, que continua a expandir-se. Iniciada a 17 de Abril em protesto contra a prática da detenção administrativa (que mantém um suspeito em prisão sem julgamento, por um período de seis meses renováveis), esta acção reunirá hoje cerca de 2.000 presos, segundo Addameer, a associação Palestiniana dos direitos humanos dos prisioneiros»(...) 

«Pelo menos dois prisioneiros estão em estado crítico: Diab Bilal, de 27 anos, natural de Jenin, e Thaer Halahla, 33 anos, de Hebron (ambos membros da Jihad Islâmica), começaram a sua greve de fome a 29 de Fevereiro. Após sessenta e seis dias sem comida, entraram no que os médicos chamam de "uma fase de sobrevivência aleatória." Os dois homens apareceram, quinta-feira 03 de Maio, numa cadeira de rodas diante do Supremo Tribunal de Israel, mas este adiou a sua decisão sobre uma possível libertação para uma data posterior».

«Pelo menos seis outros prisioneiros estão em uma condição considerada alarmante. Este movimento de greve espalhou-se para os principais centros de detenção em Israel, e vários líderes da resistência palestina, como Ahmad Saadat, líder da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), juntou-se-lhe. Embora as manifestações de solidariedade se multipliquem em várias cidades palestinas, o governo do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu hesita sobre qual o comportamento a adoptar».

Esta greve levanta a questão da detenção administrativa (ou seja, sem provas e sem julgamento), uma prática herdada do mandato britânico, quando Londres lutava (1944-1948) contra o "terrorismo sionista". Como escrevi em De quoi la Palestine est-elle le nom?, essas leis de emergência foram criticadas por muitos juristas, incluindo o Dr. Moshe Dunkelblum, que mais tarde ocuparia um lugar no Supremo Tribunal de Israel. No dia 07 de Fevereiro de 1946, declarou: "Essas directrizes são uma ameaça constante contra os cidadãos. Nós, advogados, vemos nelas uma flagrante violação dos princípios fundamentais da legalidade, justiça e disciplina. Elas legalizam a mais perfeita das arbitrariedades das autoridades administrativas e militares. (...) Elas privam os cidadãos dos seus direitos e dão às autoridades poderes ilimitados." Mas uma vez chegados ao poder, os sionistas esqueceram essa crítica e voltaram essas leis contra os árabes.

O Supremo Tribunal de Israel, que alguns apresentam como o garante da democracia nesse país, negou provimento ao recurso de dois prisioneiros administrativos em greve de fome há dois meses («Court rejects petition by Palestinian hunger strikers against detention», Haaretz, 8 Maio 2012). Com toda a hipocrisia, observou que a prática da detenção administrativa era "uma aberração jurídica" pelo que devia ser usada "o mínimo possível", mas o apelo dos presos foi rejeitado. Houve um tempo em que Israel permitiu oficialmente a "pressão física moderada" contra palestinos detidos: um pouco de tortura, não muito... Uma decisão que este Supremo Tribunal "humanista" apoiou até 1999 (estava-se, à época, em plenas "negociações de paz" entre Israel e a OLP!).

A greve dos prisioneiros palestinos foi divulgada pelas declarações de Richard Falk, relator especial da ONU para os direitos humanos nos territórios palestinos ocupados, que se afirmou «enojado com as contínuas violações dos humanos homem nas prisões israelitas. Desde 1967, 750.000 palestinos, incluindo 23.000 mulheres e 25.000 crianças, foram detidas em prisões israelitas, o que representa quase 20% do total da população palestina dos territórios ocupados» (citado em Armin Arefi, «Israël: la dernière arme des prisonniers palestiniens», AFPs).

Conclusões: o silêncio na maioria dos meios de comunicação, sem pressão sobre o governo israelita, nenhuma indignação moral de todos esses grandes intelectuais... A Terra gira e alguns surpreendem-se que os discursos europeus sobre democracia e direitos humanos despertem especial zombaria no mundo árabe.


[1] Alain Gresh é um jornalista francês de ascendência egípcia (filho de Henri Curiel, activista assassinado em 1978 em Paris em circunstâncias ainda por esclarecer), redactor do LE MONDE DIPLOMATIQUE e autor de diversas obras sobre o Médio Oriente, o Maghreb e o islamismo.

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