sexta-feira, 8 de agosto de 2014

GAZA OU A REVISITAÇÃO DO MITO DO DAVID

Decorrido mais de um mês desde o início da mais recente investida israelita sobre a Faixa de Gaza e quando parece estabelecido mais um interregno proporcionador de condições para o retomar dum confronto cada vez mais longe do seu epílogo, será talvez a oportunidade de voltar à questão do conflito israelo-árabe e à versão modernizada do David contra Golias, onde o moderno David faz evidente figura de gigante todo-poderoso.


Esqueçamos a versão oficializada nos livros sagrados; aquilo que hoje vemos desenrolar-se diante dos nossos olhos, quando pela n-enésima vez o todo-poderoso exército israelita invade a Faixa de Gaza (enclave palestiniano onde vivem mais de 1,8 milhões de pessoas nuns estreitos 365 km2, ou seja quase 7 vezes a população da Ilha da Madeira em cerca de metade daquele espaço) dando início a mais um processo de destruição das parcas infraestruturas que existiam e as significativas baixas entre a população civil, tem muito pouco a ver com a sistemática invocação da necessidade de protecção.

Isto mesmo parece ressaltar das cada vez mais veementes condenações proferidas pela comunidade internacional, com especial destaque para a ONU (a instância internacional que com o beneplácito norte-americano, Israel vem desrespeitando à décadas) que desta vez e depois de repetidos bombardeamentos a escolas e outras instalações, a «ONU pede que Israel assuma responsabilidade por "crimes de guerra" em Gaza», acusação posteriormente suavizada com a generalização de que «Israel e Hamas estão a cometer crimes de guerra»; a condenação das duas partes isto tinha acontecido em 2008, durante a Operação “Chumbo Fundido”, mas não há registo de declaração como a proferida pelo secretário-geral da ONU que, possivelmente num momento de fúria mal contida, afirmou peremptoriamente: «É "crime", diz Ki-moon depois de Israel atingir a sétima escola em Gaza» .

Ao longo das semanas muitas foram as vozes que se fizeram ouvir em apelos à contenção e ao fim dos bombardeamentos, justificados na perspectiva israelita pelo rapto e posterior assassinato de 3 jovens israelitas, a par com o disparo de “rockets” artesanais a partir da Faixa de Gaza.

Raramente referido foi o facto daquele incidente ter ocorrido numa região da Cisjordânia, território palestiniano distinto da Faixa de Gaza e sob gestão doutra força política (desde a eleições de 2006 que a Cisjordânia é governada pela Fatah e a Faixa de Gaza pelo Hamas) e da sanha vingativa israelita ter recaído sobre a Faixa de Gaza, com um resultado que de momento se cifra em cerca de 1900 palestinianos mortos (maioritariamente civis não combatentes) e mais de 60 israelitas (quase exclusivamente militares), talvez por este território ser governado pelo Hamas (movimento islâmico próximo da Irmandade Muçulmana) ou pela razão, regularmente esquecida na imprensa ocidental, da existência de jazidas de gás natural na plataforma marítima frontal ao território (uma excepção foi este artigo de opinião de Maria João Tomás).

Este interesse (ao qual já me tinha referido em 2008, no “post” «A FUGA DE GAZA») a par do interesse estratégico na instalação dum “pipeline” submarino entre Ceyhan (Turquia) e Ashkelon (Israel), no Mediterrâneo, com ligação ao Mar Vermelho na localidade israelita de Eilat, infraestrutura que ligando ao oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan, contribuirá para reduzir a importância do Irão e do Iraque como fornecedores de hidrocarbonetos à Índia e à China (ver o “post” «A REALIDADE ALÉM DAQUILO QUE VEMOS», não foi seguramente esquecido em mais este ataque a Gaza; a cimentar esta suspeição surgiu agora a notícia que o «Governo acusa exército israelita de os querer demover de ocupar Gaza», no que configura a aproximação duma nova escalada no conflito israelo-palestiniano.

Outro dado que também contribui para a formulação de fracas expectativas de pacificação foi o aparente sucesso palestiniano com a estratégia de lançamento simultâneo de grande número de “rockets”, na tentativa de ultrapassar o sistema antimíssil “Iron Dome” de Israel, que deixou «O aeroporto de Telavive na mira dos rockets do Hamas» e originou uma decisão inédita quando várias «Companhias aéreas suspendem voos para Telavive»; depois duma primeira manobra da mais elementar contra-informação, quando foi noticiado que «Escudo antimísseis Cúpula de Ferro infiltrado pelo exército chinês», o “amigo americano” acabou por reconhecer a necessidade de actualizar o sistema e de Washington lá chegou a informação que a administração «Obama dá 168 milhões para escudo antimíssil» que deverá proteger Israel de futuros ataques.

Enquanto isto e quando Israel parece ter dado como concluído o processo de destruição dos túneis, afastada para já a hipótese de reocupação militar da Faixa de Gaza (julgada demasiado cara dos pontos de vista militar, diplomático e financeiro), com a permanência do bloqueio imposto ao território continua adiada qualquer hipotética normalização (especialmente quando do lado israelita surgem hipócritas declarações como a do primeiro-ministro «Netanyahu diz querer ajudar povo de Gaza contra "tirania do Hamas"») no quotidiano duma população que regularmente se vê dizimada por um vizinho poderoso que, nas palavras de Maria João Tomás. «…instigou várias vezes os palestinianos a revoltar-se, mas esquece-se de que, enquanto continuar a construir colonatos e a ameaçar a independência da Faixa de Gaza, estas gentes terão sempre uma dívida de gratidão para com o Hamas, mesmo que obriguem as suas filhas de 9 anos a casar com homens 40 anos mais velhos, e as ponham a desfilar pelas ruas com os seus velhos maridos, para que não haja dúvida de que é isto que espera a maioria das meninas da Faixa de Gaza. Os dirigentes do Hamas são também acusados de enriquecer com os donativos enviados para ajudar os palestinianos, deixando mais de 38% da população num estado de quase miséria e sem instrução. Apesar de tudo, a população sujeita-se a todas as suas exigências, porque eles são o garante da sua independência e da pouca ajuda social e económica que recebem» (in «A guerra em Gaza entre o Hamas e Israel»), que em última instância até explica porque é que o «Hamas impõe condições para trégua e ameaça voltar às armas».

Com uma comunidade internacional cada vez mais apática, uma Liga Árabe fraccionada pelo antagonismo entre sunitas e xiitas e uma Autoridade Palestiniana (entidade liderada pela Fatah e que gere uma Cisjordânia quase tão asfixiada como a Faixa de Gaza) ineficaz, o problema eterniza-se, os ódios acirram-se e os interesses que habitualmente lucram com os conflitos continuam a facturar com a miséria palestiniana.

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