sexta-feira, 15 de agosto de 2014

LÁGRIMAS PELOS ABUTRES

Embora antigo, o aforismo “cada cabeça, sua sentença”, conheceu nova dimensão com a chegada duma época onde o manancial informativo e opinativo já vulgarizou a ideia que para cada acontecimento existem, no mínimo, duas opiniões antagónicas. Quando bem fundamentadas e explicadas de forma clarificadora podem até servir para que cada leitor delas extraia a sua própria conclusão; pior é quando os polemistas se socorrem de cambiantes ou meras meias informações com o exclusivo objectivo de defenderem o seu ponto de vista. Aí a informação vira desinformação ou pura e simples manipulação dos mais incautos.

Vem este intróito a propósito de mais uma opinião sobre o diferendo que divide a Argentina e alguns dos seus credores, que fruto da interpretação dum juiz norte-americano suspendeu o pagamento de juros a todos. Segundo o ponto de vista do Prof. César das Neves (ver o artigo «Maléfica e os abutres») tudo se resume ao «…enredo habitual: abuso típico de ricaços americanos sobre pobres contribuintes argentinos».


Talvez na tentativa de simplificar a complexidade do evento, César das Neves recorre à mais recente ficção hollywoodesca (citando o argumento do filme Maleficent de Robert Stromberg, que consiste numa recriação modernizada do clássico da literatura infantil A Bela Adormecida, de Charles Perrault) que acrescenta de pormenores; é certo que refere correctamente que «…o tema do julgamento de 2014 são os títulos repudiados em 2001...» quando «…a Argentina impôs cortes de 65% aos credores no anterior incumprimento…» e vê agora o resultado da actuação de «…[f]undos especulativos, que tinham comprado a desconto os títulos a credores espavoridos…» que «…recorreram e o tribunal americano aplicou a letra do contrato. Se a Argentina paga a uns, tem de pagar a todos nas respectivas condições: o país só pode reembolsar os 35% aos credores que aceitaram o corte se entregar 100% aos fundos».

Ficou, porém, por referir o facto dos “fundos abutres” representarem cerca de 2% da dívida reestruturada e desta ter sido adquirida aos tais “credores espavoridos” por um vigésimo ou um décimo do seu valor e da douta sentença do meritíssimo Thomas Griesa não revelar o mínimo prurido em prejudicar a larga maioria dos credores (cerca de 82%) que aceitou os termos da reestruturação para garantir uma expectativa de chorudos proventos aos todo-poderosos fundos NML e AURELIUS.

Claro que na versão história contada às criancinhas, actualizada e modernizada ao gosto de César das Neves (que já mereceu uma réplica excelente e perfeitamente enquadrada no estilo fábula, no artigo «“Era uma vez um banqueiro muito bonzinho…”» que Manuel Loff assina no PUBLICO), tudo se resume a um embate entre vilões (é sempre útil vilanizar o adversário, tanto quanto é sempre uma louvável atitude cristã não poupar demasiado os usurários), esquecendo que a “vilã” Argentina não é a presidente Cristina Kirchner antes os mais de 40 milhões de cidadãos do país.

Contrastando com esta opinião, veio recentemente a público um artigo de Kenneth Rogoff (a versão traduzida, «Uma lágrima pela Argentina», pode ser lida no NEGÓCIOS) onde este defende uma nova abordagem para os mecanismos de reestruturação das dívidas soberanas porque considera que a referida decisão judicial «…favorece os credores intransigentes no caso das emissões de obrigações regidas pela legislação dos Estados Unidos» e ainda que «…as novas interpretações jurídicas que dificultam ainda mais as reestruturações e as futuras reprogramações da dívida não são um bom augúrio para a estabilidade financeira mundial», posição tanto mais interessante quanto Rogoff, co-autor com Carmen Reinhart do célebre estudo que concluiu que um endividamento público superior a 90% do PIB é prejudicial ao crescimento económico e que já foi denunciado pela sua inexactidão técnica (ver o “post«ACONTECE…»), está longe de poder ser integrado noutra corrente de pensamento económico que não a monetarista e neoliberal, a mesma que acolhe no seu seio o Prof. César das Neves.

É assim… na ânsia de sobrepor o interesse individual ao interesse geral e de querer justificar o tantas vezes injustificável (como seja a permanente opção pelo branqueamento das responsabilidades do sistema financeiro), há sempre quem esqueça que a dívida é apenas uma armadilha onde se procura capturar os incautos e até se prontifique a apoiar os “abutres”.

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