Embora antigo,
o aforismo “cada cabeça, sua sentença”, conheceu nova dimensão com a chegada
duma época onde o manancial informativo e opinativo já vulgarizou a ideia que
para cada acontecimento existem, no mínimo, duas opiniões antagónicas. Quando
bem fundamentadas e explicadas de forma clarificadora podem até servir para que
cada leitor delas extraia a sua própria conclusão; pior é quando os polemistas
se socorrem de cambiantes ou meras meias informações com o exclusivo objectivo
de defenderem o seu ponto de vista. Aí a informação vira desinformação ou pura
e simples manipulação dos mais incautos.
Vem este
intróito a propósito de mais uma opinião sobre o diferendo que divide a
Argentina e alguns dos seus credores, que fruto da interpretação dum juiz
norte-americano suspendeu o pagamento de juros a todos. Segundo o ponto de
vista do Prof. César das Neves (ver o artigo «Maléfica
e os abutres») tudo se resume ao «…enredo habitual: abuso típico de ricaços americanos sobre pobres
contribuintes argentinos».
Talvez na tentativa de simplificar a
complexidade do evento, César das Neves recorre à mais recente ficção
hollywoodesca (citando o argumento do filme Maleficent de Robert Stromberg, que
consiste numa recriação modernizada do clássico da literatura infantil A Bela
Adormecida, de Charles Perrault) que acrescenta de pormenores; é certo que
refere correctamente que «…o tema do
julgamento de 2014 são os títulos repudiados em 2001...» quando «…a Argentina impôs cortes de 65% aos credores
no anterior incumprimento…» e vê agora o resultado da actuação de «…[f]undos especulativos, que tinham comprado a
desconto os títulos a credores espavoridos…» que «…recorreram e o tribunal americano aplicou a letra do contrato. Se a
Argentina paga a uns, tem de pagar a todos nas respectivas condições: o país só
pode reembolsar os 35% aos credores que aceitaram o corte se entregar 100% aos
fundos».
Ficou, porém, por referir o facto dos “fundos
abutres” representarem cerca de 2% da dívida reestruturada e desta ter sido
adquirida aos tais “credores espavoridos” por um vigésimo ou um décimo do seu
valor e da douta sentença do meritíssimo Thomas Griesa não revelar o mínimo
prurido em prejudicar a larga maioria dos credores (cerca de 82%) que aceitou
os termos da reestruturação para garantir uma expectativa de chorudos proventos
aos todo-poderosos fundos NML e AURELIUS.
Claro que na versão história contada às
criancinhas, actualizada e modernizada ao gosto de César das Neves (que já
mereceu uma réplica excelente e perfeitamente enquadrada no estilo fábula, no
artigo «“Era
uma vez um banqueiro muito bonzinho…”» que Manuel Loff assina no PUBLICO), tudo se resume a um embate entre
vilões (é sempre útil vilanizar o adversário, tanto quanto é sempre uma
louvável atitude cristã não poupar demasiado os usurários), esquecendo que a
“vilã” Argentina não é a presidente Cristina Kirchner antes os mais de 40
milhões de cidadãos do país.
Contrastando com esta
opinião, veio recentemente a público um artigo de Kenneth Rogoff (a versão
traduzida, «Uma
lágrima pela Argentina», pode ser lida no NEGÓCIOS) onde este defende uma nova
abordagem para os mecanismos de reestruturação das dívidas soberanas porque
considera que a referida decisão judicial «…favorece os credores intransigentes no
caso das emissões de obrigações regidas pela legislação dos Estados Unidos» e ainda que «…as novas
interpretações jurídicas que dificultam ainda mais as reestruturações e as
futuras reprogramações da dívida não são um bom augúrio para a estabilidade
financeira mundial», posição tanto mais interessante quanto Rogoff,
co-autor com Carmen Reinhart do célebre estudo que concluiu que um
endividamento público superior a 90% do PIB é prejudicial ao crescimento
económico e que já foi denunciado pela sua inexactidão técnica (ver o “post” «ACONTECE…»),
está longe de poder ser integrado noutra corrente de pensamento económico que
não a monetarista e neoliberal, a mesma que acolhe no seu seio o Prof. César
das Neves.
É assim… na
ânsia de sobrepor o interesse individual ao interesse geral e de querer justificar
o tantas vezes injustificável (como seja a permanente opção pelo branqueamento
das responsabilidades do sistema financeiro), há sempre quem esqueça que a
dívida é apenas uma armadilha onde se procura capturar os incautos e até se
prontifique a apoiar os “abutres”.
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